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sábado, 30 de junho de 2012

Sobre o Sacrifício Religioso de Animais

Por Marcelo Deldebbio
Sempre que falamos de “Sacrifício de Animais”, nos vem à cabeça a imagem de satanistas malignos torturando e matando gatos ou então macumbeiros bebendo cachaça e fumando charutos, torturando e matando bodes e galinhas à torto e à direito sem critério nenhum… pastores evangélicos e a mídia católica usam e abusam de mentiras e estereótipos para jogar a opinião pública contra as religiões afros, tentando ligar rituais de magia negra a seus cultos. No caso de animaizinhos, é pior ainda, porque usa da boa fé das pessoas que se comovem com o “sofrimento animal” para usá-las como massa de manobra religiosa.


A questão é muito ampla e seria bom separar todas as variáveis, para que você não seja manipulado pela mídia e pelas igrejas pseudo-evangélicas da próxima vez que assistir a um noticiário na Rede Record a respeito de algum “ritual satânico”.

Em primeiro lugar, vamos separar todos os nomes e todas as possíveis variáveis:

1) Umbanda
Na Umbanda, não há sacrifícios de NENHUM tipo de animal em NENHUMA circunstância. Se a matéria jornalistica menciona qualquer morte, então NÃO É UMBANDA. Entendeu? Foi difícil? Quer que eu desenhe?

2) Candomblé
No Candomblé existem as Obrigações, nos quais os animais são “sacro-oficiados” para um Orixá. No candomblé, esta parte do ritual, denominada de sacrifício, não é propriamente secreta; porém não se realiza senão diante de um reduzido número de pessoas, todos fiéis da religião ou convidados.
Quem faz o sacrifício é um sacerdote treinado e especializado, chamado Axogun, ou Azogun ou Azogue (da onde vem nossa palavra “Açougue”) que tem uma função extremamente importante na hierarquia do templo. O Axogun não pode deixar o animal sentir dor ou sofrer de maneira nenhuma, porque senão a oferenda não seria aceita pelo Orixá.
O objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda conforme o Orixá ao qual é oferecido; trata-se, conforme a terminologia tradicional, ora de um animal de duas patas, ora de um animal de quatro patas (galinha, pombo, bode, carneiro, pato…)
Esse sacrifício não é apenas uma oferenda aos Orixás. Todas as partes do animal vão servir de alimento, nada é jogado fora. O couro do animal é usado para encourar os atabaques, o animal inteiro é limpo e cortado em partes; algumas partes são preparadas para os Orixás e o restante é destinado aos demais. Normalmente há uma festa no dia seguinte (o sacrifício é feito durante a madrugada e as carnes preparadas durante a manhã para serem servidas no almoço – COZINHADAS (tem de explicar tudo, porque vai que algum tosco acha que servem as carnes cruas?)). TUDO é aproveitado: até a porção oferecida aos Orixás é posteriormente distribuída entre os filhos da casa como o inché do Orixá.
É usada para confraternização: unem-se os filhos a comer com o pai ou mãe, havendo repartição do Axé gerado pelo Orixá. (após algum tempo que a comida esteja no Peji ela fica impregnada pela energia do Orixá que está imantando aquela festividade).
O sacrifício no candomblé é a renovação do Axé, feito uma vez por ano para cada Orixá da casa ou em circunstâncias especiais.
Os animais usados nestas festas geralmente são criados em granjas e fazendas próprias, livres e com cuidados especiais. Neste aspecto, não há absolutamente NENHUMA diferença entre um fazendeiro mandar matar um boi para alimentar sua família em um churrasco de alguma celebração e o ato do Sacrifício no Candomblé. Na realidade, AMBAS as cerimônias possuem uma raiz ancestral comum.

3) Quimbanda
A Quimbanda é a ramificação da Umbanda na qual atuam predominantemente os exus e pombagiras, também chamados de “Guardiões” ou “povos de rua”. Eles fazem uso das chamadas “forças de Esquerda”, a Coluna do Rigor na Árvore da Vida, o que não significa que sejam malignos.
Como os Exus precisam desfazer trabalhos de magia negra que muitas vezes envolvem ameaças de mortes, doenças e ataques astrais graves, pode ser necessário, em alguns casos mais extremos, o sacrifício de algum animal, para que a energia vital seja usada como fio condutor daquele trabalho. Normalmente, é a própria entidade quem faz o sacrifício e é cuidado para que o animal não tenha dor.

4) Satanismo
Satanismo LaVeyano não envolve nenhum tipo de adoração ou sacrifício, usando “Satã” como um símbolo dos valores carnais e terrenos, inerentes à natureza humana. Anton LaVey fundou a primeira e maior organização de suporte religioso, a Church of Satan (Igreja de Satã) em 1966, e escreveu as crenças e práticas satanistas publicadas sob o título de The Satanic Bible (A Bíblia Satânica) em 1969.
Em A Bíblia Satânica, Anton LaVey descreve Satã como uma força motivadora e balanceadora na natureza. Satã também é descrito como “A Chama Negra”, representando a personalidade e os desejos mais íntimos da pessoa. Satã é visto como um sinônimo da natureza e, metaforicamente, com certos conceitos de um deus ou divindade suprema. Em seu mais importante ensaio, Satanism: The Feared Religion (Satanismo: A Religião Temida), o atual líder da Igreja de Satã, Peter H. Gilmore, deixa isso bem claro:

“Os satanistas não acreditam no sobrenatural, nem em Deus e nem no Demônio. Para o satanista, ele é seu próprio Deus. Satã um símbolo do homem vivendo da forma como dita sua natureza carnal e magnífica. A realidade por trás de Satã é simplesmente a força obscura e evolucionária da entropia que permeia toda a natureza e dá os meios para a sobrevivência e propagação inerente a todas as coisas vivas. Satã não é uma entidade consciente a ser adorada, mas uma reserva de poder dentro de cada ser humano para ser tomada à vontade. Assim, qualquer conceito de sacrifício é rejeitado como uma aberração cristã — no Satanismo não há divindades por quais se sacrificar”.

Basicamente, são quase ateus somados a uma crítica pesada aos hipócritas cristãos mas, como vocês podem ver, sem sacrifícios.

5) Voodoo
O Voodoo verdadeiro é muito parecido com o Candomblé, com a diferença que, como nas colônias caribenhas as famílias de escravos eram mantidas unidas, a mitologia e o folclore são mais organizados, sem a necessidade do sincretismo que houve no Brasil. No Voodoo, o templo é chamado Honfour e o sacerdote é chamado de Hougan e trabalha com os Iwas (espíritos). A divindade criadora é chamada de Bondye (“Bom Deus”) e os principais Iwas são papa Legba, Erzuli, Ogou, Azaka, Marasa, Guede, Baron Samedi e outros, todos com correspondência direta com os nossos orixás e linhas de trabalho (farei uma Árvore da Vida sobre o Voodoo em breve). O único sacrifício que existe é feito em festas, nos mesmos moldes que o Candomblé. Os animais são mortos para que sua carne seja consumida nas festividades, sem desperdícios.

