Por Anna Veronica Mautner
Aceitar-se
com defeitos é o único jeito de suportar o olhar do outro sem ser aniquilado
Se
tiver que escolher entre sentir vergonha ou sentir culpa, o que você preferirá?
Já respondeu? Agora respondo eu: prefiro sentir culpa.
Quando
digo que errei, quero dizer que conheço o certo, mas não quis, não pude, não
consegui fazer certo. Posso relatar circunstâncias que me levaram ao erro,
pecado, transgressão. Se me sinto culpada, é porque acho que deveria ter feito
o certo. Caberia a mim lançar mão do necessário para acertar.
A
culpa parte de um conhecimento de causa ou de um conhecimento que eu
supostamente deveria ter. Parece até que é de lei que o desconhecimento da
regra pode atenuar, mas não isentar de culpa. Por aí se vê que a culpa é
resultante de uma relação falha entre o sujeito e as regras do mundo. Cabe
julgamento, perdão, absolvição. A culpa pode desaparecer sem deixar nódoa.
E
a vergonha? A vergonha tem a ver com a autoestima. Com o que você imagina que
deve ser para se gostar e se aprovar. Você pode morrer de vergonha de coisas
pelas quais ninguém vai culpá-lo.
Quando
nos envergonhamos, o olhar do outro se torna insuportável. O envergonhado quer
deixar de existir para não ser visto na sua falha. A vergonha tem a ver com a
depreciação instantânea de nós mesmos. Escorregar e cair nos deixa
envergonhados. Sem condenação, sem perdão, sem absolvição.
Antigamente,
chamava-se a área genital de "vergonha". O homem nu cobre seus
genitais como último recurso para evitar a vergonha total. O tema chega a ganhar
leis: é proibido desnudar-se em certos lugares. "Pode despir-se, eu sou
médico", dizem os profissionais nos consultórios.
Temos
vergonha de não poder pagar a conta de algo já consumido. Dizer que deixaremos
nosso relógio em pagamento ou lavaremos pratos no restaurante são situações
constrangedoras.
A
vergonha pode ser paralisante. Vergonha do próprio corpo pode impedir a
frequência a lugares esportivos. O gago fica mais gago por vergonha de ser
gago. Quem enrubesce fica mais vermelho por vergonha de ter enrubescido. Quem
sua nas mãos sua mais de medo de que percebam seu suor.
Todos queremos funcionar bem. Disfunções que não são culpa de ninguém diminuem a autoestima. Não saber quais talheres usar num banquete pode ser uma situação paralisante para quem se acha no dever de saber tudo. Quem acha que todos devem saber tudo tem vergonha de perguntar. Pedir orientação no trânsito é impossível para quem acha que tem que saber tudo.
A
culpa não é paralisante. O juiz, as leis, os estatutos podem deliberar pela sua
exclusão, por exemplo.
A
vergonha só tem um remédio: aceitar-se com defeitos, o que significa se sentir
com maior valor, melhorar a autoestima. Isso nos permitiria suportar o olhar do
outro sem que esse olhar nos aniquilasse.
Anna
Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e
"Educação ou o quê?" (Summus).
Folha
de S.Paulo - 12/06/2012.
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