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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Rodamoinhos e Águas Paradas

Por Charlotte Joko Beck
Somos bem parecidos a rodamoinhos no rio da vida. Em seu fluxo, o rio ou riacho encontra pedras, galhos ou irregularidades de leito que levam ao aparecimento espontâneo de rodamoinhos aqui e ali. A água que passa por esses pontos rapidamente os atravessa e se reintegra ao rio, podendo mais adiante entrar em outro rodamoinho e prosseguir depois. Embora por curtos períodos ela pareça distinta, um evento separado, a água do rodamoinho é apenas o próprio rio.
A estabilidade do rodamoinho é temporária. A energia do rio da vida forma as coisas vivas — o ser humano, o gato, o cachorro, as árvores e as plantas —, e, então, o que mantinha o rodamoinho no lugar sofre uma modificação e aquele torvelinho é desfeito e torna a entrar no fluxo maior. A energia que foi um certo rodamoinho se dissolve e a água prossegue, talvez para ser novamente retida e, por um momento, transformar-se em outro rodamoinho.
Preferimos, no entanto, não pensar sobre nossas vidas dessa maneira. Não queremos nos ver como uma formação temporária e simples, um rodamoinho no rio da vida. O fato é que assumimos uma forma por um certo tempo e, quando as condições são propícias, saímos de cena.
Não há nada errado em sair de cena; é uma parte natural do processo. Contudo, gostamos de pensar que esses pequenos rodamoinhos que somos não fazem parte do rio. Queremos nos ver como seres permanentes e estáveis. Toda a nossa energia é dirigida para nossas tentativas de proteger nossa suposta realidade em separado.
Para proteger essa nossa separação, criamos limites fixos e artificiais. Em consequência disso, acumulamos excesso de bagagem, coisas que deslizam para o fundo do rodamoinho e não podem fluir de novo. Assim, as coisas vão entupindo nosso rodamoinho e o processo fica confuso.
O rio precisa fluir naturalmente, sem empecilhos. Se o nosso rodamoinho particular está todo entulhado de coisas, acabamos também prejudicando o rio em si. Ele não conseguirá ir a parte nenhuma. Os rodamoinhos próximos terão menos água em virtude de nosso apego desesperado. O melhor que podemos fazer por nós e pela vida é manter a água de nosso rodamoinho fluindo e limpa para que apenas continue seu curso. Quando fica represada, criamos problemas mentais, físicos e espirituais.
A melhor maneira de servirmos outros rodamoinhos é permitindo que a água que entra no nosso tenha liberdade para escorrer através dele e ir em frente solta e rápida, para atingir qualquer outro ponto que precise ser mobilizado.
A energia da vida busca uma rápida transformação. Se conseguirmos ver a vida dessa maneira e não nos apegarmos a nada, a vida simplesmente vem e vai. Quando detritos chegam ao nosso pequeno rodamoinho, e se seu fluxo for harmônico e forte, eles ficam girando por ali durante um certo tempo e depois seguem adiante. Não é assim porém que vivemos. Como não percebemos que somos simples rodamoinhos no rio do universo, consideramo-nos entidades separadas que precisam proteger seus limites.
O próprio julgamento "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso rodamoinho, fazemos de tudo para evitá-lo, para expulsá-lo, ou para, de alguma maneira, controlá-lo.
Noventa por cento da vida é gasta na tentativa de criar limites em torno do rodamoinho. Estamos constantemente na defensiva: "Ele talvez me magoe"; "Isso pode dar errado"; "Não gosto dele de jeito nenhum". Esse é um completo mau uso da nossa função vital e, mesmo assim, todos nos comportamos dessa forma, em maior ou menor escala.
As preocupações financeiras refletem nosso esforço para manter limites fixos. "E se o meu investimento fracassar? Talvez eu perca todo o meu dinheiro." Não queremos que nada ameace nosso suprimento monetário. Todos pensam que isso seria uma coisa terrível. Sendo protetores e ansiosos, apegando-nos aos nossos bens materiais, entulhamos nossas vidas.
A água que deveria estar correndo, entrando e saindo, para poder servir, torna-se estagnada. O rodamoinho que ergue um dique à sua volta e se isola do resto do rio se torna estagnado e perde sua vitalidade. A prática consiste em não se estar mais preso ao que é particular, mas em enxergá-lo como realmente é — uma parte do todo.
Apesar disso, gastamos a maior parte de nossa energia criando água parada. É isso o que acontece quando se vive no medo. O medo existe porque o rodamoinho não entende o que é, ou seja, nada além do próprio rio. Enquanto não tivermos um vislumbre dessa verdade, toda nossa energia estará indo na direção errada. Criamos muitos pontos de estagnação que geram contaminação e doenças. Esses pontos estagnados em busca de proteção dentro de diques começam a brigar uns com os outros. "Você fede. Não gosto de você." Águas estagnadas causam muitos problemas. O frescor da vida está perdido.
A prática do zen ajuda-nos a ver de que maneira criamos estagnação em nossa vida. "Será que eu fui sempre tão zangado e nunca reparei?" Assim, nossa primeira descoberta na prática é reconhecer nossa própria estagnação, criada por nossos pensamentos centrados em nós mesmos.
Os maiores problemas são criados por aquelas atitudes que não conseguimos enxergar em nós. A depressão, o medo e a raiva que não são reconhecidos criam rigidez.
Quando reconhecemos a rigidez e a estagnação, a água começa a fluir de novo, pouco a pouco. Sendo assim, a parte mais vital da prática é o desejo de ser a própria vida — que é apenas o conjunto das sensações que nos chegam — como aquilo que cria nosso rodamoinho.
Ao longo de muitos anos, treinamo-nos para fazer o oposto: criar pontos de água estagnada. Essa é a nossa falsa conquista. Desse esforço incessante nascem todos os nossos problemas e o nosso distanciamento da vida. Não sabemos como ser íntimos, como ser um fluxo de vida.
Um rodamoinho estagnado, com limites defendidos, não está próximo de nada., Prisioneiros de sonhos centrados em nós mesmos, sofremos, como dizem os votos diários de um de nossos centros de zen.
"Preso num sonho autocentrado: somente sofrimento/Apegado a pensamentos autocentrados: exatamente o sonho. A cada momento, a vida é assim: a única mestra./Ser somente este momento: o caminho da compaixão".
A prática é a lenta inversão disso. Para a maioria dos estudantes, essa inversão e trabalho para uma vida inteira. A mudança é em geral dolorosa, principalmente no início. Quando estamos habituados à rigidez e à inflexibilidade de uma vida defendida, não queremos dar permissão para que novas correntes de energia cruzem o espaço da consciência, por mais rejuvenescedoras que sejam.
A verdade é que não gostamos muito de ar fresco. Não gostamos muito de água limpa. Leva muito tempo até conseguirmos enxergar nosso sistema de defesa e manipulação da vida em nossas atividades diárias.
A prática ajuda-nos a enxergar tais manobras com mais clareza, e essas constatações sempre são desagradáveis. Ainda assim, é fundamental que vejamos o que estamos fazendo. Quanto mais tempo praticarmos, mais prontamente poderemos reconhecer nossos padrões de defesa.
O processo nunca é fácil ou indolor, porém, e aqueles que estão esperando encontrar um lugar fácil e rápido para descansar não deverão embarcar nessa viagem.
Retirado e adaptado de: Nada de especial: Vivendo Zen, de Charlotte Joko Beck, Ed. Saraiva.

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