Resquícios dos antigos rituais de sacrifício animal ainda são evidentes em muitas culturas, como nas touradas ibéricas, o Kapparos no Yom Kippur, ou aos procedimentos de abate ritual como o Shechita no Judaísmo, o Dabihah no Islamismo e o Korbania na Igreja Ortodoxa Grega. Todos estes procedimentos, porém, incluem o consumo dos animais como alimento. Trata-se de dedicar aquela morta ao Plano Espiritual, respeitando e valorizando a vida daquela criatura que irá nos nutrir…

Isto colocado, agora começam as tosquices:

6) Kiumbanda ou Magia Negra
São grupos muito pequenos e, por razões óbvias, se mantém escondidos. Leis vindas de evangélicos e ateus não vão detê-los. É tão ridículo quanto achar que criminosos vão entregar suas armas em campanhas de desarmamento. Na Kiumbanda, os magos usam sacrifício de animais em magia negra, utilizando-se da energia e da dor (carga emocional primitiva) para ativar os rituais. Funciona da seguinte maneira. Nos terreiros deste tipo estão os chamados Eguns, ou “fora-da-lei” que trabalham como mercenários, vampirizando a energia vital dos seguidores dos cultos. Ai existe uma espécie de “troca”. Dão algum poder para o chefe (que, na verdade, é só o escravo que arruma mais escravos para a seita) como amarrações, feitiços de proteção, ataques astrais e poderes mínimos enquanto sugam o que conseguem da energia. Os “pais-de-santo” fazem essas macumbas para terceiros e ganham um dinheiro com isso… são basicamente o lixo do lixo astral. Como estas entidades não têm muito poder, precisam de sacrifícios para usar o poder das outras criaturas em seus feitiços e também pedem sacrifícios para usarem a energia para sobreviverem mais.
Estes são os responsáveis pelos restos de animais que vocês vêem nas encruzilhadas, resultados de magias de separação, amarrações ou ataques a outras pessoas. Normalmente são utilizados para alimentar kiumbas que, depois, vão fazer a separação do casal vítima dos feitiços.

7) Satanistas de Facebook
Existem grupos de pessoas desequilibradas mentalmente que se consideram “satanistas” e alguns desses grupos até têm eguns e kiumbas como mentores (que sempre usam nomes pomposos como “rei”, “maioral”, “chefe dos chefes”, etc.) e muitos usam nomes cheios de firula, como “Lineamento Universal Superior” ou “Ordem dos Filhos da Sabedoria” ou “Nova Ordem Mundial” mas que, na verdade, servem apenas como pilhas energéticas e escravos astrais para demônios mequetrefes. Muitas vezes, os chefes desses templos cobram mensalidades e ameaçam qualquer um que esteja lá de morte, destruição e um monte de baboseiras se não cumprirem suas ordens. Os membros desses grupos normalmente são pessoas fracas e desajustadas, que procuram algum tipo de “poder” mas acabam apenas servindo como carcaça comestível para os eguns. O satanista que me fez as ameaças patéticas, por exemplo, participa da matança de bodes (não é ele quem mata porque ele tem medo) e bebe sangue de galinha preta em seus rituais. É um pobre coitado vampirizado, mas, na cabeça dele, é um “grande mago negro”.
Estes grupos fazem sacrifícios em seus rituais, envolvendo sofrimento de animais.

8) Vodu pra Jacu
Também conhecido como “Vodu de Hollywood”. Este é o Vodu que não existe! No começo do século XIX, quando os negros começaram a se instalar no sul dos Estados Unidos, na região da Louisiana, a Igreja começou a demonizá-los, tal qual os evangélicos fazem hoje com a Umbanda. Alguns livros e textos foram lançados com mentiras e bizarrices sobre as práticas dos negros, que incluíam bonecos com espetos, crânios, caveiras, zumbis, negros pintando caveiras no rosto, tarots e sacrifícios de todos os tipos. É uma miscelânea de maluquices de vilões de filme do 007 que não se parece em nada com o verdadeiro Hoodoo ou Voodoo.
O problema com isso é que muito traficante, para manter um aspecto sinistro e “sobrenatural” em suas organizações, utilizou-se destas mentiras midiáticas para encobrir assassinatos de rivais ou de desafetos com um verniz “religioso”, para incutir terror nos supersticiosos.
Isso é mais comum na América Central e Sul dos Estados Unidos. Ainda não temos coisas assim aqui no Brasil e, de qualquer jeito, eles não matam animais, só membros de outras gangues…

Existem doentes mentais que sacrificam animais para magia negra? SIM. O que não podemos fazer é sermos manipulados pela mídia para ligar estas mortes à religiões afro-brasileiras bem estabelecidas, como querem seus detratores.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

quinta-feira, 28 de junho de 2012

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Como fazer Meditação

A meditação não tem a ver com palavras mas com prática. Não serve de nada lermos muitas vezes a ementa de um restaurante, o que conta é sentarmo-nos à mesa. No entanto, é útil dispormos das linhas orientadoras fornecidas pelas obras dos sábios de outrora. Essas obras contêm um manancial de instruções que expõem com clareza o objetivo e os métodos de Como Fazer Meditação, o melhor meio de progredir e as ciladas que espreitam o praticante.


Vejamos agora alguns dos muitos métodos de Como Fazer Meditação. Começaremos pelos preliminares e por conselhos gerais, após o que examinaremos um certo número de meditações particulares que constituem o fundamento da via espiritual. Fá-lo-emos de forma simples possível, a fim de permitir que cada pessoa as vá praticando gradualmente. Nunca será de mais sublinhar a importância dos conselhos de um guia experiente. Este texto não visa substituí-los, mas oferecer bases provenientes de fontes autênticas.

O nosso espírito tanto poder ser o nosso melhor amigo como o nosso pior inimigo. Libertá-lo da confusão, do egocentrismo e das emoções perturbadoras é, pois, o melhor serviço que podemos prestar a nós próprios e aos outros.

Quando nos empenhamos em aprender Como Fazer Meditação, como em qualquer outra atividade, é essencial verificarmos a natureza da nossa motivação. Com efeito, será essa motivação, altruísta ou egoísta, vasta ou limitada, que conferirá uma direção positiva ou negativa aos nossos actos, determinando-lhes assim o resultado.

Todos nós desejamos evitar o sofrimento e alcançar a felicidade, e todos temos o direito fundamental de realizar esta aspiração. Contudo, na maior parte do tempo, os nossos atos estão em contradição com os nossos desejos. Procuramos a felicidade onde ela não está e precipitamo-nos para o que nos vai causar sofrimento. A prática budista não exige que renunciemos a tudo o que é realmente benéfico na existência, mas antes que abandonemos as causas do sofrimento, às quais nos apegamos como se fossem drogas. Como este sofrimento se deve à confusão mental que obscurece a nossa lucidez e o nosso discernimento, a única forma de o aliviar é adquirirmos uma visão justa da realidade e transformarmos o nosso espírito.

Eliminaremos, assim as suas causas primeiras, os venenos mentais que são a ignorância, a malevolência, a avidez, a arrogância e a inveja. No entanto, não basta curarmo-nos dos nossos sofrimentos pessoais. Cada um de nós representa apenas um único ser, ao passo que os outros são em número infinito e todos querem, tal como nós, deixar de sofrer. Além disso, como todos os seres são interdependentes, estamos intimamente ligados aos outros. Por conseguinte, o fim último da transformação que iremos empreender por intermédio da meditação também é tornarmo-nos capazes de libertar todos os seres do sofrimento e de contribuir para o seu bem-estar.

Devemos seguir os conselhos de um guia qualificado para podermos aprender Como Fazer  Meditação. Daí o papel essencial de um instrutor qualificado.

As circunstâncias que a vida quotidiana nos proporciona nem sempre favorecem a meditação. O nosso tempo e o nosso espírito estão ocupados por todos os tipos de atividades e de preocupações infindáveis. É por isso que é necessário, no princípio, arranjarmos um certo número de condições favoráveis. É possível e desejável mantermos os benefícios da meditação quando estamos mergulhados na torrente da vida quotidiana, nomeadamente recorrendo ao exercício da consciência plena. Mas no princípio, é indispensável exercitarmos o espírito num ambiente propício. É preferível meditarmos num lugar tranquilo para proporcionarmos ao espírito uma oportunidade de se tornar claro e estável.

