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sexta-feira, 22 de abril de 2011

O Arqueiro Zen e o "Algo" que Atira

 Eugen Herrigel (Lichtenau, Alemanha,  20/03/1885 - 18/04/1955) estudou o tiro com arco japonês com o Mestre Kenzo Awa  por volta de 1925 e lançou um livro que hoje é um clássico: a Arte Cavalheirsca do Arqueiro Zen  em 1948,  quase vinte anos depois de ter voltado do Japão.

"Na hora de manter a tensão, ela deve ser concentrada apenas naquilo que você precisa usar; de resto, economize suas energias, aprenda (com o arco) que para se atingir algo não é necessário fazer um movimento gigantesco, mas focalizar o seu objetivo.
(...)
O meu mestre me deu um arco muito rígido. Perguntei por que estava começando a me ensinar como se eu já fosse um profissional. Ele respondeu: aquele que começa com coisas fáceis, fica despreparado para os grandes desafios. Melhor saber logo que tipo de dificuldade irá encontrar no caminho.
(...)
Durante muito tempo eu atirava sem conseguir abrir direito o arco, até que um dia o mestre me ensinou um exercício de respiração, e tudo ficou fácil.Perguntei porque demorara tanto para me corrigir. Ele respondeu: ' Se desde o início eu tivesse lhe ensinado os exercícios respiratórios, você acharia que eram desnecessários. Agora você irá acreditar naquilo que eu lhe digo, e irá praticar como se fosse realmente importante. Quem sabe educar, age assim'.
(...)
O momento de soltar a flecha acontece de maneira instintiva, mas antes é preciso conhecer bem o arco, a flecha e o alvo. O golpe perfeito nos desafios da vida, também usa a intuição; entretanto, só podemos esquecer a técnica depois que a dominamos completamente.

(...) Depois de quatro anos, quando já era capaz de dominar o arco, o mestre me deu os parabéns. Eu fiquei contente, e disse que já tinha chegado na metade do caminho. 'Não', respondeu o mestre. 'Para não cair em armadilhas traiçoeiras, é melhor considerar como metade do caminho o ponto que você atinge depois de percorrer 90% da estrada.'
(...)
Dia após dia, eu ia penetrando com maior facilidade na interpretação e na prática da Doutrina Magna do tiro com arco e a executava sem esforço, como se o estivesse praticando durante um sonho. Confirmavam-se, assim, as palavras do mestre. Contudo, eu não conseguia me concentrar além do momento do disparo. Manter a atenção num máximo de tensão não só me fatigava, ocasionando um relaxamento da própria tensão, como se desvanecia, perdendo sua energia potencial até tornar-se insuportável e, em muitas ocasiões, obrigando-me a dirigir minha atenção, provocando eu mesmo o disparo.
‘Deixe de pensar no disparo!’, exclamava o mestre. ‘Assim não há como evitar o fracasso!’
‘Eu não consigo evitar’, repliquei. ‘A tensão é insuportavelmente dolorosa.’
‘Isso acontece porque o senhor não está realmente desprendido de si mesmo. Contudo, é tão simples... Uma simples folha de bambu pode ensiná-lo. Com o peso da neve ela vai se inclinando aos poucos, até que de repente a neve escorrega e cai, sem que a folha tenha se movido. Como ela, permaneça na maior tensão até que o disparo caia: quando a tensão está no máximo, o tiro tem que cair, tem que desprender-se do arqueiro como a neve da folha, antes mesmo que ele tenha pensado nisso.’
(...)
‘O senhor sabe o que acontece se somos incapazes de permanecer livres de intenção, no estado de máxima tensão. O senhor não pode continuar o aprendizado se não se perguntar uma ou outra vez: 'Eu o conseguirei? Espere pacientemente o que vier e como vier!’ Lembrei-lhe que estava no curso há quatro anos e que minha estada no Japão não era ilimitada, ao que ele respondeu:
‘O caminho até a meta é incomensurável. Para ele nada significam semanas, meses, anos.’
‘Mas se eu tiver que interromper meu aprendizado na metade do caminho?’
‘Pode fazê-lo a qualquer momento, desde que se tenha desprendido realmente do seu eu. Por isso, continue praticando!’
E assim, voltamos a começar desde o princípio, como se todo o aprendizado tivesse sido inútil. Continuava impossível para mim permanecer sem intenção dentro, como se fosse possível escapar de um caminho por demais viciado, até que um dia perguntei ao mestre:
‘Como o disparo pode ocorrer, se não for eu que o fizer acontecer?’
Algo dispara’, respondeu-me.
‘Já ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: como posso esperar pelo disparo, esquecido de mim mesmo, se eu não posso estar presente?
Algo permanece na tensão máxima’.
‘E o que é esse algo?’
‘Quando o senhor souber a resposta, não precisará mais de mim. E se eu lhe der alguma pista, poupando-o da experiência pessoal, serei o pior dos mestres, merecendo ser dispensado. Por isso, não falemos mais! Pratiquemos!’
Passaram-se muitas semanas sem que eu tivesse avançado um passo, mas isso em nada me afetava. O longo aprendizado tinha me tomado indiferente. Aprender a arte, descobrir o que o mestre quis dizer com o seu algo, encontrar o acesso ao Zen, tudo isso me pareceu de repente tão longínquo, tão indiferente, que já não me preocupava. Em várias ocasiões, propus-me confessá-lo ao mestre, mas diante dele a coragem desaparecia. Estava convencido de que escutaria outra vez a sua resposta tranquila: ‘Não pergunte, pratique!’ Então, deixei de fazer perguntas e por pouco, também de praticar, se o mestre não me tivesse mantido seguro nas suas mãos. Indiferente, eu deixava os dias passarem, cumprindo da melhor maneira possível minhas obrigações profissionais, já não me afastando a constatação de indiferença que eu tinha diante daquilo a que, durante anos, eu dedicara meus mais persistentes esforços.
Certo dia, depois de um tiro executado por mim, o mestre fez uma profunda reverência e deu a aula por terminada. Diante do meu olhar perplexo, exclamou: ‘Algo acaba de atirar’. E, ao compreender o que ele queria dizer, fui tomado por uma incontida explosão de alegria.
‘Minhas palavras’, advertiu-me o mestre, ‘não são de elogio, mas uma simples constatação que não deve alterá-lo. A minha reverência não foi dirigida ao senhor. O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima: o disparo caiu, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido.’

Retirado de: Eugen Herrigel, - A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. São Paulo. Editora Pensamento-Cultrix

Um comentário:

  1. Amigo, obrigado pela postagem. Disse-me coisas que há tempos ansiava por ouvir novamente.

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