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sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A Medicina Tradicional Chinesa

Por Wilson Weigi
Na China de milhares de anos atrás, um soldado sentia terríveis dores de cabeça. Certo dia, numa batalha, levou uma flechada no pé. Depois que um curandeiro retirou a seta e tratou a ferida, as persistentes enxaquecas do guerreiro desapareceram como por encanto. Intrigado, o sábio experimentou espetar espinhos e fez uma relação entre a área do ferimento, próxima ao tendão de aquiles, e o alívio de dores localizadas em outras regiões, mesmo distantes, na cabeça. Assim, aprendeu a tratar diversos problemas de saúde usando o mesmo artifício: acionar pontos-chave do corpo.

Esse relato, sem nenhuma referência de data ou local, se estabeleceu no imaginário popular como a descoberta da acupuntura, a faceta mais conhecida da medicina tradicional chinesa (MTC) entre os ocidentais. A história não passa de lenda: há variações dela em que o soldado vira caçador, a flecha, um dardo, e por aí vai. O que existe de concreto é que, no lugar exato da descrição do ferimento do tal soldado, a acupuntura assinala um ponto chamado kunlun, que tem propriedades analgésicas. Por ele, passa um caminho, um meridiano que começa no canto do olho e termina no pé.

Praticados ainda hoje, os princípios da MTC foram estabelecidos há cerca de 5 mil anos. Baseados no conceito de que a saúde do homem é fruto do equilíbrio da energia vital, os chineses desenvolveram os métodos terapêuticos que compõem seu repertório: além da acupuntura, há a fitoterapia (o uso de plantas medicinais em forma de chás, extratos e cápsulas), a dietoterapia (que combina cores e sabores dos alimentos), as massagens (como o tui ná e o shiatsu) e os exercícios físicos, como o tai chi chuan e o lian gong.

Esses princípios se baseiam na concepção do Universo segundo o taoísmo, conjunto de tradições filosóficas e religiosas inauguradas pelo mestre Lao Tsé, um contemporâneo de Confúcio, que teria vivido no século 6 a.C. A filosofia do tao ("Caminho", em chinês), segundo a qual a natureza é harmônica e organizada, mas está em constante mutação, influenciou fortemente o budismo e o confucionismo, outras fontes da medicina chinesa. Na visão dos orientais, tudo o que existe no Universo é feito de energia, inclusive o ser humano. Para que haja saúde física e mental, a energia deve fluir e circular pelo corpo em equilíbrio e harmonia - os dois estados responsáveis pela ordem das coisas na natureza. "Quando há bloqueio ou estagnação de energia no organismo, surgem as doenças", diz o médico Ysao Yamamura, chefe do setor de medicina chinesa e acupuntura da Unifesp. Sob essa perspectiva, nenhuma parte do corpo ou da psique pode ser levada em conta individualmente.

Os orientais chamam essa energia universal de qi (pronuncia-se tchí). Por volta do ano 50 d.C., o filósofo taoísta Wang Chong assim definiu a vida e a morte: "O qi forma o corpo humano da mesma forma que a água se transforma em gelo. E, como o gelo derrete, o corpo que morre volta a ser espírito". No século 11, outro filósofo, Zhang Zai, deu uma definição semelhante: "Um nascimento é a condensação do qi; a morte, sua dispersão".

"Não existe lugar onde o qi não esteja", afirma, por sua vez, o livro Huang Di Nei Jing, ou Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo, antigo texto considerado até hoje a doutrina fundamental da medicina chinesa. Esse tratado de teoria e prática terapêutica foi estruturado em forma de perguntas e respostas: nele, Huang Di, o Imperador Amarelo, interroga o médico Qi Po sobre diversas questões ligadas à saúde. Não há consenso sobre a data de sua elaboração. Alguns especialistas estimam que sua origem esteja entre os séculos 4 a.C. e 2 d.C. Estranha é a enorme discrepância de datas entre a obra e seus protagonistas, já que o Imperador Amarelo teria vivido milênios antes, entre os anos 2698 e 2599 a.C. - a bem da verdade, nem se sabe ao certo se ele realmente existiu. A confusão se explica, em parte, pelo costume vigente na antiga China de atribuir a autoria de textos importantes a figuras históricas famosas. Nem vem ao caso: o Nei Jing tornou-se uma fonte essencial da medicina chinesa.