A postura física influencia o estado mental. Se adaptarmos uma postura excessivamente relaxada, há fortes probabilidades de a nossa meditação se afundar no torpor e na sonolência. Em contrapartida, uma postura demasiado rígida e tensa arrisca-se a suscitar agitação mental.
Importa pois, que adotemos uma postura equilibrada, nem demasiado rígida, nem demasiado relaxada.

1. As pernas são cruzadas na postura do vajra, comummente chamada postura do lótus, na qual começamos por dobrar a perna direita sobre a esquerda, e depois a esquerda sobre a direita.

2. As mãos descansam no regaço, no gesto de equanimidade, com a mão direita sobre a esquerda e a extremidade dos polegares em contacto. Uma variante consiste em pousar as mãos nos joelhos, com as palmas para baixo.

3. Os ombros estão ligeiramente elevados e inclinados para a frente.

4. A coluna vertebral está bem erecta, como uma pilha de moedas de ouro.

5. O queixo está ligeiramente puxado contra a garganta.

6. A ponta da língua aflora o alto do palato.

7. O olhar dirige-se para a frente ou ligeiramente para baixo, no prolongamento do nariz, com os olhos abertos ou semicerrados.

Se tivermos dificuldade em ficar sentados com as pernas cruzadas, podemos evidentemente meditar numa cadeira ou numa almofada alta.

O essencial é mantermos uma posição equilibrada, com as costas direitas, e adoptarmos os outros pontos da postura acima descrita. Segundo os textos, se o corpo estiver bem direito, os canais de energia subtil também se mantêm direitos e em consequência o espírito é claro.

No entanto, podemos modificar ligeiramente a postura do corpo consoante a evolução da aprendizagem de Como Fazer Meditação.

A postura apropriada deve ser mantida o máximo de tempo possível, mas se se tornar demasiado desconfortável, mais vale descansarmos uns instantes em vez de estarmos sempre a ser distraídos pela dor.

É essencial mantermos a continuidade da meditação, dia após dia, pois é assim que ela irá ganhando, pouco a pouco amplitude e estabilidade.

Fonte: "A arte da meditação", Autor: Matthieu Ricard, Editorial Presença.


***

Para quem tem muita dificuldade de praticar a meditação tradicional conforme ensinada nesse post, segue um vídeo muito bom do YouTube ensinando um tipo de meditação bastante fácil de fazer, chamada "Meditação em um instante":



terça-feira, 26 de junho de 2012

A Solidão do Taxista


Por Denise Fraga
Tive um tio taxista. Por incrível que pareça, de vez em quando, ele me colocava no carro e me levava pra trabalhar junto com ele.

Eram outros tempos. Eu tinha lá meus oito, nove anos e, quando o passageiro se surpreendia com a presença da menininha no banco de trás, meu tio falava: "Se o senhor não se importa, amigo, eu estou com a minha sobrinha, vou levá-la ao dentista, mas posso quebrar o galho e fazer sua corrida".

Ninguém se importava, ele nunca me levou ao dentista e ganhamos muitas histórias no fusquinha verde-água zanzando pelo Rio de Janeiro.

Eu escutava as conversas, as notícias do rádio, dormia, acordava, ganhava balas dos passageiros e via a vida correndo pela janela. Era fã do meu tio e de seu jeito de flanar pela vida. Ele achava tudo divertido, adorava um bom papo e não via problema nenhum em me colocar no carro pra participar das suas delícias.

Meu tio me fez crer que uma das melhores profissões do mundo é taxista. Virei atriz. Mas, se há coisa de que gosto, é andar de táxi.

Sento no banco de trás, abro a janela e talvez seja o próprio tio Fausto que lá de cima continua me enviando preciosidades através de seus colegas. Mesmo quando não rola conversa, o simples fato de ficar sacolejando no trânsito olhando pela janela é para mim algo de extremo prazer. Pequenos brindes de minha infância herdados por minha vida adulta.

O vento na janela de um táxi é uma das coisas que pouco mudaram desde os anos 70. Às vezes, é preciso fechar o vidro, mas a vida continua passando aos seus olhos. É um descanso sem igual.

Acontece que comprei um iPhone e, pouco a pouco, fui pedindo licença a meu amigo taxista para um telefonema aqui, um e-mail acolá e passei a interromper meu precioso flanar nos táxis com coisas que acho que precisam ser feitas naquela hora.

Em dias mais corridos, entro dizendo o destino entre uma fala e outra ao telefone, já digito uma mensagem, pago a corrida com o troço no ombro e saio do carro com meu tio balançando a cabeça lá em cima. Que desperdício!

Comecei então a fazer um exercício rigoroso para aproveitar meu passeio de táxi. Proibi à minha pessoa o uso do celular no veículo, como num avião. Tenho resistido, mas a sensação de que poderia já estar resolvendo isso ou aquilo, de que estou perdendo tempo já que tenho ali, ao meu alcance, minha ligação com o mundo, isso é uma doença crônica dos nossos tempos.

Meu celular me abriu infinitas janelas, mas me roubou a mais preciosa de todas. Nossos eletrônicos vão sorrateiramente nos roubando a plenitude. O simples estar num lugar, sem achar que poderia estar em outro.

Penso no meu tio e só me consola imaginar o quanto se divertiria ouvindo os absurdos que falamos no celular ao ignorar o solitário taxista. Eles devem ter muitas histórias pra contar pra suas esposas quando chegam pra jantar. Se elas não estiverem no Facebook.

Denise Fraga, atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo), passa a escrever quinzenalmente no Equilíbrio.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A Vergonha

Por Anna Veronica Mautner
Aceitar-se com defeitos é o único jeito de suportar o olhar do outro sem ser aniquilado

Se tiver que escolher entre sentir vergonha ou sentir culpa, o que você preferirá? Já respondeu? Agora respondo eu: prefiro sentir culpa.

Quando digo que errei, quero dizer que conheço o certo, mas não quis, não pude, não consegui fazer certo. Posso relatar circunstâncias que me levaram ao erro, pecado, transgressão. Se me sinto culpada, é porque acho que deveria ter feito o certo. Caberia a mim lançar mão do necessário para acertar.

A culpa parte de um conhecimento de causa ou de um conhecimento que eu supostamente deveria ter. Parece até que é de lei que o desconhecimento da regra pode atenuar, mas não isentar de culpa. Por aí se vê que a culpa é resultante de uma relação falha entre o sujeito e as regras do mundo. Cabe julgamento, perdão, absolvição. A culpa pode desaparecer sem deixar nódoa.

E a vergonha? A vergonha tem a ver com a autoestima. Com o que você imagina que deve ser para se gostar e se aprovar. Você pode morrer de vergonha de coisas pelas quais ninguém vai culpá-lo.

Quando nos envergonhamos, o olhar do outro se torna insuportável. O envergonhado quer deixar de existir para não ser visto na sua falha. A vergonha tem a ver com a depreciação instantânea de nós mesmos. Escorregar e cair nos deixa envergonhados. Sem condenação, sem perdão, sem absolvição.

Antigamente, chamava-se a área genital de "vergonha". O homem nu cobre seus genitais como último recurso para evitar a vergonha total. O tema chega a ganhar leis: é proibido desnudar-se em certos lugares. "Pode despir-se, eu sou médico", dizem os profissionais nos consultórios.

Temos vergonha de não poder pagar a conta de algo já consumido. Dizer que deixaremos nosso relógio em pagamento ou lavaremos pratos no restaurante são situações constrangedoras.

A vergonha pode ser paralisante. Vergonha do próprio corpo pode impedir a frequência a lugares esportivos. O gago fica mais gago por vergonha de ser gago. Quem enrubesce fica mais vermelho por vergonha de ter enrubescido. Quem sua nas mãos sua mais de medo de que percebam seu suor.


