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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Humor Afrodescendente

No final da década de setenta e início da década de noventa eu conheci o Luis Fernando Veríssimo na última página da revista “Domingo” do Jornal do Brasil que meu pai comprava todo final de semana. Esperava ansioso pelas crônicas sempre geniais daquela última página. Eu as colecionava e até hoje tenho várias espetadas numa velha pasta de cartolina com as bailarinas já enferrujadas pelo tempo. Revendo-as estes dias, vi que algumas são datadas demais (mas ainda engraçadas para quem tem as referências certas – um eufemismo para não dizer velho), outras já saíram nas inúmeras coletâneas que o autor lançou ao longo dos anos. Mas algumas eu nunca vi em nenhum livro (pode ser que tenha e eu não sei). A que eu vou postar hoje é uma dessas . Uma das melhores (acho que já a vi como um esquete do extinto TV Pirata...). Divirtam-se.

QUEM SABE
Por Luis Fernando Veríssimo
A sala de torturas do castelo. Dois prisioneiros seminus estão sendo esticados em duas rodas, uma de cada lado do palco. Seus torturadores revezam-se em girar as rodas, competindo para ver quem consegue arrancar um gemido mais alto do seu prisioneiro. Um escrivão sonolento, sentado entre as duas rodas, serve de juiz. Amanhece. É o fim do turno da noite na Masmorra.
1º TORTURADOR — Como é?
2º TORTURADOR — Ganhamos nós, longe.
ESCRIVÃO (apontando para o 1º Torturador) — Ganharam eles.
O 1º Torturador dá um soco no ar, em triunfo, e abraça o seu prisioneiro. 
O 2º Torturador, frustrado, faz girar a sua roda com violência. O prisioneiro na roda dá um berro.
2º TORTURADOR — Agora não adianta. Você devia ter gritado assim quando valia ponto.
Os dois torturadores afastam-se das rodas Os dois se espreguiçam demoradamente, gemendo exatamente igual aos prisioneiros.
ESCRIVÃO (guardando a sua pena de ganso, sua tinta e seus pergaminhos e apagando a vela em cima da sua mesa) — Mais uma noite...
1º TORTURADOR (exercitando os braços) — Estou ficando velho demais para este serviço. Depois de urna noite na roda fico todo dolorido (um dos prisioneiros dá um gemido) — Eu sei como você se sente. . .
2º TORTURADOR - Você, velho? Velho está o nosso Chefe. Quarenta anos como Torturador Real, os últimos 10 anos como Torturador-Mor, e ainda é o melhor homem com um ferro em brasa que eu já vi trabalhar.
1° TORTURADOR — E mesmo. Outro dia vi ele arrancando umas unhas. Trabalho limpo, perfeito. E um profissional. Aprendi tudo o que sei com ele.
ESCRIVÃO (vestindo capa e chapéu e preparando-se para sair com seus pergaminhos embaixo do braço) — Mas vocês já imaginaram se houver uma reviravolta e os inimigos do Rei tomarem o Poder ? Nosso Torturador-Mor será caçado como um animal. Todos que já passaram por sua mãos nesta masmorra vão tentar pegá-lo com unhas e dentes (pensa um pouco). Bom, com dentes, pelo menos. (Despedindo-se de todos, inclusive dos prisioneiros) — Bom-dia, rapazes.
TODOS — Bom-dia.
Na saída o Escrivão quase esbarra no Torturador-Mor, que está entrando. 
TORTURADOR-MOR — E então? Conseguiram alguma coisa?
ESCRIVÃO (desenrolando seus pergaminhos, com um suspiro) — Sim. Confessaram tudo. Fazem parte da conspiração contra o Rei. Não foi muito difícil. Confessaram logo. Como ainda era cedo, prosseguimos com o interrogatório.
TORTURADOR-MOR — E então?
