Por Wilson Weigi
Na
China de milhares de anos atrás, um soldado sentia terríveis dores de cabeça.
Certo dia, numa batalha, levou uma flechada no pé. Depois que um curandeiro
retirou a seta e tratou a ferida, as persistentes enxaquecas do guerreiro
desapareceram como por encanto. Intrigado, o sábio experimentou espetar
espinhos e fez uma relação entre a área do ferimento, próxima ao tendão de
aquiles, e o alívio de dores localizadas em outras regiões, mesmo distantes, na
cabeça. Assim, aprendeu a tratar diversos problemas de saúde usando o mesmo
artifício: acionar pontos-chave do corpo.
Esse
relato, sem nenhuma referência de data ou local, se estabeleceu no imaginário
popular como a descoberta da acupuntura, a faceta mais conhecida da medicina
tradicional chinesa (MTC) entre os ocidentais. A história não passa de lenda:
há variações dela em que o soldado vira caçador, a flecha, um dardo, e por aí
vai. O que existe de concreto é que, no lugar exato da descrição do ferimento
do tal soldado, a acupuntura assinala um ponto chamado kunlun, que tem
propriedades analgésicas. Por ele, passa um caminho, um meridiano que começa no canto do olho e termina no pé.
Praticados
ainda hoje, os princípios da MTC foram estabelecidos há cerca de 5 mil anos.
Baseados no conceito de que a saúde do homem é fruto do equilíbrio da energia
vital, os chineses desenvolveram os métodos terapêuticos que compõem seu
repertório: além da acupuntura, há a fitoterapia (o uso de plantas medicinais
em forma de chás, extratos e cápsulas), a dietoterapia (que combina cores e
sabores dos alimentos), as massagens (como o tui ná e o shiatsu) e os
exercícios físicos, como o tai chi chuan e o lian gong.
Esses
princípios se baseiam na concepção do Universo segundo o taoísmo, conjunto de
tradições filosóficas e religiosas inauguradas pelo mestre Lao Tsé, um
contemporâneo de Confúcio, que teria vivido no século 6 a.C. A filosofia do tao
("Caminho", em chinês), segundo a qual a natureza é harmônica e
organizada, mas está em constante mutação, influenciou fortemente o budismo e o
confucionismo, outras fontes da medicina chinesa. Na visão dos orientais, tudo
o que existe no Universo é feito de energia, inclusive o ser humano. Para que
haja saúde física e mental, a energia deve fluir e circular pelo corpo em equilíbrio
e harmonia - os dois estados responsáveis pela ordem das coisas na natureza.
"Quando há bloqueio ou estagnação de energia no organismo, surgem as
doenças", diz o médico Ysao Yamamura, chefe do setor de medicina chinesa e
acupuntura da Unifesp. Sob essa perspectiva, nenhuma parte do corpo ou da
psique pode ser levada em conta individualmente.
Os
orientais chamam essa energia universal de qi (pronuncia-se tchí). Por volta do
ano 50 d.C., o filósofo taoísta Wang Chong assim definiu a vida e a morte:
"O qi forma o corpo humano da mesma forma que a água se transforma em
gelo. E, como o gelo derrete, o corpo que morre volta a ser espírito". No
século 11, outro filósofo, Zhang Zai, deu uma definição semelhante: "Um
nascimento é a condensação do qi; a morte, sua dispersão".
"Não
existe lugar onde o qi não esteja", afirma, por sua vez, o livro Huang Di
Nei Jing, ou Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo, antigo texto
considerado até hoje a doutrina fundamental da medicina chinesa. Esse tratado de
teoria e prática terapêutica foi estruturado em forma de perguntas e respostas:
nele, Huang Di, o Imperador Amarelo, interroga o médico Qi Po sobre diversas
questões ligadas à saúde. Não há consenso sobre a data de sua elaboração.
Alguns especialistas estimam que sua origem esteja entre os séculos 4 a.C. e 2
d.C. Estranha é a enorme discrepância de datas entre a obra e seus
protagonistas, já que o Imperador Amarelo teria vivido milênios antes, entre os
anos 2698 e 2599 a.C. - a bem da verdade, nem se sabe ao certo se ele realmente
existiu. A confusão se explica, em parte, pelo costume vigente na antiga China
de atribuir a autoria de textos importantes a figuras históricas famosas. Nem
vem ao caso: o Nei Jing tornou-se uma fonte essencial da medicina chinesa.