Todos queremos funcionar bem. Disfunções que não são culpa de ninguém diminuem a autoestima. Não saber quais talheres usar num banquete pode ser uma situação paralisante para quem se acha no dever de saber tudo. Quem acha que todos devem saber tudo tem vergonha de perguntar. Pedir orientação no trânsito é impossível para quem acha que tem que saber tudo.

A culpa não é paralisante. O juiz, as leis, os estatutos podem deliberar pela sua exclusão, por exemplo.

A vergonha só tem um remédio: aceitar-se com defeitos, o que significa se sentir com maior valor, melhorar a autoestima. Isso nos permitiria suportar o olhar do outro sem que esse olhar nos aniquilasse.


Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (Summus).

Folha de S.Paulo - 12/06/2012.

Retirado de:

domingo, 24 de junho de 2012

Os Poderosos Chefinhos

Por Rosely Sayão
Muitos jovens não conhecem a realidade da vida, eles cresceram achando que o mundo gira em torno deles

Quando os filhos atingem o chamado período da adolescência, em geral os pais sofrem. Todo santo dia eles enfrentam problemas: saídas noturnas, horários, namoros, estudo, entretenimentos, vestuário etc. Tudo é motivo para preocupações, discussões, desentendimentos de todos os tipos.

É que nessa etapa da vida os filhos precisam encontrar um novo lugar para ocupar. E esse novo lugar é complexo porque envolve pelo menos três dimensões que são interdependentes: a pessoal, a familiar e a social. Ou seja, os filhos também sofrem nessa fase e não apenas pelos conflitos que têm com os pais.

Eles sofrem porque, na busca desse novo lugar que ocuparão, precisam conquistar a maturidade, condição necessária para a saída da adolescência. Amadurecer é a finalidade desse período, portanto, e ninguém amadurece sem conhecer a realidade da vida.

Hoje, muitos adolescentes da classe média desconhecem a realidade da vida. Eles acreditam que a realidade é o que sentem, o que querem, o que pensam que precisam. Ignoram solenemente o outro, as interdições que são necessárias para a vida em grupo, e desprezam as leis que nos protegem. São escravos de seus caprichos.

Como isso acontece? Essa história começa bem antes da adolescência. Começa com o início da infância e a base dela é o tipo de relacionamento que muitos pais estabelecem com seus filhos.

Outro dia, fiquei sabendo que existe uma camiseta de tamanho pequeno, destinada a crianças com menos de seis anos, com a seguinte frase estampada: "O Poderoso Chefinho". E muitas mães e pais vestem seus pequenos filhos com a tal camiseta. E, devo dizer, com o maior orgulho.

Eles talvez não saibam, mas essa brincalhona frase é reveladora: aponta o lugar que muitas pequenas crianças ocupam na família.

Qual o cardápio costumeiro da família, qual o restaurante preferido do grupo, quais os lugares a que a família costuma ir para passear, para viajar, para passar as férias? Quem decide? Você já deve imaginar, caro leitor: os filhos. Ou melhor, os poderosos chefinhos.

Muitos pais, agora, têm medo de perder o amor dos filhos, por isso nem cogitam desagradar seus pimpolhos, que são, portanto, o centro da família.

Mas isso não faz bem para quem ainda está em processo de socialização, ou seja, de se conhecer, de conhecer o outro e de se relacionar com grupos. Ao colocar crianças pequenas nesse lugar, passamos algumas mensagens claras a elas. E uma delas é a que afirma que, se elas querem, elas podem, sem maiores consequências. E ponto final.

À medida que os filhos crescem, muitas famílias reiteram essas mensagem nas atitudes que tomam com eles e, dessa forma, evitam que a criança tenha contato com a realidade.

Vou retomar um exemplo que já citei aqui: as festas de aniversário que crianças entre nove e doze anos, mais ou menos, frequentam. Os pais providenciam tudo o que é necessário: do presente a ser entregue ao aniversariante à roupa que será usada. O filho só precisa mesmo é comparecer à festa e se divertir. Isso não é realidade, é?

É dessa maneira que muitos chegam à adolescência: vivendo como se todo o mundo girasse em torno deles, como se bastasse querer para viver. E eles querem muitas coisas. O problema é que não aprenderam a considerar outras coisas além do querer. "Eu quero. Eu posso? Eu devo?" é uma conjugação que a maturidade produz.

Pelo jeito, muitos de nossos jovens continuam a ocupar o lugar de "O Poderoso Chefinho", não é verdade?

Folha de São Paulo - 12/06/2012

Rosely Sayão é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha) –

Retirado de:

sábado, 23 de junho de 2012

O Relógio de Sol e a Contagem das Horas do Dia

Na verdade, nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado. O relógio mecânico é uma invenção do século 14, enquanto que a divisão do dia em 24 horas surgiu por volta de 5000 a.C., na Babilônia (local Iraque) era à capital da antiga Suméria e Acad, na Mesopotâmia. Localiza-se a aproximadamente 80 km ao Sul de Bagdád.

O ponto-chave desse sistema numérico foi à definição do meio-dia. Observando o movimento da sombra provocada pelo Sol, os babilônios descobriram que havia um momento em que a estrela ficava a pino no céu, sem projetar sombras para os lados. Esse momento ficou conhecido como meio-dia. Os babilônios então dividiram o restante da trajetória da sombra em 12 partes: seis antes do meio-dia (manhã) e seis depois (tarde).

Estava criada a divisão do dia em 24 partes (horas) - a outra metade, claro, era a noite. Para fazer essa marcação da trajetória da sombra, os babilônios criaram o relógio de sol. Pontualidade histórica da Humanidade já usou de estrelas a cera derretida para contar os minutos.

O primeiro relógio da humanidade tinha uma haste que projetava a sombra do sol numa marcação dividida em 12 partes. O "12" foi escolhido por ser um submúltiplo de 60, que era a base do sistema matemático babilônico.

Apesar de ter surgido no século 14, o relógio mecânico só se popularizou no século 18. Os primeiros modelos eram movidos por engrenagens conectadas a pequenos pesos, que não eram lá muito precisos.

O primeiro registro é do século 9, mas esse "relógio" era tão simples que muitos historiadores acreditam que ele tenha sido inventado séculos antes. Ele era uma vela graduada que, à medida que queimava, mostrava quantas horas tinham se passado.

O primeiro relógio "noturno" de que se tem prova é a clepsidra. Para saber as horas à noite, os egípcios criaram um mecanismo em que um recipiente d’água se esvaziava numa vazão controlada, movimentando um mostrador de horas.

O astrolábio foi uma invenção grega que acabou se perdendo na história, só sendo "reinventado" no século 14. Com um conjunto de discos móveis, era possível determinar a posição das estrelas num determinado momento da noite e, assim, verificar que horas eram.

Veja como é fácil construir um relógio de sol. Uma idéia simples e antiga que mudou o mundo.

1. Coloque no centro de uma superfície plana — banhada pelo sol o dia todo — uma haste de uns 20cm. Para melhorar a visibilidade, incline um pouco a haste, na direção da sombra projetada.

2. Acompanhe o movimento da sombra, que diminuirá em direção à haste até o meio-dia. Quando a sombra começar a crescer de novo, faça uma marca na superfície nessa posição. Esse é o meio-dia.

3. Na superfície, faça um semicírculo cujo centro seja a haste e sua marcação do meio-dia. Divida esse semicírculo em 12 partes, seis antes do ponto central (manhã) e seis depois (tarde).

