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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Invictus





Há poucos dias vi dois filmes sobre Nelson Mandela (que em 2010 comemora 20 anos de liberdade ) e ainda estou sob o impacto daquilo que a arte apresenta sobre o líder sul-africano; principalmente o "Invictus" de Clint Eastwood (Invictus 2009).  O outro filme foi "Madela - Luta pela liberdade" (Goodbye Bafana - 2007). Do primeiro vale reproduzir o poema que teria inspirado  Mandela na prisão. É um pequeno poema do poeta Inglês William Ernest Henley (1849-1903).  escrito em 1875 e publicado pela primeira vez em 1888.
Ele vai em três versões: o original (de: 

“Invictus”
por William Ernest Henley

Out of the night that covers me
Black as the pit from pole to pole
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.     

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.  

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate
I am the captain of my soul.    

Invictus
De dentro da noite que me cobre,
Negra como a cova, de ponta a ponta,
Eu agradeço a quaisquer deuses que sejam,
Pela minha alma inconquistável.

Na cruel garra da situação,
Não estremeci, nem gritei em voz alta.
Sob a pancada do acaso,
Minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada.

Além deste lugar de ira e lágrimas
Avulta-se apenas o Horror das sombras.
E apesar da ameaça dos anos,
Encontra-me, e me encontrará destemido.

Não importa quão estreito o portal,
Quão carregada de punições a lista,
Sou o mestre do meu destino:
Sou o capitão da minha alma. 


Invictus
(Invictus)

Autor: William E Henley
Tradutor: André C S Masini

Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.





domingo, 17 de outubro de 2010

Conversando

Por Luiz Fernando Veríssimo
— Ô Liberato...
— Sou todo ouvidos.
— Gostaria de esclarecer uma coisa.
— Vamos pôr os pingos nos is.
— Com franqueza.
— Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
— Nos conhecemos há tempos.
— De longa data.
— Concordamos em muitas coisas.
— Somos feitos do mesmo estofo. Diga-me com quem andas e eu te direi quem és.
— Nos damos bem.
— Unha e carne.
— Às vezes brigamos, por bobagem.
— Dou a mão à palmatória.
— Mas sempre fizemos as pazes.
— Quando um não quer, dois não brigam.
— Confesso que já perdi a paciência com você.
— A perfeição não existe.
— Mas com o tempo me arrependia.
— Temos que dar tempo ao tempo. O mundo dá muitas voltas. Errar é humano.
— Certo. Mas. . .
— E perdoar é divino.
— Certo. Você também já se irritou com outros.
— Sou de carne e osso. Nunca digas, desta água não beberei.
— Lembro da sua briga com o Libório.
— Perdi os cadernos. Se arrependimento matasse, estaria morto.
— E uma vez você quase bateu na Marieta.
— Em mulher não se bate nem com uma flor. Mas não sou de ferro.
— Apesar de ser um homem normalmente  moderado.
— Tenho os pés no chão. Penso duas vezes antes de agir. Tenho uma paciência de santo.
— A briga com os dois foi pela mesma razão, se me lembro bem.
— Memória de elefante. . .
— Eles fizeram um comentário sobre você.
— Quem diz o que quer ouve o que não quer.
— Você ficou magoado, ou tudo já passou ?
— Chuvas de verão.
— Mesmo porque, eles estavam tentando ajudar.
— Não levo desaforo para casa.
— Não era desaforo. Eles estavam chamando a sua atenção para um fato de que você talvez não se tenha dado conta. Está claro?
— Como dois e dois são quatro.
— As pessoas às vezes não se conhecem. Você se conhece?
— Como a palma da minha mão.
— Mas pode não conhecer tudo.
— Entre o céu e a terra há muita coisa que a nossa. . .
— Certo, certo. Você tem que entender que nem sempre a crítica é maldosa.
— Honi soit qui mal y pense.
— Isso. Ê uma questão de interpretação.
— Tudo é relativo.
— Claro. Você pode ter interpretado mal.
— Estou em paz com a minha consciência. Quem não deve não teme. Tenho a consciência tranquila. O tempo dirá. Minha vida é um livro aberto.
— Mas você reconhece que pode ter interpretado mal.
— Tudo é possível neste mundo.
— O Libório e a Marieta podiam ter toda a razão.
— Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
— Talvez pudessem ter dito de outra maneira.
— Depois da porta arrombada, tranca de ferro. Depois de entornado o caldo...
— O que eles queriam dizer...
— Querer é poder.
— Certo. Eles queriam chamar sua atenção para esse hábito...
— O hábito não faz o monge.
— Pois é. Para o seu hábito de só falar com frases feitas.
— A boca é minha!
— Escute. Não fique brabo outra vez. Deixe eu falar.
— Palavras loucas, orelhas moucas.
— Mas você tem que concordar que...
— Não dou o braço a torcer.
— Você nunca disse uma frase original na sua vida!
— Nunca é muito tempo. Não devo satisfações a ninguém. Quem sabe de mim sou eu. Os incomodados que se mudem. Vocês são vinho da mesma pipa. Deus é testemunha. A mentira tem pernas curtas. A justiça tarda, mas não falta.
— Calma, calma.
— Vocês vão ver com quantos paus se faz uma canoa!
— Espere. Desculpe. Está bem. Foi uma grosseria minha. Você tem razão. Se já existem as frases feitas, para que inventar outras ? Não digo mais nada.
— De boas intenções o inferno está cheio.
— Não fique magoado. Vamos conversar. Ê conversando que a gente se entende.
— Agora você está falando a minha língua!