Os
historiadores creditam ainda mais valor ao livro por constituir um marco do
momento que a medicina dos orientais abandona um estágio primitivo de crenças
baseadas na tradição xamânica, que atribuíam as doenças à ação de demônios (ou
outros elementos sobrenaturais) e evolui para um embasamento filosófico que
estabelece a influência sobre a saúde de fatores como dieta, estilo de vida,
emoções e ambiente. "O Nei Jing ensina a colocar na prática médica os
outros princípios do tao, como a dualidade yin e yang e a Teoria dos Cinco
Elementos", diz Helena Campiglia, professora de MTC e acupuntura da
Universidade de McMaster, no Canadá.
Eminentes
médicos, sábios e filósofos desenvolveram pesquisas e fizeram notáveis
descobertas que foram acrescentadas às práticas terapêuticas. Um dos períodos
áureos da medicina chinesa foi a época da Dinastia Tem (206 a.C. a 220 d.C.),
marcada pelo pioneirismo em combate a venenos, uso de ervas medicinais,
anestesia e suturas. Quase nada se sabe da vida de grande parte desses antigos
mestres: tanto que, muitas vezes, não há consenso sobre as datas de nascimento
e morte. Suas histórias quase sempre são permeadas por parábolas. Os tratados
que legaram à posteridade, porém, são concretos e lançaram bases para a
medicina praticada ainda hoje.
A
fitoterapia é um dos métodos terapêuticos mais difundidos no mundo ocidental.
Um dado interessante é que as fórmulas chinesas costumam combinar três ou mais
plantas: é raro uma erva ser usada sozinha. "Os chineses levam em
consideração que cada planta tem o poder de atenuar ou potencializar o efeito
de outra", afirma o professor Ysao Yamamura. De acordo com a tradição
inspirada na realeza da antiga China, no topo da fórmula está a erva mais forte
ou poderosa contra o desequilíbrio ou a patologia, considerada o
"rei" ou "imperador", e, abaixo dela, as plantas que são
"ministros" e combatem aspectos secundários do problema. Em seguida,
as "assistentes" aumentam ou diminuem a ação do "imperador"
ou aliviam seus possíveis efeitos colaterais nocivos. Pode haver ainda uma que
atua como "mensageira" entre os vários escalões, focalizando a ação
medicinal num órgão ou canal de energia específico.
Por
volta do ano 200, o médico Wang Shuhe, discípulo de Zhang Zhongjing, escreveu o
primeiro tratado de pulsologia - método de diagnóstico por meio da artéria do
pulso -, em que identifica 24 tipos de pulsação, discorrendo sobre o assunto em
nada menos do que 350 páginas. "A técnica provavelmente surgiu da
necessidade de o médico fazer o diagnóstico quando era proibido ver as mulheres
na corte imperial", afirma Helena Campiglia. "Por meio do pulso,
consegue-se avaliar a condição de órgãos como estômago, fígado e coração, entre
outros."
Outra
forma de diagnóstico que parece curiosa aos olhos ocidentais, a observação da
língua, surgiu em algum momento durante a Dinastia Shang (1600 a 1000 a.C.). Na
visão chinesa, por ter contato com o ar, a língua é considerada um órgão
externo e nas suas diferentes regiões também estão representadas outras partes
do corpo. A avaliação da face do paciente, outra parte importante das consultas
médicas, se desenvolveu entre os anos 500 e 300 a.C. Segundo esse tipo de
análise, existem correspondências entre as regiões do rosto e os órgãos vitais.
A condição do coração, por exemplo, se revela na testa.
Nessa
época, também floresce um sistema de saúde em que atuavam médicos de diversos
níveis de status, aprendizes e farmacêuticos. Já durante a Dinastia Chin (265 a
420), foi criada uma universidade imperial, que já contava com a medicina entre
as disciplinas. Um pouco mais tarde, várias invenções chinesas, como a
imprensa, a bússola e a pólvora, assinalavam o período da Dinastia Song (960 a
1279), que ficou marcado também pela atuação de sábios polivalentes, como o
pediatra Qian Yi, que fez várias descobertas sobre o combate a doenças como
sarampo e escarlatina.
Só
faltava esse manancial de informação chegar ao Ocidente. Isso aconteceu a
partir do século 13 (época em que a Europa vivia assolada pela peste e por
outras pragas), principalmente por meio dos padres jesuítas portugueses que se
dedicavam à catequese no Japão. Eles levaram aos continentes europeu e africano
alguns fundamentos da "medicina exótica" que se praticava ali. Nos
séculos 16 e 17, a medicina das ervas e agulhas experimentou um boom entre os
ocidentais, propagada por médicos residentes nas terras do Oriente. O Grande
Tratado de Matéria Médica, de autoria do médico Li Shizhen, chegou a ser
traduzido para diversos idiomas. O interesse pelas práticas foi esfriando,
porém, e assim permaneceu até as primeiras décadas do século 20, em parte por
causa da crescente influência dos valores ocidentais sobre a cultura chinesa.