Fonte: Mundoestranho.abril.com.br - Rafael Fernandes Junqueira, Mirassol D’Oeste, MT

Retirado de:

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Para Que Servem os Pelos do Corpo


Por: Camila R.
Em geral, muitos dos pelos estranhos espalhados pelo nosso corpo têm uma função de proteção. "Principalmente aqueles localizados em regiões próximas a orifícios naturais, como os localizados nas narinas, nos ouvidos e na região pubiana das mulheres", afirma a dermatologista Ediléia Bagatin, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Alguns dos pelos esquisitos só surgem na puberdade, por conta do início da ação dos hormônios sexuais. É o caso dos chumaços na região pubiana e embaixo do braço, nas axilas. Mas, da mesma forma que aparecem na adolescência, eles também começam a rarear quando a produção dos hormônios entra em decadência. Por isso, mulheres na menopausa e homens na andropausa têm menos pelos.

"Além disso, existe uma anomalia congênita chamada atriquia, em que a pessoa perde todos os pelos do corpo", diz Ediléia. Outra curiosidade: por maior que seja a tendência "Tony Ramos" de alguém, existem regiões, como a palma das mãos e a sola dos pés, onde não nasce penugem de jeito nenhum. Isso porque esses locais têm poucos folículos pilosos - as minúsculas cavidades existentes na pele onde nascem os pelos. 
Saibam, então, porque temos pelos em certas regiões:

AXILAS
São só uma herança dos nossos ancestrais meio homens, meio macacos. Os pelos das axilas eram associados às glândulas da região que produzem odores. E, como ocorre com muitos animais, esses odores serviam para atrair o sexo oposto. Hoje só dão trabalho às mulheres...


OUVIDO
Junto com a cera, os pelinhos que nascem no interior do ouvido fazem as vezes de um filtro, retendo partículas de poeira e microorganismos que teimem em entrar na região


SOBRANCELHAS
A cada dia surgem cerca de dez fios novos para substituir os que caem. A sobrancelha só serve para impedir que alguma sujeira, como o suor que escorre da testa, por exemplo, entre nos olhos

CÍLIOS
São como pequenas vassouras: protegem os olhos de poeira e pequenos insetos que caiam na região. Apesar de importante, não é a principal proteção da vista — o reflexo de fechar as pálpebras diante de um perigo é bem mais eficaz. Em média, nasce um cílio novo por dia


NARIZ
Os pelinhos rígidos que ficam dentro das narinas são chamados de vibrissas. Eles são como pequenos filtros: impurezas, como a poeira, grudam nas vibrissas e assim não são inaladas


PUBIANOS
Nas mulheres, são uma primeira barreira de proteção para o sensível canal vaginal. Para os homens, não têm função hoje em dia, mas em nossos ancestrais podem ter servido para manter a região mais aquecida e protegida


COURO CABELUDO
Já que a cabeça é uma das principais partes do corpo que é está constantemente exposta ao sol, há uma quantidade maior de calor e radiação que a atinge diretamente.

Fontes: Como tudo funciona?, Mundo Estranho.


quinta-feira, 21 de junho de 2012

Pequena História dos Refrigerantes


Por Celso Miranda e Ricardo Giassetti
"Amada minha, ficarei deveras lisonjeado se aceitares me acompanhar à pharmacia para um xarope carbonatado.” Um convite para tomar xarope na farmácia pode não soar como uma cantada lá muito romântica hoje em dia, mas, no fim do século 19, era tudo que uma jovenzinha americana queria ouvir. Afinal, quem não queria experimentar a grande onda, os refrigerantes? Os primeiros deles nasceram numa época em que se confundiam as propriedades medicinais das fontes de águas minerais com as recentes invenções de Joseph Priestley (1767) e John Mathews (1832). Priestley criou um meio de produzir água gaseificada artificialmente, a soda. Mathews desenvolveu o que ficaria conhecido como soda fountain, um aparato que produzia água com gás de forma simples, diretamente no balcão da farmácia. Acreditava-se que a água gaseificada tinha propriedades terapêuticas e por isso ela era recomendada para diversos tipos de tratamento, de simples cólicas à poliomielite.

Por volta da metade do século 19, já era comum encontrar fontes de soda instaladas nas farmácias por todos os Estados Unidos. “Não se sabe exatamente quem foi o primeiro a colocar substâncias adoçantes e corantes na água gasosa, mas certamente isso aconteceu numa farmácia, onde as misturas eram feitas e vendidas como tônicos”, diz Jorge Fantinel, engenheiro químico e consultor das empresas do setor, autor de Os Refrigerantes no Brasil. As primeiras experiências foram feitas com xarope de limão, a soda limonada. Imediatamente depois vieram as misturas com morango, noz-de-cola – um fruto africano parente do cacau, rico em cafeína, conhecido no Brasil como orobô – e ginger-ale, feito de gengibre. Nessa época, eles ainda não tinham o nome de refrigerantes e eram chamados de xaropes gasosos. Mas, vendidos a 1 centavo de dólar, já eram um sucesso.

O crescimento do consumo fez muitas farmácias se transformarem em pontos de encontro. Outras deixaram de lado a venda de remédios para aumentar o espaço de atendimento dos ávidos bebedores de xaropes gasosos. Fenômeno semelhante ocorreu com os proprietários, que começaram a competir pelos fregueses criando xaropes cada vez mais elaborados, fechando suas lojas para se dedicar à produção e venda no atacado. As três maiores marcas norte-americanas atuais foram criadas num espaço de pouco mais de dez anos, por três desses ex-farmacêuticos. Charles Alderton inventou a fórmula da Dr. Pepper, em 1885. No ano seguinte John Pemberton tirou da manga um concentrado com “qualidades estimulantes” à base de noz-de-cola, folhas de coca e outros ingredientes ao qual daria o nome de Coca-Cola. Em 1898 surgiu a Pepsi-Cola, que usava a mesma noz-de-cola e uma enzima para “ajudar na digestão”, a pepsina.

Mas sair das drogarias e chegar sãos, salvos e borbulhantes à casa do consumidor era uma tarefa impossível para os refrigerantes. O limitador, nesses primeiros tempos da indústria, era a embalagem. “Apesar de o primeiro xarope engarrafado datar de 1835, antes da invenção da máquina para moldar vidro, obra do americano Michael Owen, em 1904, as garrafas eram sopradas artesanalmente e variavam na forma e tamanho, dificultando o transporte e o empilhamento”, afirma Jorge. Outra dificuldade era a vedação das garrafas. Das rolhas com arame (similares às de champanhe) às tampas Hutchinson, que seguravam a pressão de dentro para fora, os progressos foram tímidos e os acidentes em depósitos, constantes, transformando o estoque de refrigerantes numa atividade barulhenta (e dispendiosa). A revolução que levou definitivamente o refrigerante para dentro das casas das pessoas foi a tampinha coroa, inventada em 1892 pelo americano William Painter. A rolha metálica recoberta de cortiça (posteriormente trocada pelo plástico) era perfeita para conter a pressão do líquido gasoso. Daí por diante, os xaropes continuariam sendo vendidos nos balcões, mas o caminho até a mesa do almoço de domingo estava definitivamente aberto.

Guaraná Brasil
Por aqui, a moda das fontes de soda não pegou e a indústria partiu direto para o engarrafamento. “Os equipamentos eram precários para gaseificar água e mais ainda para produtos com açúcar, que necessitam de temperaturas de operação mais baixas e pressões maiores. Nosso clima não ajudava a indústria”, diz Jorge Fantinel. Enquanto Coca, Pepsi e Dr. Pepper se industrializavam, abriam novas fábricas e melhoravam a distribuição nos Estados Unidos, um médico de Resende, no Rio de Janeiro, descobriu que uma frutinha vermelha e tipicamente brasileira, o guaraná, dava um tremendo xarope. Em 1905, o doutor Luiz Pereira Barreto elaborou um método de processamento da fruta.