sábado, 16 de outubro de 2010

Fatos que sempre acontecem em qualquer novela


01. Aconteça o que acontecer, sempre no final da novela o vilão morre, fica louco ou vai preso e o resto da novela se casa e/ou tem filhos.

02. As personagens sempre acordam de maquiagem feita.

03. Em novelas de época, sempre um pouco antes de uma mulher casar com um homem que foi escolhido pela família ela conhece outro homem e no final se casa com ele.

04. As mesas de café da manhã são sempre fartas (típico de brasileiro).

05. Pobre nunca repete roupa.

06. O herói e mocinho da novela pode pegar dois tiros nas pernas, uma facada no braço, um choque ou qualquer coisa do tipo, mas sempre depois de tudo isso vai ter força de correr, escalar prédios, lutar e ganhar do vilão.

07. Não importa onde os personagens fiquem doentes, sofram acidentes ou tenham um ataque cardíaco, eles sempre vão internados no mesmo hospital.

08. O numero '07' vale para as cadeias também.

09. Sempre quando estão escrevendo alguma coisa no computador as pessoas falam em voz alta o que estão escrevendo.

10. O vilão que sempre tenta se casar com a mocinha, sempre tem um caso secreto com a vilã.

11. Sempre antes de matar alguém o vilão tem um diálogo de 30 minutos com a pessoa que ele vai matar.

12. Sempre o núcleo principal da novela é em São Paulo ou no Rio de Janeiro.

13. O mocinho e a mocinha se conhecem no inicio da novela, se apaixonam, passam a novela inteira brigando ou longe um do outro por um motivo X no final acabam casando.

14. Todos os celulares tem o toque padrão (ring ring) ninguém utiliza MP3 como toque.

15. Qualquer ligação que o ator vai fazer de um telefone fixo, ele só utiliza umas 2 teclas e já está magicamente conectado com a pessoa que precisa conversar.

16. Todos sempre acordam atrasados e não tomam café da manhã, deixando a mesa cheia de comida sempre.

17. Zé Mayer sempre pega pelo menos 5 mulheres em cada novela.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Caminho do Guerreiro II

David Cohen
A classe dos samurais tem sua origem no sistema Rondei, de 792 d.C., em que os jovens filhos de aristocratas foram convocados para revivei" o exército. Esses oficiais montavam a cavalo, vestiam armadura e usavam o arco e a espada. Esse novo exército conseguiu finalmente desalojar os habitantes originais do país, os Ainu, que foram mandados para a ilha de Hokkaido, bem ao norte. Até hoje ainda há ressentimentos entre os Ainu e os demais japoneses.
Com o correr dos séculos, o feudalismo japonês incentivou a formação da classe samurai. Os guerreiros defendiam seus senhores (os daimyo), e cada clã formava seu estilo de luta. Num dado momento, o Japão teve mais de 700 estilos de combate diferentes.