ESCRIVÃO (consultando suas anotações) — Deixa ver... Confessaram 117 assassinatos, 200 roubos, 800 blasfêmias e 2 mil adultérios. Também se declararam culpados pelas inundações do ano passado, pela peste negra e pelo estrabismo da Rainha.
TORTURADOR-MOR — Ótimo. Mande os monges fazerem 10 cópias da confissão. Avisa que não precisam caprichar muito na letra. Da última vez eles levaram dois anos.
ESCRIVÃO — Sim, senhor.
O Escrivão sai. Os Torturadores, que se preparavam para sair também, aproximaram-se do Chefe, timidamente.
TORTURADOR-MOR — Excelente trabalho, rapazes. Estou pensando em recomendá-los para um estágio de especialização na Espanha. Eles estão experimentando lá com uma nova técnica, o garrote, que promete revolucionar nossa profissão. Temos que nos manter atualizados.
OS DOIS (entusiasmados) — Obrigado. Excelência!
Pela porta entra um soldado que se perfila e anuncia:
SOLDADO — Cavalheiros, o Rei!
TORTURADOR-MOR (agitado) — O Rei! Aqui? E a primeira vez que ele visita a masmorra. Temos que impressioná-lo, rapazes.
Pela porta, com um salto, entra o Bobo da Corte. Os dois Torturadores se ajoelham na sua frente, confundindo-o com o Rei. O Bobo recupera-se da surpresa e abençoa os dois com exagerada solenidade. Atrás dele entra o Rei cercado de guardas. O Torturador-Mor vai beijar sua mão.
TORTURADOR-MOR (de joelhos) — Majestade. Quanta honra!
REI (entediado) — Levante-se. A esta hora da manhã mal consigo me manter de pé, quanto mais olhar para baixo.
BOBO (imitando um pregoeiro) — São sete horas e o Rei está de ressaca! 
TORTURADOR-MOR - Tenho boas notícias. Excelência. Os dois prisioneiros confessaram que fazem parte da conspiração contra Vossa Majestade. Antes do fim do dia, os dois serão decapitados.
BOBO (para o Rei) — Uma grande ideia para curar ressaca. Majestade. Corta o mal pela raiz.
TORTURADOR-MOR — Suas carcaças serão expostas ao público, para que todos saibam o destino que aguarda os que ousam desafiar a autoridade de Vossa Excelência. Suas cabeças apodrecerão na ponta de estacas.
BOBO (para os prisioneiros) — Sucesso Vocês conseguiram. Chegarão ao topo!
REI — E melhor soltá-los.
BOBO (confidencialmente) — E pedir desculpas. . .
TORTURADOR-MOR — Soltá-los? Por quê?
REI — Porque a conspiração foi vitoriosa. Eu fui deposto. Estou aqui preso, destituído de todos os meus título de todo o meu poder...
BOBO (para o Torturador-Mor indicando os prisioneiros) — Estes homens devem ser libertados imediatamente. No lugar deles, na roda, serão colocados o Rei, por sua tirania, e o Bobo pelas suas piadas.
BOBO (para o Rei) — Isto não estava no contrato!
GUARDA — Os torturadores reais serão presos e executados.
Os guardas seguram o Rei, o Bobo, o Torturador-Mor e os dois Torturadores.
Tentam soltar os dois prisioneiros, mas não conseguem. Depois de algum tempo o Torturador-Mor se impacienta.
TORTURADOR-MOR - Esperem. Não é assim. Vocês acabarão quebrando o braço de um. Deixe eu mostrar. O Torturador-Mor mostra como libertar os prisioneiros. Depois ajuda os guardas colocarem o Rei e o Bobo nas rodas e a prender os pés dos dois torturadores, com correntes, à parede.
BOBO (suspirando) — Eu nunca tive sorte com a crítica...
GUARDA para o Torturador-Mor) — Eles estão bem seguros?
TORTURADOR-MOR - Pode deixar Excelência, me encarregarei de tudo. Devem ser torturados? Eu recomendaria um oitavo de roda de hora em hora e uma aplicação de ferro em brasa e sal na...
GUARDA — Está bem, está bem. Você quem sabe.
1º TORTURADOR (para o outro, indicando o Torturador-Mor com admiração) — Um profissional!

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