A partir de 1906 a F. Diefenthalerr, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, lançou a primeira linha de refrigerantes industrializados, incluindo a Limonada Gazosa, o Guaraná Cyrilla e a Água Tônica de Quinino. Cervejarias como a Brahma não demoraram a entender o potencial comercial dos gaseificados. A empresa carioca lançou a marca Excelsior em 1907. A paulistana Antarctica começou a produzir a Soda Limonada em 1912 e, em 1921, lançou o Guaraná Champagne. “A fórmula é a mesma até hoje, adaptada apenas para se adequar melhor às mudanças da linha de produção,” afirma o químico Orlando de Araújo, consultor da AmBev, uma das principais empresas do setor.

As precárias condições da infra-estrutura de estradas e ferrovias brasileiras e as dificuldades logísticas mantinham os fabricantes e distribuidores reféns de suas próprias regiões. A demanda crescente, mas limitada geograficamente, fez com que marcas menores aparecessem para atender cidades do interior dos estados. Em São Paulo, maior mercado nacional, surgiram, na década de 1930, fábricas em Jundiaí, Itu, Bauru e São José do Rio Preto. No Maranhão, Jesus Norberto Gomes criou, em 1920, um guaraná cor-de-rosa que até hoje é comercializado. O guaraná Jesus atende seus adoradores e é um dos mais vendidos da região.

“Até os anos 60, alguns processos ainda eram manuais. Usávamos máquinas com pedais mecânicos para colocar as tampinhas nas garrafas e colávamos os rótulos com cola de maisena”, afirma Ricardo Vontobel, que na infância trabalhou na fábrica do pai, a Vonpar, fundada em 1953, no Rio Grande do Sul, e que hoje é uma das maiores franquias da Coca-Cola no país. Se engarrafar era difícil, imagine distribuir. “Na época, o setor de logística não passava de um estábulo com burros e carroças. Sem estradas que comportassem caminhões, usamos esses animais por anos”, lembra Ricardo. “Os burrinhos ficavam tão acostumados com o itinerário que paravam sozinhos diante das vendas e mercados e lá ficavam esperando até a carroça ser descarregada. Mesmo quando não havia entrega, o funcionário tinha que descer e fingir que tirava a carga da carroça. Só assim para enganar o animal e ele concordar em continuar seu caminho.” É por essas e por outras que para cumprir um roteiro de entregas de 300 quilômetros às vezes eram necessários vários dias de viagem.

“As dificuldades de transporte e estocagem mantiveram as gigantes americanas afastadas do Brasil por algum tempo, criando uma base consistente de consumidores para as pequenas indústrias regionais”, afirma Humberto Pandolpho, consultor de empresas no setor. Assim, não é de estranhar que o cantor e compositor mineiro Milton Nascimento só tenha tomado sua primeira Coca-Cola no Rio de Janeiro, a bordo de um avião da Pan Air, como ele afirma na música “Conversando no Bar”, de 1975. Mesmo ano em que, aliás, a palavra “refrigerante”, com o sentido de hoje, apareceu pela primeira vez no dicionário Aurélio.

É guerra!
O conteúdo era importante, mas as embalagens foram um fator decisivo na conquista territorial dos refrigerantes. Em 1934, nos Estados Unidos, a Pepsi deu um salto e tanto, dobrando o volume das garrafas de 170 para 350 mililitros sem mexer no preço. O resultado foi uma explosão de vendas quase sem alterar o custo de produção. A Coca reagiu, apostando em dois elementos importantes e até hoje indissociáveis da indústria dos refrigerantes: o design e a propaganda. Logotipos e slogans foram criados na velocidade em que se espalharam por pontos de venda, jornais e revistas. “Os refrigerantes tiveram grande influência no desenvolvimento da indústria da publicidade. Um exemplo, sempre citado nesse caso, é o uso do Papai Noel pela Coca-Cola”, diz o colecionador Geraldo Gayoso. “A empresa não inventou o Papai Noel, mas utilizou de forma tão maciça sua imagem que acabou imortalizando sua visão do personagem. Hoje ele é um senhor gorducho que se veste de vermelho graças às campanhas publicitárias da Coca-Cola”, diz Geraldo, reconhecido pela própria empresa como o quarto maior colecionador de produtos da marca no mundo.

A Coca foi pioneira em desenvolver garrafas exclusivas, acreditando que o desenho delas teria papel fundamental tanto para a rápida identificação da marca quanto para a fidelização dos clientes. “Enquanto as outras empresas utilizavam garrafas padronizadas, a Coca-Cola lançou um modelo exclusivo. O sucesso foi tamanho que a garrafa – cujo desenho, com pouquíssimas alterações, é mantido até hoje – foi apelidado de Mae West, a curvilínea estrela de Hollywood, símbolo sexual dos anos 30”, diz Geraldo.

Mas o grande salto da Coca-Cola foi durante a Segunda Guerra. Quando os Estados Unidos entraram no conflito, o lendário presidente da Coca, Robert Woodruff, garantiu que os soldados se sentiriam em casa onde quer que estivessem. Casa, para ele, significava poder comprar em qualquer lugar do mundo uma garrafa de Coca por 5 centavos de dólar. Onde não era possível enviar o produto engarrafado foram instalados kits manuais para misturar e envasar o refrigerante. Essas primeiras minifábricas do produto abriram caminho para o licenciamento de fabricantes de Coca-Cola pelo mundo afora, o que daria à empresa o porte de gigante multinacional e a fama de representar os interesses norte-americanos pelo mundo afora.

Na década de 1950 e nas duas décadas seguintes, a Coca e a Pepsi se tornariam símbolos do poder global dos americanos: armas da propaganda política, para o bem e para o mal, na época da Guerra Fria. Símbolo da sociedade de consumo, os refrigerantes se transformaram em pilares do american way of life, ou do jeito americano de ser. O que quer dizer que, ao lado das calças jeans e do rock’n’roll, viraram ícones de um mundo em que liberdade e consumo se equivaliam. E assim, na mesma medida em que a Coca-Cola e a Pepsi eram barradas no Leste Europeu, na União Soviética e na China, elas invadiram a Europa Ocidental, a Ásia e o Brasil.

A aceitação da Coca por aqui não foi imediata. “Antes de sua chegada, os refrigerantes eram vendidos em garrafas escuras e o líquido tinha sabores e cores reconhecíveis, como laranja e limão. Os brasileiros estranharam a cor escura da Coca-Cola, vendida em garrafas transparentes. A empresa realizou operações maciças de degustação para atrair o consumidor”, conta Ricardo Vontobel, da Vonpar. A Coca deu um novo sentido à produção em escala industrial, abrindo fábricas na cidade fluminense de São Cristóvão, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Porto Alegre hospedou a primeira franquia da rede.

Nos anos 1950, houve o primeiro salto no consumo per capita de refrigerante no Brasil. E a primeira medida tomada pela indústria foi o aumento do volume das garrafas. As caçulinhas, garrafinhas de 180 mililitros, perderam espaço para as garrafas de 270 mililitros, que se tornaram a medida padrão nacional. Com a crescente urbanização do país e a chegada dos eletrodomésticos, incluindo as geladeiras, às casas de classe média, o próximo passo da indústria de refrigerantes foi óbvio: a criação das garrafas de 1 litro. Embora nunca tenha deixado de crescer, a outra grande explosão de consumo no Brasil só se daria nos anos 90. O Plano Collor pôs fim a diversas reservas de mercado e abriu a possibilidade de importação de máquinas a preços convidativos até para os pequenos fabricantes.