Os historiadores creditam ainda mais valor ao livro por constituir um marco do momento que a medicina dos orientais abandona um estágio primitivo de crenças baseadas na tradição xamânica, que atribuíam as doenças à ação de demônios (ou outros elementos sobrenaturais) e evolui para um embasamento filosófico que estabelece a influência sobre a saúde de fatores como dieta, estilo de vida, emoções e ambiente. "O Nei Jing ensina a colocar na prática médica os outros princípios do tao, como a dualidade yin e yang e a Teoria dos Cinco Elementos", diz Helena Campiglia, professora de MTC e acupuntura da Universidade de McMaster, no Canadá.

Eminentes médicos, sábios e filósofos desenvolveram pesquisas e fizeram notáveis descobertas que foram acrescentadas às práticas terapêuticas. Um dos períodos áureos da medicina chinesa foi a época da Dinastia Tem (206 a.C. a 220 d.C.), marcada pelo pioneirismo em combate a venenos, uso de ervas medicinais, anestesia e suturas. Quase nada se sabe da vida de grande parte desses antigos mestres: tanto que, muitas vezes, não há consenso sobre as datas de nascimento e morte. Suas histórias quase sempre são permeadas por parábolas. Os tratados que legaram à posteridade, porém, são concretos e lançaram bases para a medicina praticada ainda hoje.

A fitoterapia é um dos métodos terapêuticos mais difundidos no mundo ocidental. Um dado interessante é que as fórmulas chinesas costumam combinar três ou mais plantas: é raro uma erva ser usada sozinha. "Os chineses levam em consideração que cada planta tem o poder de atenuar ou potencializar o efeito de outra", afirma o professor Ysao Yamamura. De acordo com a tradição inspirada na realeza da antiga China, no topo da fórmula está a erva mais forte ou poderosa contra o desequilíbrio ou a patologia, considerada o "rei" ou "imperador", e, abaixo dela, as plantas que são "ministros" e combatem aspectos secundários do problema. Em seguida, as "assistentes" aumentam ou diminuem a ação do "imperador" ou aliviam seus possíveis efeitos colaterais nocivos. Pode haver ainda uma que atua como "mensageira" entre os vários escalões, focalizando a ação medicinal num órgão ou canal de energia específico.

Por volta do ano 200, o médico Wang Shuhe, discípulo de Zhang Zhongjing, escreveu o primeiro tratado de pulsologia - método de diagnóstico por meio da artéria do pulso -, em que identifica 24 tipos de pulsação, discorrendo sobre o assunto em nada menos do que 350 páginas. "A técnica provavelmente surgiu da necessidade de o médico fazer o diagnóstico quando era proibido ver as mulheres na corte imperial", afirma Helena Campiglia. "Por meio do pulso, consegue-se avaliar a condição de órgãos como estômago, fígado e coração, entre outros."

Outra forma de diagnóstico que parece curiosa aos olhos ocidentais, a observação da língua, surgiu em algum momento durante a Dinastia Shang (1600 a 1000 a.C.). Na visão chinesa, por ter contato com o ar, a língua é considerada um órgão externo e nas suas diferentes regiões também estão representadas outras partes do corpo. A avaliação da face do paciente, outra parte importante das consultas médicas, se desenvolveu entre os anos 500 e 300 a.C. Segundo esse tipo de análise, existem correspondências entre as regiões do rosto e os órgãos vitais. A condição do coração, por exemplo, se revela na testa.

Nessa época, também floresce um sistema de saúde em que atuavam médicos de diversos níveis de status, aprendizes e farmacêuticos. Já durante a Dinastia Chin (265 a 420), foi criada uma universidade imperial, que já contava com a medicina entre as disciplinas. Um pouco mais tarde, várias invenções chinesas, como a imprensa, a bússola e a pólvora, assinalavam o período da Dinastia Song (960 a 1279), que ficou marcado também pela atuação de sábios polivalentes, como o pediatra Qian Yi, que fez várias descobertas sobre o combate a doenças como sarampo e escarlatina.

Só faltava esse manancial de informação chegar ao Ocidente. Isso aconteceu a partir do século 13 (época em que a Europa vivia assolada pela peste e por outras pragas), principalmente por meio dos padres jesuítas portugueses que se dedicavam à catequese no Japão. Eles levaram aos continentes europeu e africano alguns fundamentos da "medicina exótica" que se praticava ali. Nos séculos 16 e 17, a medicina das ervas e agulhas experimentou um boom entre os ocidentais, propagada por médicos residentes nas terras do Oriente. O Grande Tratado de Matéria Médica, de autoria do médico Li Shizhen, chegou a ser traduzido para diversos idiomas. O interesse pelas práticas foi esfriando, porém, e assim permaneceu até as primeiras décadas do século 20, em parte por causa da crescente influência dos valores ocidentais sobre a cultura chinesa.