“Mesmo quando seu espírito estiver tranqüilo,
não deixe seu corpo relaxar,
e quando seu corpo relaxar,
não deixe o espírito se soltar”

Até que, em 1573, o daimyo Oda Nobunaga conseguiu tomar o controle de quase todo o país e tornou-se xogum, ou ditador militar. Ele foi assassinado nove anos depois, mas a unificação do país prosseguiu, primeiro com Toyotomi Hideyoshi, depois com Tokugawa Ieyasu, que em 1603 tornou-se oficialmente o xogum do Japão e estabeleceu uma ditadura familiar. Como a maior ameaça ao xogum provinha dos senhores feudais, Tokugawa criou um sistema de alianças que, na prática, cristalizou uma estrutura de classes. Os samurais passaram a ser uma casta em que o título passava de pai para filho.
Com o desarmamento de vários exércitos particulares dos senhores feudais, o início do século 17 viu crescer o fenómeno dos ronin, os samurais sem daimyo, que rondavam o país. Os samurais eram oficialmente a classe mais alta, mas, a não ser que fossem donos de terras, não tinham como se sustentar. Por isso, vários ronin buscavam fama em combates com escolas estabelecidas, na esperança de serem contratados por algum daimyo. Era o que se chamava de Mu-sha-Shugyo, a peregrinação do guerreiro, uma jornada em busca de oponentes para provar suas habilidades.
Foi nessa época que surgiu Musashi. Em muitos aspectos, ele era bastante diferente do samurai típico de sua época. Durante a infância, há relatos de que Musashi contraiu uma séria doença de pele. Em termos de porte físico, ele podia ser considerado um gigante para a época, com mais de 1,80 metro, quando a média japonesa era de l,53 metro. Também diferia dos demais em relação à higiene, tão preciosa para o Bushido (um samurai devia estar sempre impecável, pois se morresse nas mãos do inimigo qualquer mancha desonraria seu senhor). Reza a lenda que, durante sua peregrinação guerreira, Musashi não se preocupava em tomar banho, apenas concentrado em treinar a espada o máximo de tempo possível. Não fazia o coque nos cabelos tradicional dos samurais, não seguia nenhuma profissão, não constituiu família, não tinha as roupas lavadas a não ser quando a chuva lhe caía em cima. Esse descaso, aliado à doença de pele e ao seu porte, devia conferir-lhe um aspecto aterrorizante aos olhos dos oponentes.
Seu primeiro combate, segundo seu próprio relato, foi aos 13 anos, quando matou um samurai chamado Arima Kibei, relativamente famoso na região. Aos 21 anos ele foi para Kvoto, onde começou uma série de combates. Foram mais de 60 em uma década. Ou se¬ja, ele se bateu em um duelo mortal a cada dois meses, em média.

“Um espírito elevado é fraco,
e um espírito rebaixado é fraco.
Não deixe que o inimigo veja seu espírito”

Um dos mais importantes foi contra a prestigiada família Yoshioka. O patriarca, Seijiro, foi o primeiro a lutar com Musashi. Ele tinha uma espada de aço, e Musashi, uma de madeira. Mesmo assim, Segiro tomou uma pancada e perdeu os sentidos. De vergonha, cortou seu coque de samurai. Seu filho, Denshichiro, foi o próximo. Como estratégia, Musashi chegou atrasado ao local do combate, e seu oponente, irritado, perdeu a concentração. Foi morto com um golpe na cabeça. Seijiro mandou então seu caçula, Hanshi-chiro, uma criança, para o combate. Dessa vez, Musashi chegou cedo, escondeu-se entre as árvores e percebeu dezenas de homens que preparavam uma emboscada. De surpresa, ele pulou em cima dos inimigos, matou o garoto e fugiu, abrindo um caminho de sangue com suas duas espadas.

“Há um momento certo para tudo.
O senso de oportunidade
não pode ser dominado
sem uma grande dose de paciência”

O duelo mais conhecido foi contra um exímio samurai chamado Sasaki Kojiro, em 1612. Musashi teve oportunidade de ver a espada de Kojiro antes do combate e constatou que ela era maior que o normal. Ele então esculpiu uma espada a partir de um remo e deixou-a escondida atrás de seu quimono. Quando Kojiro o atacou, Musashi deu um salto e, a l metro do solo, acertou a cabeça do oponente com a espada de madeira, matando-o.
Depois disso, aos 30 anos, ele montou sua própria escola de Kenjutsu (a arte da espada). A partir daí, parou de usar espadas de verdade em seus combates. Mesmo em sua geração Musashi já adquirira fama de imbatível. Segundo algumas versões, participou ainda de algumas guerras, mas na maior parte do tempo dedicou-se a ensinar, meditar, pintar e pensar sobre estratégia marcial. Ele escreveu que, aos 51 anos, atingiu o estado de "total entendimento", que lhe permitiu dominar outros caminhos de iluminação sem precisar de mestre. Aos 59 anos, retirou-se para uma vida reclusa, numa caverna. Aos 61 anos, poucas semanas antes de morrer, entregou seu livro Gorin No Sho a um discípulo.
Revista Playboy Outubro de 2005

