“O caminho do zen conduz o demandante por seu próprio vácuo individual e leva-o ao seu vácuo universal. A maioria dos ocidentais vê esse caminho como um caminho de negação profunda, negação de tudo que a pessoa é, e rejeita-o por esse motivo. Os ocidentais acham que essa maneira de ver as coisas dá como resultado um estado de desespero extremo; crer nisso até é compreensível, mas é um erro. (...)
No momento da iluminação, o ego, ou Eu, do demandante se dissolve no nada. Por isso, basicamente a pessoa fica completa e profundamente pobre. Mas, no mesmo instante, aquele nada fica repleto da bem-aventurança infinita d' Ele, do Uno; e, a partir daquele instante, o Uno consegue expressar-se por meio do nada em que o demandante se transformou.
O processo de iluminação transforma o demandante em instrumento do Céu. 'Ele' se expressa por meio do demandante e este, que já não é mais nada, aceita as tarefas que lhe são impostas, sabendo que o grande 'Ele' que está dentro de si mesmo é simultaneamente feitor e escravo. 'Ele' decide o que deve ser feito.
'Ele' usa todo o saber e toda a experiência de si próprio, independentemente de se tratar de um saber espiritual ou humano; apodera-se de tudo que o demandante aprendeu até então, sem excluir nada, e coloca tudo em uso.
Com uma sensação de assombro e beatitude, o demandante percebe de repente que nada do que entregou foi perdido; simplesmente passou a fazer parte do Todo, e de agora em diante será usado a serviço dele. Pertence ao demandante, como pertencia antes; no entanto, ao mesmo tempo também não lhe pertence, pois está nas mãos d' Ele.
Apesar disso, o fato de nada ser perdido não significa não ter mudado. A sensação de iluminação transforma completamente o demandante. Por exemplo, suponha que o demandante seja alguém que sempre se dedicou integralmente à música e nunca perdeu um concerto famoso.
No início, provavelmente a pessoa nem vai notar que já não sente mais vontade de ir a concertos que, antes, jamais pensara em perder. Mas, quando nota, percebe, de repente, com uma espécie de choque, que já não tem necessidade das coisas 'básicas' que até aquele momento haviam constituído sua vida.
Essa liberdade é algo que não pode ser perdido. Tendo sentido 'Ele', a pessoa já não consegue ficar ligada a nada, mesmo que tente. Falando objetivamente, é um estado de pobreza total, pois a pessoa não 'possui' nada, mas a sensação que tem é de liberdade completa.
Outra coisa que se aprende no decorrer deste grande processo é que não existe liberdade parcial. Ou a pessoa é livre, ou não é. Eu também gostaria de frisar que a percepção de não ‘possuir’ nada, de não estar ligado a nada, absolutamente não é uma fonte de arrependimento, nem de perda. Sentir isso também não é possível porque, como já mencionei, na realidade nada foi perdido, tudo foi ganho. (...)
Antes de caírem as outras barreiras (...), o demandante precisa primeiro se livrar de todos os seus defeitos e transformar-se numa tabula rasa. E isso também é só o começo. Há um número enorme de barreiras que o demandante tem de derrubar antes de ficar altruísta e suficientemente vazio para que o Uno comece a operar por seu intermédio.
Quando um iluminado é abordado por algum demandante que pede ajuda e conselhos, ele não considera o que seria 'melhor' para ele (mesmo que tenha prática suficiente para dar uma opinião supostamente útil, mas não é esse o ponto); é o Uno que fala por sua boca.
O iluminado propriamente dito é igual a zero, é um mero instrumento nas mãos da vontade à qual se rendeu. E, miraculosamente, o demandante que está à sua frente acredita no que ele diz. Quem já foi enviado ao ser iluminado jamais perde a confiança, independentemente da classe social ou da condição terrena, pois, no fundo do coração, sabe que a própria Verdade desprendida e altruísta está falando consigo.
Alguém pode perguntar: ‘Como a pessoa sabe disso?’ Sabe, porque um grande 'sim' se eleva em seu coração, porque de repente a centelha divina que possui em si rebenta numa chama, e porque a luz assombrosa da Verdade que irradia do ser iluminado é tão evidente que é impossível negá-la, quer se trate de um grande erudito, quer de um modesto lavrador.
Esse instrumento do Céu só pode fazer esse trabalho com um punhado de pessoas. Uma organização de grande porte talvez consiga ganhar bastante dinheiro, mas o verdadeiro auxílio no caminho só pode ser dado numa base individual, de um para um. Analogamente, o 'chamado' para embarcar também é uma questão individual, como tem sido há milhares de anos.
Depois de chegar à iluminação, o indivíduo deixa de perseguir metas, pois nenhuma meta é completamente pura, por mais grandiosa que seja. O ser iluminado precisa estar completamente livre de todos os desejos e de todos os elos, inclusive com qualquer credo ou religião em particular. Os elos excluem a liberdade, e onde não há liberdade surgem 'metas'. (...)
Lin-Chi (fundador da seita zen que leva seu nome, morreu em 867 e no lapão é conhecido como Rinzai) descreve o ser despertado como ‘O homem do Tao da Não-Dependência’. A tradução livre de ‘homem do Tao’ é ‘quem percorre o caminho do Céu’; Lin-Chi também deixou registradas as seguintes palavras:
‘Se encontrares o Buda no caminho, mata o Buda. Se encontrares um Patriarca no caminho, mata o Patriarca. Se encontrares um Arhat no caminho, mata o Arhat. Se encontrares teu pai e tua mãe no caminho, mata teu pai e tua mãe. Se encontrares teus parentes no caminho, mata teus parentes. Desse modo ficarás livre, auto-suficiente e desligado. Tua natureza básica é a iluminação e a liberdade’.
No zen, as declarações de Lin-Chi (...) são consideradas a pura expressão da doutrina do Buda Gautama e dos budas que o precederam. Já me perguntaram como é possível encaixar essas declarações na Senda Óctupla. A resposta é simples: a Senda Óctupla foi feita para o demandante que só consegue progredir se satisfizer rigorosamente os requisitos da mesma. Por outro lado, as afirmações de Lin-Chi são para quem já chegou. Não convém confundir o início da jornada com o seu fim.
Quando Lin-Chi diz que a pessoa deve ‘matar o Buda’ e ‘matar o Patriarca’, quer dizer que o demandante que chegou à iluminação deve destruir qualquer distração, de qualquer tipo. É possível chegar ao estado de unidade por meio das lições e da disciplina do Buda e dos patriarcas, juntamente com os esforços sobre-humanos e incessantes do demandante.
No entanto, chegando a esse estado, o demandante tem de jogar fora os livros escolares, pois nesse ponto até as lições do Buda e dos patriarcas são uma distração da Verdade. Já não são mais necessárias. O demandante já não precisa de mais nada. E até o discípulo chegar ao estado de iluminação total e perfeita, um estado que vai se aprofundando por si, o mestre continua a insistir para que ele se desfaça de todo e qualquer tipo de ligações, sem jamais se cansar de repetir que são barreiras para a compreensão".
(Retirado e adaptado de “No Caminho do Satori” de Gerta Ital, Editora Siciliano)
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