Por pressão inglesa, a China baniu suas tradições médicas em 1912. A revolução comunista liderada por Mao Tsé Tung resgatou o conhecimento milenar e ofereceu seus tratamentos na rede pública de saúde como uma forma de ampliar o atendimento à população. Apesar do regime fechado, Mao estimulou o intercâmbio de formação de especialistas em acupuntura, tui ná e outras técnicas com vários países. Coube a Georges Soulié de Morant um importante papel no resgate das terapias orientais: diplomata, ele viveu na China e traduziu para o francês, sua língua natal, vários livros sobre acupuntura, entre eles A Acupuntura Chinesa, de 1941. A modalidade voltaria à ordem do dia no Ocidente quando o jornalista James Reston, do The New York Times, espalhou nos anos 1970 que, graças às agulhadas precisas, havia tido uma convalescência rápida e indolor depois de operado de apendicite numa viagem à China. Na mesma época, os hippies aderiram às religiões orientais e as difundiram entre os jovens de todo o mundo - a fitoterapia e utras práticas acabaram disseminadas nessa onda.

Apesar da popularização, a MTC ainda encontra certa resistência na comunidade médica, baseada especialmente na falta de comprovação científica de resultados obtidos pelos tratamentos ou de seus mecanismos de funcionamento. "Mas há um avanço nessa aceitação", diz Yamamura. O Brasil é um exemplo. Aqui, pode-se fazer pós-graduação na área e a acupuntura é reconhecida como uma especialidade médica pelo Ministério da Educação e Cultura, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Federal de Medicina.

Para os orientais, tudo o que existe pode ser associado a padrões. E a forma como os taoístas classificaram e organizaram a ordem do Universo se estabeleceu na Teoria dos Cinco Elementos. Por serem naturalistas, os filósofos adotaram elementos da natureza para identificar qualidades. Eles costumam ser também relacionados a cores, sabores, emoções, sentidos e órgãos. A medicina chinesa foi pioneira em identificar as consequências patológicas da somatização - defende que as doenças podem ser causadas pelas emoções, e vice-versa.

De acordo com a Medicina Tradicional Chinesa, há 12 linhas principais por onde a energia vital percorre o corpo. "Para os chineses, a energia circula no homem pelos meridianos, caminhos distribuídos no corpo inteiro", diz a médica Helena Campiglia, professora da Associação Médica Brasileira de Acupuntura e da Universidade de McMaster, em Toronto, Canadá.

A acupuntura utiliza, segundo ela, cerca de 400 a 800 pontos identificados ao longo desses meridianos, que podem ser acionados para favorecer ou reter a circulação da energia, o que estaria por trás das doenças. Outras terapias chinesas também se apoiam na ideia dos meridianos, como a dietoterapia e massagens, como o tui ná.

O yin e yang é a união fundamental dos opostos. Observando a natureza, os taoístas notaram que, por trás dos aparentes caos e aleatoriedade dos fenômenos da natureza, existiam ciclos previsíveis, baseados na polarização de energias que, ao mesmo tempo em que se opunham, também se complementavam, o que foi batizado de yin e yang. Segundo a tradição chinesa, o Universo, antes de ser "uno", dividiu-se em dois e depois em milhares, milhões e bilhões de partes. A primeira divisão, em yin e yang, encerrou os princípios básicos de tudo o que existe. "Essas polaridades também se definem e estão contidas uma na outra: luz e escuridão, inércia e movimento, contração e expansão, céu e terra, morte e vida, feminino e masculino, passivo e ativo, razão e emoção são alguns exemplos de polaridades yin-yang", diz Helena Campiglia. Dentro dessa concepção, a vida só pode existir enquanto as duas forças estiverem em equilíbrio e o mesmo princípio se aplica aos conceitos de saúde e doença. Para a medicina chinesa, alguém saudável mantém o equilíbrio entre essas energias opostas.

Saiba mais:
Psique e Medicina Tradicional Chinesa, Helena Campiglia, Editora Roca, 2004.
A análise e o tratamento de problemas psíquicos segundo a MTC.
Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo, Bing Wang, Ícone Editora, 2001.

Fonte:http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/confira-historia-medicina-tradicional-chinesa-682330.shtml?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_avhistoria&

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