O Caminho do Guerreiro I

David Cohen
“Estude a estratégia ao longo dos anos
e conquiste o espírito do guerreiro.
Hoje será a vitória sobre o você de ontem.
Amanhã será a vitória sobre os mais fracos”

Este chamamento para a arte da espada está no livro Gorin No Sho (O Livro dos Cinco Anéis), de Miyamoto Musashi - assim como as demais citações em destaque nestas páginas. O principal samurai de todos os tempos, Musashi venceu mais de 60 duelos de vida ou morte no início do século 17, desenvolveu um estilo próprio de luta, com duas espadas ao mesmo tempo - o Niten, ou "dois céus" -, encarnou o mito do guerreiro peregrino em busca do aprimoramento pessoal, dominou artes como carpintaria, pintura, jardinagem e poética, atingiu uma espécie de iluminação zen-budista e, por tudo isso, tem legiões de seguidores até os dias de hoje. Só no Brasil, são 800 alunos do Instituto Niten, liderado pelo mestre Jorge Kishikawa, que pertencem 11ª geração de guardiões do estilo de Musashi.
Todo mundo já leu, viu no cinema ou pelo menos já ouviu falar dos samurais, a classe guerreira japonesa que, parecida com os cavaleiros da Idade Média européia, defendia os feudos de seus se¬nhores, vivia metida em duelos e prezava sua honra acima de tudo. Mas o que os torna realmente especiais é o Bushido - literalmente, o caminho do guerreiro, uma espécie de código de conduta desenvolvido entre os séculos 9 e 12 que sobreviveu até 1868, quando o Japão se abriu para o mundo e a monarquia recuperou o poder das mãos dos xoguns, ou ditadores militares.
Embora o combate com espadas tenha sobrevivido apenas como esporte, o Bushido ainda sobrevive, em parte, nos ensinamentos de pai para filho. Um dos grandes mestres das artes da espada hoje é Tsunemori Kaminoda, 78 anos, guardião do estilo do bastão e da foice e da corrente, entre outros. Kaminoda, que esteve no Brasil em agosto, aponta o principal preceito do Bushido, para os dias de hoje, em sua opinião: "Aja com espírito de vida ou morte em todas as situações". Eis alguns outros exemplos desse código:
• Para o samurai, não existem duas palavras.
"O que você falou, tem de cumprir", explica Kishikawa. do Instituto Niten. Pedir a um samurai que assine um contrato chega a ser uma ofensa. Quando ela dá sua palavra, não volta atrás.

• Shobuishun. Um combate termina em um segundo.
"Você tem de treinar sem saber quando acaba o treinamento", diz Kaminoda. "Ele pode durar dias, anos ou séculos. E só vai ser aplicado em um segundo."
• A espada não pode estar embainhada por muito tempo nem desembainhada por muito tempo.
"Você não pode ser subserviente nem impositivo", afirma Kishikawa.
• A coisa mais importante é o cotidiano.
Não se guarde para grandes acontecimentos. O que vale, na vida, é o que você faz a cada momento.
• Após a vitória, um samurai deve amarrar o cordão do seu elmo.
"Não se deve comemorar, e sim apertar ainda mais o elmo, para os próximos combates", diz Kishikawa.

Em linhas gerais, o Bushido (lê-se bushi-dô) enfatiza os valores de lealdade, honra, justiça, auto-sacrifício, pureza, modéstia, simplicidade, frugalidade e refinamento. Poucas normas são tão antigas e, ao mesmo tempo, tão em sintonia com a modernidade. Nesses tempos de crise moral e perda de valores tradicionais, o Bushido exerce grande atração sobre os jovens, com sua ênfase na disciplina e na retidão. Para um mundo desencantado de religiões e metafísicas, oferece a sacralização do aqui e agora, a iluminação dentro mesmo do estresse cotidiano. Não se trata de fugir do mundo, mas de vencê-lo em combate.
O código tem forte influência de quatro grandes doutrinas: o budismo, o zen, o confucionismo e o xintoísmo. Do budismo vem a noção de uma seqüência de existência aqui na Terra, mesmo. Por isso, a honra era mais importante que a vida. Se fosse conspurcada, a mancha seguiria por várias encarnações. A meditação zen ensina a ter foco e, pela prática de uma arte, atingir um estado de iluminação. O xintoísmo, que atribui divindade a elementos cotidianos e ancestrais, incentiva a devotada lealdade ao clã e, em última instância, ao imperador. Do confucionismo vieram as regras para as relações morais entre servo e senhor, pais e filhos, marido e mulher, etc. Os samurais, no entanto, discordavam da ênfase intelectual dessa doutrina. Enquanto os ocidentais têm

“Dominar a virtude da espada longa
é governar o mundo e a si mesmo.
Em minha estratégia,
um homem equivale a 10 mil”.