Por
pressão inglesa, a China baniu suas tradições médicas em 1912. A revolução
comunista liderada por Mao Tsé Tung resgatou o conhecimento milenar e ofereceu
seus tratamentos na rede pública de saúde como uma forma de ampliar o
atendimento à população. Apesar do regime fechado, Mao estimulou o intercâmbio
de formação de especialistas em acupuntura, tui ná e outras técnicas com vários
países. Coube a Georges Soulié de Morant um importante papel no resgate das
terapias orientais: diplomata, ele viveu na China e traduziu para o francês,
sua língua natal, vários livros sobre acupuntura, entre eles A Acupuntura
Chinesa, de 1941. A modalidade voltaria à ordem do dia no Ocidente quando o
jornalista James Reston, do The New York Times, espalhou nos anos 1970 que, graças
às agulhadas precisas, havia tido uma convalescência rápida e indolor depois de
operado de apendicite numa viagem à China. Na mesma época, os hippies aderiram
às religiões orientais e as difundiram entre os jovens de todo o mundo - a
fitoterapia e utras práticas acabaram disseminadas nessa onda.
Apesar
da popularização, a MTC ainda encontra certa resistência na comunidade médica,
baseada especialmente na falta de comprovação científica de resultados obtidos
pelos tratamentos ou de seus mecanismos de funcionamento. "Mas há um
avanço nessa aceitação", diz Yamamura. O Brasil é um exemplo. Aqui,
pode-se fazer pós-graduação na área e a acupuntura é reconhecida como uma
especialidade médica pelo Ministério da Educação e Cultura, pelo Ministério da
Saúde e pelo Conselho Federal de Medicina.
Para
os orientais, tudo o que existe pode ser associado a padrões. E a forma como os
taoístas classificaram e organizaram a ordem do Universo se estabeleceu na
Teoria dos Cinco Elementos. Por serem naturalistas, os filósofos adotaram
elementos da natureza para identificar qualidades. Eles costumam ser também
relacionados a cores, sabores, emoções, sentidos e órgãos. A medicina chinesa foi
pioneira em identificar as consequências patológicas da somatização - defende
que as doenças podem ser causadas pelas emoções, e vice-versa.
De
acordo com a Medicina Tradicional Chinesa, há 12 linhas principais por onde a
energia vital percorre o corpo. "Para os chineses, a energia circula no
homem pelos meridianos, caminhos distribuídos no corpo inteiro", diz a
médica Helena Campiglia, professora da Associação Médica Brasileira de
Acupuntura e da Universidade de McMaster, em Toronto, Canadá.
A acupuntura utiliza, segundo ela, cerca de 400 a 800 pontos identificados ao longo desses meridianos, que podem ser acionados para favorecer ou reter a circulação da energia, o que estaria por trás das doenças. Outras terapias chinesas também se apoiam na ideia dos meridianos, como a dietoterapia e massagens, como o tui ná.
O
yin e yang é a união fundamental dos opostos. Observando a natureza, os
taoístas notaram que, por trás dos aparentes caos e aleatoriedade dos fenômenos
da natureza, existiam ciclos previsíveis, baseados na polarização de energias
que, ao mesmo tempo em que se opunham, também se complementavam, o que foi
batizado de yin e yang. Segundo a tradição chinesa, o Universo, antes de ser
"uno", dividiu-se em dois e depois em milhares, milhões e bilhões de
partes. A primeira divisão, em yin e yang, encerrou os princípios básicos de
tudo o que existe. "Essas polaridades também se definem e estão contidas
uma na outra: luz e escuridão, inércia e movimento, contração e expansão, céu e
terra, morte e vida, feminino e masculino, passivo e ativo, razão e emoção são
alguns exemplos de polaridades yin-yang", diz Helena Campiglia. Dentro
dessa concepção, a vida só pode existir enquanto as duas forças estiverem em
equilíbrio e o mesmo princípio se aplica aos conceitos de saúde e doença. Para
a medicina chinesa, alguém saudável mantém o equilíbrio entre essas energias
opostas.
Saiba
mais:
Psique
e Medicina Tradicional Chinesa, Helena Campiglia, Editora Roca, 2004.
A
análise e o tratamento de problemas psíquicos segundo a MTC.
Princípios
de Medicina Interna do Imperador Amarelo, Bing Wang, Ícone Editora, 2001.
Fonte:http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/confira-historia-medicina-tradicional-chinesa-682330.shtml?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_avhistoria&
Retirado
de:
0 comentários:
Postar um comentário