Isso numa época em que a grande novidade do ponto de vista tecnológico e de mercado era a garrafa one-way (ou não-retornável). A substituição do vidro pelo polietileno tereftalato, o PET, fez com que os vasilhames ficassem mais baratos e, mesmo em grandes formatos, descartáveis. Isso deu à indústria de refrigerantes, a partir dos anos 80 nos Estados Unidos e dos 90 no Brasil, um alcance quase ilimitado. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas, hoje são mais de 300 empresas fabricando refrigerantes no Brasil, com vendas totais da ordem de 12,2 bilhões de litros ao ano. No mundo, são 185 bilhões de litros, pouco mais de 30 litros por pessoa.

Com números como esses e pontos de venda que vão dos restaurantes luxuosos aos camelôs nos cruzamentos das grandes cidades, é impossível imaginar um dia sem pelo menos avistar uma latinha ou garrafa de refrigerante. Ele finalmente encontrou seu lugar e, no mundo todo, as pessoas abriram espaço em suas geladeiras para a enorme garrafa de água colorida, com sabor artificial e bolhas de gás.

Retirado de:

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Palavras de Jesus em "Cavalo de Tróia"

"Cavalo de Tróia " foi um dos melhores livros que eu já li. Sua descrição da Palestina do tempo de Jesus é primorosa se conseguirmos ter paciência e esperar até o autor  efetivamente colocar o personagem principal, Jasão, para andar pelas regiões de Jerusalém próximo ao século I. Uma das minhas missões não realizadas é editar essas partes e fazer um livro, separando a parte de reconstrução histórica e deixando a ficção de lado, embora ela tenha também aspectos interessantes. A série  tem hoje nove livros que vão aumentando de tamanho de páginas em razão contrária a sua qualidade, infelizmente. Minha impressão é que a partir do número 5 em diante eles foram perdendo a força e a capacidade de me prender na leitura. Interessante é que eu, que gosto e tenho tantos livros, não possuo nenhum exemplar da série. Todos que li eram de amigos ou emprestados de alguma biblioteca. Me marcaram tanto que cheguei a ter trechos inteiros copiados pacientemente num caderno de espiral com uma caneta vermelha para poder guardar as melhores partes. O trecho abaixo é um desses. Acho inspirado a forma como o autor constrói a fala de Jesus, ela vai de encontro a forma como imagino que Ele deva ter sido realmente...

