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quarta-feira, 20 de abril de 2011

O Arqueiro Zen e a Arte de Esperar

O pequeno livro de Eugen Herrigel (Lichtenau, Alemanha, a 20 de março de 1885 - 18 de abril de 1955) que estudou o tiro com arco japonês com o Mestre Kenzo Awa por volta de 1925 e lançou seu livro em 1948 (quase vinte anos depois de ter voltado do Japão) foi um dos mais importantes que eu já li na minha vida. Ao lado do Tao Te King ele foi o responsável por formar muito da minha personalidade,  já o reli umas cinco vezes e tenho certeza de que lerei outras.

*** 

“Executado pelo mestre, o disparo [do arco] parecia simples e carente de complexidade, como se fosse uma brincadeira infantil.
A facilidade com que se executa um ato que exige força é, sem dúvida, um espetáculo cuja beleza o oriental aprecia com grande prazer. Quanto a mim, parecia mais importante ainda — e, dado o meu estágio de aprendizagem, não podia me ocorrer outra coisa — que a precisão do tiro dependia da suavidade do disparo. Minhas experiências com o fuzil me ensinaram o quanto contribui para um erro o menor tremor das mãos.
Tudo o que eu havia aprendido até então era: relaxar ao estirar, permanecer relaxado durante a tensão máxima, estar relaxado ao soltar a flecha e compensar, relaxada-mente, o tremor do corpo. Afinal, tudo isso não estava a serviço da precisão do tiro, isto é, o objetivo para o qual nos dedicamos com tanta paciência e sofrimento? Por que, então, o mestre agora falava de um acontecimento que ultrapassaria tudo o que havíamos feito até agora?
Eu continuava me exercitando com afinco, segundo todos os ensinamentos do mestre, mas meus esforços eram vãos. Muitas vezes, tive a impressão de que antes, quando disparava com espontaneidade, obtia resultados melhores. Eu não podia abrir sem esforço a mão direita (primeiramente, os dedos que prendiam o polegar) e a consequência era uma sacudidela que desviava a flecha no momento do disparo. E era também incapaz de compensar elasticamente o choque da mão direita liberada. Imperturbável, o mestre me mostrava de vez em quando a execução correta do disparo. Com perseverança, eu tratava de imitá-lo, sem outro resultado que o da minha insegurança cada vez maior. Eu parecia uma centopeia incapaz de mover as patas, por não saber em que ordem isso deveria ser feito.
Meu fracasso afetava muito mais a mim do que ao mestre. Saberia ele, por experiência própria, que tais fatos ocorriam? ‘Não pense no que deve fazer ou em como fazê-lo!’, exclamou. ‘Somente se o próprio arqueiro se surpreender com a saída da flecha é que o tiro sai suavemente, como se a corda cortar de repente o polegar que a retém, sem que se abra a mão intencionalmente.’
Seguiram-se semanas e meses de infrutíferos exercícios. Os disparos do mestre me forneciam indicações precisas, revelavam-me a sua essência, mas, quanto a mim, os fracassos se repetiam. Se, esperando em vão pelo disparo, cedia à tensão porque ela era insuportável, as mãos se aproximavam lentamente uma da outra, não resultando tiro algum. Se resistia obstinadamente até perder o fôlego, eu era obrigado a forçar a musculatura dos braços e dos ombros, ‘permanecendo como uma estátua’, nas palavras do mestre, numa posição espasmódica, sem nenhum relaxamento.
Devido a uma casualidade que parecia intencional, reunimo-nos, certo dia, o mestre e eu, diante de uma taça de chá. A ocasião me pareceu propícia para um diálogo profundo. Abri meu coração: ‘Compreendo muito bem que a mão não deve abrir-se bruscamente no ato do disparo, mas, faça o que fizer, sempre me saio mal. Se fecho a mão com todas as minhas forças, o golpe ao abri-la é inevitável. Por outro lado, se me esforço para deixá-la relaxada, a corda me escapa antes de estar estirada completamente, antes de eu estar pronto para atirar. Oscilo entre esses extremos do fracasso e não encontro solução.’
‘É preciso manter a corda esticada’, explicou o mestre, ‘como a criança que segura o dedo de alguém. Ela o retém com tanta firmeza que é de admirar a força contida naquele pequeno punho. Ao soltar o dedo, ela o faz sem a menor sacudidela. Sabe por quê? Porque a criança não pensa: ‘agora vou soltar o dedo para pegar outra coisa’. Sem refletir, sem intenção nenhuma, volta-se de um objeto para outro, e dir-se-ia que joga com eles, se não fosse igualmente correto que são os objetos que jogam com a criança.’
‘Compreendo o que o senhor quer dizer com essa comparação, mas não me encontro numa situação diferente? Quando estou com o arco estirado, chega um momento em que sinto que, se não disparar imediatamente, não resistirei mais à tensão. O que sucede, então? Fico sem poder respirar. E sou eu quem deve dispará-lo a todo custo, porque não consigo esperar mais.’
‘O senhor acaba de descrever com perfeição qual é sua dificuldade. Sabe por que não pode esperar pelo momento exato do disparo e por que perde a respiração? O tiro justo no momento justo não ocorre porque o senhor não sabe desprender-se de si mesmo, um acontecimento que deveria ocorrer de maneira independente, pois, enquanto não suceder, a mão não se abrirá de maneira adequada, como a da criança.’
Tive de admitir diante do mestre que essa interpretação me confundia ainda mais: ‘Pois sou eu quem estira o arco e sou eu quem o dispara em direção do alvo. Estirar o arco é, pois, um meio para um fim, e essa relação não pode ser perdida de vista. A criança, contudo, não a conhece e eu, obviamente, não posso descartá-la.’
‘A arte genuína’, afirmou o mestre, ‘não conhece nem fim nem intenção. Quanto mais obstinadamente o senhor se empenhar em aprender a disparar a flecha para acertar o alvo, não conseguirá nem o primeiro e muito menos o segundo intento. O que obstrui o caminho é a vontade demasiadamente ativa. O senhor pensa que o que não for feito pelo senhor mesmo não dará resultado.’
‘Mas o senhor mesmo me disse muitas vezes que a arte do arqueiro não é um passatempo, um jogo carente de finalidade, mas uma questão de vida ou morte.’
‘Eu não me desminto. Nós, os mestres-arqueiros, dizemos: um tiro, uma vida! Talvez lhe seja difícil compreender isso, mas posso ajudá-lo com outra imagem que expressa a mesma vivência. Nós dizemos que com a extremidade superior do arco o arqueiro trespassa o céu; na inferior está suspensa, por um fio de seda, a terra. Se o tiro for disparado com violência, existe o perigo de que o fio se rompa. Para o voluntarioso e agressivo, a abismo será, então, definitivo, e ele permanecerá no centro fatal, entre o céu e a terra, sem jamais vir a conhecer a salvação.’
‘Então, o que devo fazer?’
‘Tem que aprender a esperar.’
‘Como se aprende a esperar?’
‘Desprendendo-se de si mesmo, deixando para trás tudo o que tem e o que é, de maneira que do senhor nada restará, a não ser a tensão sem nenhuma intenção.’
‘Quer dizer que devo, intencionalmente, perder a intenção?’
‘Confesso-lhe que jamais um aluno me fez tal pergunta, de maneira que não sei respondê-la de imediato.’
‘Quando começaremos com novos exercícios?’
‘Espere até que chegue o momento.”

Retirado de: Eugen Herrigel - A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo. Editora Pensamento-Cultrix.

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