Um ditado como "a pena vence a espada", um japonês diria bunbu ichi, ou "pena e espada em sintonia". Há também elementos de autocontrole e estoicismo. Para ser plenamente honrado, um guerreiro não podia mostrar sinais nem de dor nem de alegria.
Revista Playboy Outubro de 2005

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Um Apólogo por Machado de Assis

Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
– Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe,  por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com sua vida e deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora quem quem os cose sou eu, e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados…
– Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando…
– Também os batedores vão adiante do imperador.
– Você é imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto…
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima…
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulhada espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. e enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
– Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: – Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária”

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Rasputin: O homem que previu sua própria morte.

Grigoriy Yefimovich Rasputin foi um místico russo, nasceu dia 22 de janeiro de 1869 em Pokrovskoie, Tobolsk e foi assassinado no dia 29 de dezembro de 1916 aos 47 anos em Petrogrado, actual São Petersburgo. Foi uma figura influente no final do período czarista da Rússia.

Por volta de 1905, a sua já conhecida reputação de místico introduziu-o no círculo restrito da Corte imperial russa, onde diz-se que Rasputin chega mesmo a salvar Alexei Romanov, o filho do czar, de hemofilia.

Perante este acontecimento, a czarina Alexandra Fedorovna dedicar-lhe-á uma atenção cega e uma confiança desmedida, denominando-o mesmo de "mensageiro de Deus". Com esta proteção Rasputin passa a influenciar ocultamente a Corte e principalmente a família imperial russa, colocando homens como ele no topo da hierarquia da poderosa Igreja Nacional Russa.

Todavia, o seu comportamento dissoluto, licencioso e devasso (supostas orgias e envolvimento com mulheres da alta sociedade) justificará denúncias por parte de políticos atentos à sua trajetória poluta, entre os quais se destacam Stolypine e Kokovtsov. O czar Nicolau II afasta então Rasputin, mas a czarina Alexandra mantém a sua confiança absoluta no decadente monge.

A Primeira Guerra Mundial trouxe novos contornos à atuação de Rasputin, já odiado pelo povo e pelos nobres, que o acusaram de espionagem ao serviço da Alemanha. Escapa à várias tentativas de aniquilamento, mas acaba por ser vítima de uma trama de parlamentares e aristocratas da grande estirpe russa, entre os quais Yussupov.

Pouco antes de morrer, Grigori Rasputin enviou uma carta ao que seria o último czar da Rússia, Nicolau II, na qual fazia uma predição inquietante para a família real Romanov que suporia o assassinato do próprio czar, da czarina e de todos seus filhos:

"... tenho o pressentimento de que morrerei antes de 1º de janeiro (1917). Se eu for assassinado por gente comum, especialmente por meus irmãos os camponeses russos, então o czar da Rússia não deve se preocupar por seus filhos, que reinarão na Rússia outros cem anos, mas se eu for assassinado pelos boyardos e nobres (suas relações) digo que ninguém da sua família, nenhum de seus filhos, viverão mais de dois anos. Eles serão assassinados pelo povo russo. ...Vou ser assassinado. Já não estou entre os vivos. Reza, reza, seja forte, pensa em tua família..."
Grigori

Como foi o atentado:

Em Petrogrado (São Petersburgo) na noite do dia 29 de dezembro de 1916 o Príncipe Félix Yusupov convidou Rasputin para ir a seu palácio. Encontram-se presentes também, entre outros nobres, o primo do czar, o grande duque Demetrio Romanov.

Apesar de beber o vinho que Félix e Demetrio tinham previamente envenenado... Rasputin não morre.

Quando o veneno falha, Félix Yussopov dispara em Rasputin pelas costas... o monge também não morre.

Outros conspiradores fazem novos disparos. Um dos tiros atinge a cabeça... mas Rasputin não morre.

O Príncipe Yussupov também golpeia Rasputin com uma porrete de madeira... O monge segue vivo.

Finalmente, envolvem o corpo em um lençol e levam-no em um carro até o quase congelado Rio Neva, onde jogam o corpo. Dois dias depois, quando o corpo foi recuperado no rio, a autópsia revelou que seus pulmões estavam cheios de água: Rasputin morreu por afogamento, e com seus braços em posição vertical, como se tivesse lutado por sair do gelo.

