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sábado, 9 de outubro de 2010

Veríssimo e as divisões

Por Luiz Fernando Veríssimo
Muitas vezes, nas peladas, o mais difícil é separar os peladeiros em dois times. O certo é cada capitão escolher a sua equipe na base do "Quero este", "Quero aquele", "O Baixinho é meu", "Está bem, eu fico com Ruim de Bola". Mas neste caso há um problema maior: como escolher os dois capitães? Um é o dono da bola, certo, mas e o outro? Melhor é estabelecer, logo, um critério de escalação.
   Solteiro contra casado.
   Preto contra branco!
   São quatro pretos contra doze brancos... Está parelho.
   Os de chuteira contra os sem chuteira.
   Massacre! Massacre!
   Formados contra não formados.
   Discriminação social, não!
A divisão pode chegar a metafísica.
   Quem acredita em Deus, deste lado. Ateus do outro.
   Espera aí. E agnóstico?
   Agnóstico é juiz.
Uma pelada entre pintores:
   Figurativos contra abstratos.
   Certo. Mas os abstratos protestam.
   Protestam, como? Ainda nem começou o jogo.
   Protestamos contra o formato da bola.
   O que que tem a bola ?
   Ê perfeitamente redonda. Hiper-realismo, não!
Diz que recentemente num clube carioca, fechadíssimo, fez-se um torneio de peladas entre vários times que terminou numa renhida final entre Sonegadores e Desquitados Três Vezes. Os Desquitados Três Vezes ganharam, mas os Sonegadores esconderam a taça.
Numa pelada de economistas o time do Intervencionismo Estatal derrotou o do Livre Jogo do Mercado — apesar deste ter infringido todas as regras da ética e do fair play — porque o juiz interveio no último minuto e deu um pênalti a seu favor.
Uma pelada literária entre romancistas e contistas por pouco não sai porque eram quase 60 contistas contra sete romancistas. Ficou combinado que no time dos contistas poderia haver substituições sem limites. Todos os 60 jogaram, mas nenhum teve fôlego para chegar até o fim... Pelada no presídio. Presos contra a guarda. A bola foi chutada por cima do muro e há meia hora esperam que ela seja trazida de volta. Finalmente, providenciam outra bola e fica combinado.
   Da próxima vez que sair por cima do muro, quem vai buscar é um guarda.
Sádicos contra masoquistas. Todos os sádicos querem ser beque-central e os masoquistas querem ficar no gol e serem pisoteados. Quase sai uma briga mas na hora os sádicos se recusam a bater nos masoquistas, que sofrem muito.
E sai uma pelada no hospital. Médicos contra pacientes. Durante a semana que antecede o jogo, por ordem médica, a comida servida no hospital é pior do que a de costume.
   Enfermeira, esta é a mesma galinha que eu mandei de volta para a cozinha, ontem. Reconheço pela sua palidez.
   Viu só ? Ela gostou de você.
   Não dá para comer esta comida. Eu estou ficando fraco. No domingo vou jogar na ponta-esquerda dos pacientes e não vou poder correr. Preciso me alimentar!
   Coma o chuchu cozido, ora.
   Onde está o chuchu cozido?
   Bem aí na sua frente.
   Pensei que isto fosse manjar branco.
   Não, o manjar branco é aquilo verde.
As enfermeiras têm instruções para dar remédios errados, cortarem o soro e negarem toda ajuda aos melhores jogadores dos pacientes. Os médicos fazem reuniões estratégicas com as enfermeiras.
   O paciente do 206 está se recuperando depressa demais. Não gosto do seu estado.
Ele vai jogar no gol deles no domingo e dizem que pega todas. A enfermeira ajeita a saia e confirma.
   Pega sim.
   Suspenda toda a medicação. Apesar de tudo, os pacientes conseguem colocar 11 no campo, contando os de cadeira de rodas. E estão dominando o jogo.
O ponta-direita dos pacientes foge da marcação e investe contra o gol dos médicos.
   Vai nele! — grita o beque-central dos médicos para o lateral — Bate na vesícula. Foi aí que ele foi operado.
   Como é que você sabe ?
   Fui eu que operei. Vai!
O centroavante dos pacientes entra no gol com bola e tudo, arrastando toda defesa médica pela frente. Depois ficam sabendo que ele está internado pelo INPS. Nada o derruba.
Pelada no hospital psiquiátrico. Megalomaníacos contra o resto, claro. Os megalomaníacos dominam o jogo só na empáfia, mas acabam perdendo por falha do seu goleiro, Napoleão Bonaparte, que insiste em jogar com uma mão dentro do colete e só defender com a outra. E a pouca altura não ajuda. Os megalomaníacos também se queixam de que Deus não os ajudou. Deus, que jogou de centromédio, fica sentidíssimo e ameaça com outro dilúvio.

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