Por Luiz Antonio Simas
Chegamos
ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que
as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa.
A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre
o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais.
Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/ o cravo
ficou feliz/ e a rosa ficou encantada".
Que
diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será
que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de
16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore
brasileiro?
É
Villa Lobos, cacete!
Outra
música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância
o negócio era o seguinte: "Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/
Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas". A palmada na bunda está
proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora
ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre
passar/ A Lelê vai estudar.
Se
eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os
amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a
parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do
Jardim Escola Criança Feliz.
Comunico
também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas
crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias
atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é
coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não
despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.
Dia
desses alguém (não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a
referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda) foi espinafrado
porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o
problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino
se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e
setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do
mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca,
diria o velho.
Vivemos
tempos de não me toques que eu magoo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a
expressão coisa de viado? Que me desculpem os paladinos da cartilha da
correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a
sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de
viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.
Daqui
a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara
de baile infantil - de deficiente vertical. O crioulo - vulgo picolé de asfalto
ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente. O
branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano
desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo
avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida
como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente
dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo - outrora conhecido como
rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão
que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome,
pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de
mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.
Nas
aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o
seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais...
Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição
fabulosa do Brasil.
O
recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014,
disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz
pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar (...), cantaremos nas
arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de
Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.
Falei
em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio
de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa
Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá,
já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é
simplesmente a "melhor idade".
Se
Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não.
Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.
***
Luiz
Antonio Simas, é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor de História do ensino médio. Ele é considerado um dos
profissionais mais importantes do Rio de Janeiro em sua área de atuação.
Publicou em parceria com o caricaturista Cássio Loredano, o livro O Vidente
Míope, sobre o desenhista carioca J. Carlos, indicado pela Revista de História
da Biblioteca Nacional como uma das publicações mais relevantes da área no ano
de 2007. Desenvolve pesquisas sobre a cultura popular carioca, mais especificamente
nos campos do futebol e da música popular. Foi o responsável pela pesquisa da
exposição Todas as Copas, evento realizado no Brasil e nos Estados Unidos
durante a Copa do Mundo de 1994. Seu trabalho foi considerado pela FIFA como um
dos mais completos levantamentos já realizados sobre a história dos mundiais de
futebol. É atualmente consultor da área de carnaval do Museu da Imagem e do Som
do Rio de Janeiro.
Dimas, realmente, não sei porque mas músicas infantis antigas sempre tem alguém que morre, apanha, tá doente.Mas nada contra, também acho uma babaquice distocer lindas cantigas que são totalmente inocentes.bjs e uma boa semana!
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