Três meses após o assassinato de Rasputin, perpetrado pela mão dos nobres, Nicolau II abdicou como czar (março de 1917). E menos de dois anos mais tarde, o resto da predição do "monge louco" se realizou: nenhum membro da família sobreviveu à execução na madrugada do 17 de julho de 1918.

Muito falou-se sobre esta predição de Rasputin sobre sua morte, alguns falam de profecia e maldição do monge louco. No entanto, o que sim podemos dizer com segurança a estas alturas é que por aqueles anos, Rasputin tinha se transformado em um personagem muito poderoso e influente e colecionava um grande número de inimigos.

O próprio Rasputin, sempre bem informado, sabia disso e como ele próprio previu: se não fossem uns (o povo) seriam outros (os nobres) que acabariam com sua vida. O que não sabiam é que ia custar tanto.

Nota: Algumas investigações recentes pintam um quadro diferente sobre a morte de Rasputin, inclusive afirmam que em seu assassinato participaram diretamente os serviços secretos britânicos.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O Modo De Viver Taoista II

Por John Blofeld 
As necessidades de um taoista são poucas e simples. Seu alimento pode ser nutritivo e saboroso, sem a adição de ingredientes exóticos e extraordinariamente dispendiosos; suas roupas podem corresponder ao clima e serem atraentes, sem serem excessivamente numerosas ou confeccionadas com tecidos caros; pode-se muito bem viver com muito conforto sem peles ou joias caras, que, afinal, dão muito trabalho, pois precisam ser guardadas com muito cuidado; e também é possível arrumar um quarto ou morar de uma forma perfeitamente agradável sem fazer grandes gastos.

Em resumo, não há nenhuma vantagem — mas sérias e várias desvantagens - em possuir qualquer coisa em excesso e em adquirir e ir em busca de coisas caras e raras. Os adeptos do Caminho sabem, por instinto, como combinar o prazer de um conforto modesto e da beleza com um pouco de frugalidade; acima de tudo, eles fogem da ostentação.

Tenho que admitir que, embora o Taoismo ofereça um modo de viver admirável, não tem meios específicos de resolver o grande número de problemas que afligem nossas grandes cidades; esses problemas exigem soluções que estão além da capacidade de um indivíduo. Mesmo assim, como um lamaçal escuro torna-se um pouquinho menos opaco a cada gota de chuva pura ou de orvalho que ali caia, também a qualidade de densas comunidades urbanas pode melhorar a cada indivíduo que se torne livre de ganância, cobiça, extravagância, inveja e transações fraudulentas. Se no Ocidente os valores taoistas chegarem a ser apreciados por grande número de pessoas, especialmente se algumas dessas pessoas ocuparem postos de decisão, a sociedade como um todo, tanto quanto essas pessoas, será beneficiada.

A tolerância serena, bem-humorada, que caracteriza os seguidores do Caminho, torna-os avessos a interferências. Tranquilos no encalço de sei objetivos, felizes em partilhar sua sabedoria com todos os que deles s aproximam, por iniciativa própria, para pedir ajuda ou conselho, contentam-se em deixar os outros inteiramente livres para viverem as suas vidas com melhor lhes aprouver, para "seguirem o seu próprio caminho".

Os mestres s relutam em qualificar-se de missionários ou de pessoas indiscretas; de fato, têm uma tendência tão grande para evitar qualquer publicidade que seus vizinhos mais próximos podem ignorar totalmente que viver à pouca distância de um sábio. Sem dúvida, esta é uma das razões pela quais é tão difícil encontrá-los. Um chinês meu amigo, com considerável influência em círculos s e budistas, não foi capaz recentemente de persuadir alguns eruditos seguidores do Caminho, em Taiwan, a visitar América, onde numerosas pessoas se sentiriam honradas e encantadas em procurá-los.

Nas circunstâncias atuais, essa ausência total de espírito missionário é um tanto infeliz, mas os seguidores ocidentais do Caminho fariam melhor se escondessem a sua lâmpada em algum lugar; a impaciência em se considerado guru não condiz com uma atitude  de vida. Como disse Lao-tzü a respeito dos sábios do passado, "Eles eram reservados e hesitantes como se sentissem acanhados com as pessoas que os rodeavam, e tratavam todos com respeito, como se trata um convidado de honra". Até hoje não se encontra um verdadeiro sábio taoista que proclame "Eu sei tudo sobre o Tao. Se você quiser conquistar a meta, inscreva-se na minha escola".