***
“Jasão”, sendo o protagonista do livro “Operação Cavalo de Tróia”, de J.J. Benitez, é um Major da Força Aérea dos EUA que participa de um experimento científico de viagem no tempo. O período que é escolhido para testar a máquina é o da crucificação de Jesus Cristo. Após diversas dificuldades e percalços pelo caminho, Jasão encontra-se com o Galileu na casa de Lázaro, o que ocasiona uma conversa deveras reveladora, profunda e meditativa entre o rabi e o viajante. Aproveitem esse dia para refletir nas palavras ditas pelo Mestre. Embora seja um livro de “ficção”, não deixa de abarcar um significado congruente com o que nós, Livres Pensadores, pensamos e refletimos acerca da Vida e do Universo, entre outros temas. (Os grifos são nossos)
“Ao notar que Jesus se oferecia prazerosamente ao diálogo, aproveitei a ocasião e perguntei-lhe sua opinião sobre o que sucedera naquela tarde.
- Tenho estado no centro do mundo e me revelado a eles na carne. Encontrei-os todos embriagados. Nenhum eu encontrei sedento. Minha alma sofre pelos filhos dos homens porque estão cegos de coração; não vêem que chegaram vazios ao mundo e tencionam sair vazios do mundo. Agora estão bêbados. Quando vomitarem seu vinho se arrependerão…
- São palavras muito duras – disse-lhe -. Tão duras como as que pronunciaste no cume do Monte das Oliveiras, à vista de Jerusalém…
- Talvez os homens pensem que vim para trazer a paz ao mundo. Não sabem que estou aqui para lançar na terra divisão, fogo, espada e guerra… Pois haverá cinco em uma casa: três contra dois e dois contra três; o pai contra o filho, o filho contra o pai. E eles estarão sós.
- Muitos, em meu mundo – acrescentei procurando fazer com que minhas palavras não soassem excessivamente estranhas para Lázaro – poderiam associar essas frases tuas sobre o fim de Jerusalém como o fim do tempo. Que dizes a isto?
- As gerações futuras compreenderão que a volta do Filho do Homem não se dará pela mão do guerreiro. Esse dia será inolvidável: depois da grande atribulação – como não houve outra desde o princípio do mundo – meu estandarte será visto nos céus por todas as tribos da terra. Essa será minha verdadeira e definitiva volta: sobre as nuvens do céu, como o relâmpago que sai do Oriente e brilha até o Ocidente…
- Que será a grande atribulação?
- Poderias chamá-la “um parto de toda a Humanidade…”
Jesus não parecia muito disposto a dar-me detalhes.
- Ao menos diz-nos quando se realizará.
- Daquele dia e daquela hora, ninguém sabe. Nem os anjos, nem o Filho. Só o que posso dizer-te é que será tão inesperado que a muitos os pilhará no meio da sua cegueira e iniquidade…
- Meu mundo, da qual venho – tratei de pressioná-lo – distingue-se precisamente pela confusão e pela injustiça…
- Teu mundo não é nem melhor nem pior do que este. A ambos só lhes falta o princípio que rege o Universo: o Amor.
- Dá-me, ao menos, um sinal para que saibamos quando te revelarás aos homens pela segunda vez…
- Quando vos desnudardes sem sentir vergonha, tornardes vossas vestimentas, as colocardes sob os pés como as crianças e as pisoteardes, então vereis o Filho do Vivente e não temereis.
Lázaro, oportunamente, continuava identificando “meu mundo” como a Grécia. Isso me permitia continuar interrogando o Mestre com uma certa margem de amplitude.
- Então – tornei – meu mundo está ainda muito longe desse dia. Ali os homens são inimigos dos homens e até do próprio Deus…
Jesus não me deixou prosseguir.
- Estais então equivocado. Deus não tem inimigos.
Aquela incisiva frase do Nazareno trouxe-me à memória muitas das crenças sobre um Deus justiceiro que condena ao fogo do inferno o que morre em pecado. E foi o que lhe disse.
Cristo sorriu meneando a cabeça negativamente.
- Os homens são hábeis manipuladores da Verdade. Um pai pode sentir-se aflito com as loucuras do filho, mas nunca condenaria os seus a um mal permanente. O inferno, como crêem em teu mundo, significaria que uma parte da Criação haveria escapado das mãos do Pai… E posso assegurar que crer nisso é não conhecer o Pai.
- Por que então falaste em certa ocasião de fogo eterno e ranger de dentes?
- Se falando por parábolas não me compreendes, como então posso ensinar-te os mistérios do Reino? Em verdade, em verdade te digo que aquele que aposte forte, e se equivoque, sentirá como lhe rangem os dentes.
- É que a vida é uma aposta?
- Tu o disseste, Jasão. Uma aposta pelo Amor. É o único bem em jogo desde que se nasce.
Fiquei pensativo. Aquelas eram palavras novas para mim.
- Que te preocupa? – perguntou-me Jesus.
- A ser assim, que podemos pensar dos que nunca amaram?
- Não há tais.
- Que me dizes dos sanguinários, dos tiranos?…
- Também esses ama à sua maneira. Quando passarem para o outro lado levarão um bom susto…
- Não entendo.
- Eles se darão conta, ao deixar este mundo, de que ninguém lhes perguntará por seus crimes, riquezas, poder ou beleza. Eles mesmos, e só eles, se convencerão de que a única medida válida, no “outro lado”, é o Amor. Se não amaste aqui, em teu tempo, somente tu te sentirás responsável.
- E que ocorrerá com os que não tiverem sabido amar?
- Quererás dizer: com os que não tiverem querido amar…
Novamente me senti confuso.
- …Esses, amigo – prosseguiu o rabi, captando minha dúvida – serão os grandes burlados e, em consequência, os últimos no Reino do meu Pai.
- Então teu Deus é um Deus de amor…
Jesus pareceu agastar-se.
- Tu és Deus!
- Eu, Senhor?!
- Em verdade te digo que todos os nascidos levam o selo da Divindade.
- Mas não respondeste à minha pergunta. É Deus um Deus de amor?
- Não o fosse e não seria Deus.
- Nesse caso devemos excluir de sua mente qualquer castigo ou prêmio?
- É nossa própria injustiça a que se volta contra nós próprios.
- Começo a intuir, Mestre, que tua missão é muito simples. Será que me engano se te digo que teu trabalho consiste em deixar uma mensagem?
O Nazareno sorriu satisfeito. Pôs a mão sobre meu ombro e replicou:
- Não podias resumi-lo melhor…
Lázaro, sem fazer o menor comentário, assentiu com a cabeça.
- Tu sabes que meu coração é duro – acrescentei. Poderias repetir-me essa mensagem?
- Diz ao teu mundo que o Filho do Homem só veio para transmitir a vontade do Pai: que todos sois seus filhos!
- Isso já o sabemos…
- Estás seguro? Diz-me, Jasão, que significa para ti ser filho de Deus?
Senti-me novamente apanhado. Sinceramente, não tinha uma resposta válida. Nem mesmo estava seguro da existência desse Deus.
- Eu to direi – interveio o Mestre com uma grande doçura. Haver sido criado pelo Pai supõe a máxima manifestação de amor. Ele dá tudo sem pedir nada em troca. Eu recebi o encargo de recordar isso. Essa é a minha mensagem.
- Deixa-me pensar… Então, façamos o que façamos, estaremos condenados a ser felizes?
– É questão de tempo. É necessário que o mundo entenda, e ponha em prática que o único meio para ele é o Amor.
Tive de meditar muito minha pergunta seguinte. Naquele instante, a presença do ressuscitado podia constituir um certo problema.
- Se tua presença no mundo obedece a uma razão tão elementar como a de depositar uma mensagem para toda a humanidade, não crês que “tua igreja” é demais?
- Minha igreja? – perguntou por sua vez Jesus, embora, em minha opinião, houvesse entendido perfeitamente – Não tive, nem tenho a menor intenção de fundar uma igreja, tal como tu pareces entendê-la.
Aquela resposta perturbou-me demais.
- Mas tu disseste que a palavra do Pai deveria ser estendida até os confins da Terra…
- E em verdade te digo que assim será. Mas isso não implica condicionar ou dobrar minha mensagem à vontade do poder ou das leis humanas. Não é possível que um homem monte dois cavalos ou que dispare dois arcos. Como não é possível que um criado sirva a dois amos. Senão, ele honrará a um e ofenderá ao outro. Ninguém que beba vinho velho deseja no momento beber vinho novo. Não se verte vinho novo em odres velhos, para que não se azede, nem se transvasa vinho velho em odres novos, para que não se deteriore. Nem se cose um remendo velho a um vestido novo porque se faria um rasgão. Da mesma forma te digo: minha mensagem só necessita de corações sinceros que a transmitam; não de palácios ou falsas dignidades e púrpuras que a cubram.
- Tu sabes que não será assim…
- Ai dos que antepuserem sua estabilidade à minha vontade!
- E qual é a tua vontade?
- Que os homens se amem como os tenho amado. Isso é tudo.
- Tens razão – admiti – para isso não faz falta montar novas burocracias, nem códigos, nem chefaturas… Não obstante, muitos dos homens de meu mundo desejaríamos fazer-te uma pergunta…
- Adiante – animou-me o Galileu.
- Poderíamos chegar a Deus sem passar pela igreja?
O rabi suspirou.
- E tu necessitas dessa igreja para chegar ao teu coração?
Uma confusão extrema bloqueou-me a voz. E Jesus o percebeu.
- Muito antes de que existisse a tribo de Davi, irmão Jasão, muito antes de que o homem fosse capaz de erguer-se sobre si mesmo, meu Pai havia semeado a beleza e a sabedoria na terra. Quem vem antes, portanto, Deus ou essa igreja?
- Muitos sacerdotes do meu mundo – repliquei – consideram essa igreja como santa.
- Santo é meu Pai. Santos sereis todos vós no dia em que amardes.
- Então – e te rogo que me perdoes pelo que vou dizer-te – essa igreja está sobrando…
- O amor não necessita de templos ou legiões. Um homem tira o bem ou o mal de seu próprio coração. Um só mandamento vos é dado, e tu sabes qual é… O dia em que meus discípulos fizerem saber a toda a humanidade que o Pai existe, sua missão estará concluída.
- É curioso: esse Pai parece não ter pressa.
O gigante mirou-me compassivamente.
- Em verdade te digo que Ele sabe que terminará triunfando. O homem sofre de cegueira, mas eu vim abrir-lhe os olhos. Outros seres descobriram já que é mais vantajoso viver no Amor.
- Que ocorre então conosco? Por que não conseguimos encontrar essa paz?
- Eu já disse que os tíbios, vomitá-los-ei pela minha boca, mas não tentes mortificar teus irmãos na malícia ou na pressa. Deixa que cada espírito encontre seu caminho. Ele mesmo, ao final, será seu juiz e defensor.
- Então, tudo isso de juízo final…
- Por que tanto vos preocupais todos com o final, se nem sequer conheceis o princípio? Já te disse que do outro lado espera-vos a surpresa…
- Tenho a impressão de que Tu serias considerado excessivamente liberal para as igrejas do meu mundo.
- Deus é tão liberal, como dizes, que até mesmo permite que te enganes. Ai daqueles que se arrogam o papel de sacerdotes, respondendo ao erro com o erro e à maldade com a maldade! Ai dos que monopolizam Deus!
- Deus… Tu sempre estás falando de Deus. Poderias explica-me quem ou o que é?
O fogo daquele olhar tornou a transpassar-me. Duvido que exista muro, coração ou distância que não pudesse ser vencido por semelhante força.
- Podes tu explicar a estes de onde vens e como? Pode o homem apresar as cores entre as mãos? Pode um menino guardar o mar entre as pregas de sua túnica? Podem os doutores da lei alterar o curso das estrelas? Quem tem poder para devolver a fragrância à flor que foi pisoteada pelo boi? Não me peças que te fale de Deus: sente-o. É o suficiente…
- Eu estaria certo se dissesse que o sinto como… uma “energia”?
Eu não me dava por vencido, e Jesus o sabia.
- Vais muito bem.
- E que há por baixo dessa “energia”?
- É que não há “acima” ou “abaixo” – atalhou o Nazareno, cortando meus atropelados pensamentos – O Amor, quer dizer, o Pai, é o Todo.
- Por que é tão importante o Amor?
- É a vela do navio.
- Permite que eu insista: que é o Amor?
- Dar.
- Dar… mas dar o quê?
- Dar. Desde um olhar até tua vida.
- Que podem dar os angustiados?
- A angústia.
- A quem?
- À pessoa que lhes quer bem…
- E se não tiverem ninguém?
O mestre fez um gesto negativo.
- Isso é impossível… Até os que não te conhecem podem amar-te.
- E que dizes de teus inimigos? Também deves amá-los?
- Sobretudo a esses… O que ama aos que o amam já recebeu a recompensa.
A conversação se prolongaria, ainda, até bem entrada a madrugada. Agora sei que meu ceticismo para com aquele homem havia começado a fender.”