Auto promoção é algo tão estranho ao espírito taoista que de fato é difícil encontrar-se um professor, mas isso é melhor do que ter uma grande quantidade de professores que se proclamem tais, mas que, pouco instruídos na matéria provavelmente irão desencaminhar discípulos  entusiasmados. Ademais, essa autopromoção serve de critério para julgar quais professores não devem ser procurados, isto é, quem quer que proclame em excesso o próprio avanço no Caminho.

Por outro lado, é diferente o caso de alguns bons professores que dão a conhecer a própria linhagem, pois esse tipo de informação geralmente pode ser verificada. Por linhagem entende-se o nome do professor do professor, o professor desse professor, e assim por diante, retrocedendo talvez por muitas gerações. Na China, descobrir a linhagem espiritual de um professor era um dos modos de averiguar se ele tinha algo de valioso a ensinar No Ocidente, com o correr do tempo, podem haver professores qualificados para ensinar iogas bem mais avançadas do que as contidas aqui; e um dos modos de identificá-los inicialmente será descobrir o nome dos professores que os instruíram.

A principal regra para a dieta dos adeptos do Taoismo (assim como de todo tipo de pessoas que se dedicam seriamente à meditação) é comer moderadamente. Aos adeptos ocidentais recomenda-se alimentarem-se com simplicidade e evitarem refeições pesadas, mas sem se oporem puritanamente a uma cozinha saborosa. Ascetismo rígido ou abusos, ambos significam um afastamento do Caminho, assim como a preocupação excessiva com o que comer e com o que não comer, pois a preocupação leva à ansiedade. Tão prejudicial à saúde física e mental como um veneno lento. O Taoísmo inculca uma atitude de desprendimento em relação a todas as coisas.

Os adeptos do Taoísmo, embora bebam vinho e bebidas alcoólicas com moderação, especialmente em tempo frio ou úmido, consideram a embriaguez, mesmo a ocasional, um afastamento do Caminho, uma vez que não é benéfica à saúde e de modo algum contribui para um progresso na meditação iogue. O tabaco é nocivo do ponto de vista iogue porque não contribui para um perfeito funcionamento do sistema respiratório.

Poucos taoistas fazem votos de castidade. Não ocorreria a um taoísta equiparar a relação sexual ao pecado, pois o sexo é uma função natural. Desejos reprimidos e fantasias angustiantes podem enfraquecer a saúde física e mental muito mais do que uma prática sexual cuidadosamente regulada, a qual é, portanto, considerada coerente com o cultivo do Caminho, principalmente durante os seus primeiros estágios. A ênfase está na moderação para evitar o dano que em algumas circunstâncias pode ser causado pela rígida castidade e, por outro lado; para inibir a frequência excessiva da emissão seminal, os taoistas advogam um regime de continência.
(Retirado e adaptado de: BLOFELD, John. O Portal da sabedoria: Iogas contemplativas e curativas, taoístas e budistas, adaptadas para os seguidores do Caminho no Ocidente. São Paulo : Editora Pensamento, 1984.)

O Modo de Viver Taoista I

Por John Blofeld
Um iniciado no Taoísmo é alguém que consegue assemelhar-se aos Três Amigos do Inverno. Como o pinheiro, ele pode esperar conseguir uma longevidade notável. Como a ameixeira do inverno, cujas pétalas carmesins cintilam ao contato com a neve, ele floresce na adversidade, serenamente inabalável em meio ao frio e à melancolia do inverno Como o bambu, ele é tão forte, e não obstante tão flexível, que se curva facilmente para adaptar-se aos ventos predominantes das circunstâncias e, longe de ser quebrado por eles; volta para trás novamente com uma elasticidade incomparável. Dessas três qualidades, a última é de suprema importância; é esta que ele deve almejar, pois as outras virão por si próprias.

Ser tenso, rígido, severo, inadaptável, rigoroso na conduta e na crença, intolerante, sem humor; ofender-se facilmente, incomodar-se, abater-se, preocupar-se, queixar-se, ser completamente subjugado pela adversidade — tudo isso se constitui na própria antítese das qualidades taoistas. As pessoas que se orgulham em poder ir contra a corrente, remar contra a maré, nunca serão bons taoistas, a menos que mudem de atitude.

Um taoista conserva a sua. energia, conformando-se e adaptando-se a cada situação. Ele pode ser Tão forte quanto a correnteza de uma queda d'água, mas isso não o faz lutar inutilmente contra obstáculos insuperáveis ou que podem ser facilmente contornados.

Como não da qualquer importância ao que as pessoas possam pensar, não se orgulha do heroísmo pelo heroísmo e, portanto, procura sempre pelo caminho mais fácil. Isso não quer dizer que ele goste de abandonar os objetivos, mas somente que não tentará o impossível nem gastará mais energia do que a estritamente necessária para atingir o possível. De modo algum preguiçoso, ele conserva os seus poderes para tirar o máximo proveito deles.

Um taoista não almeja a notoriedade ou a estima popular. Embora goste de ser útil quando solicitado, fará o que deve ser feito com o mínimo de estardalhaço e se retirará da atenção pública na primeira oportunidade possível, contente pelo fato de outros receberem o crédito. Ele e o eterno nômade que tranquilamente aceita as coisas como elas vem, usando de energia quando necessário, mas nada tenso na intimidade.

Quando as coisas vão bem, ele as usufrui integralmente, como o faria alguém, numa floresta, encantado com uma visão inesperada de prímulas, deleitando-se com o viço de sua beleza durante alguns momentos, sem o menor desejo de colher ou de possuir, para depois seguir adiante.

Quando acontece algo de mal, ele o aceita sem se lamentar, sabendo muito bem que não pode haver movimento ascendente sem o seu contrário, verão sem inverno, crescimento sem declínio; além do que, ele logo descobre a beleza do aparentemente triste e encontra compensações em coisas que a outras pessoas pareceriam males sem alívio — como um amigo meu que, abatido na meia-idade pela pólio, reagiu ao prognóstico do médico de que ele estaria confinado à cama pelo resto da vida, exclamando: "Ali, finalmente terei todo o tempo que desejo para ler!"

Por estas e outras razões, há uma especial afinidade entre os taoistas e a água corrente, que é ao mesmo tempo o mais fraco e o mais forte dos elementos. Os rios persistem no rumo de sua meta, mas não atacam obstáculos que podem ser contornados; e, se não conseguem achar nenhum caminho em torno de um muro de pedra, eles o corroem com tanta paciência que quase sempre é impossível perceber o progresso de sua conquista.

Quando os cursos de água, nos terrenos em declive, podem correr sem esforço, eles o fazem; enquanto na planície, onde se tomam mais amplos e largos, seu movimento muitas vezes é invisível mas nunca pára. Acredito que Lao-tzú tinha em mente a água quando escreveu: "A coisa mais fraca que há no céu e na terra luta contra a mais forte e a vence. Vinda do nada [isto é, invisivelmente, na forma de vapor]; ela penetra onde não há nenhuma fenda [isto é, através dos minúsculos poros da pedra]. Eu conheço, portanto, o valor do wu wei [literalmente, "ausência de atividade"]. O ensino sem palavras e o valor do wu wei não costumam ser reconhecidos pelo mundo".

Wu wei, o termo taoista favorito, é difícil de traduzir satisfatoriamente e já suscitou diversos equívocos sobre o modo apropriado de cultivar o Caminho. Creio que ele indica a ausência de atividades que não sejam essenciais à natureza de uma situação, nenhum esforço perdulário. A natureza, o mestre amado de Lao-tzú, está em contínua atividade, mas não se trata de uma atividade de um tipo desnecessário. As árvores que crescem na sombra inclinam-se na direção do sol; todas as plantas extraem o alimento da terra e do céu, os pássaros constroem ninhos e caçam vermes para alimentar-se e aos filhos; os esquilos armazenam nozes para usar no inverno; os peixes nadam e os tigres saltam — mas estas são ações que respondem a uma necessidade, às exigências do Aqui e do Agora.

Não procedem do cálculo ou de um desejo de notoriedade, ou de poder, de alguma vantagem ou de lucro, nem são levadas a excessos. Um veado pode pastar com segurança sob o olhar de um tigre, se este estiver suficientemente alimentado. É verdade que alguns peixes põem enormes quantidades de ovos, mas essa prodigalidade responde a uma necessidade real em partes do oceano onde as chances de sobrevivência de um ovo são mínimas. Nenhuma dessas atividades viola o princípio do wu wei, ao passo que monopolizar um mercado ou procurar ser alguém às custas de outrem são atividades que não se harmonizam com ele.

(Retirado e adaptado de: BLOFELD, John. O Portal da sabedoria: Iogas contemplativas e curativas, taoístas e budistas, adaptadas para os seguidores do Caminho no Ocidente. São Paulo : Editora Pensamento, 1984.)