Eugen Herrigel (Lichtenau, Alemanha, 20/03/1885 - 18/04/1955) estudou o tiro com arco japonês com o Mestre Kenzo Awa por volta de 1925 e lançou um livro que hoje é um clássico: a Arte Cavalheirsca do Arqueiro Zen em 1948, quase vinte anos depois de ter voltado do Japão.
"Na hora de manter a tensão, ela deve ser concentrada apenas naquilo que você precisa usar; de resto, economize suas energias, aprenda (com o arco) que para se atingir algo não é necessário fazer um movimento gigantesco, mas focalizar o seu objetivo.
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O meu mestre me deu um arco muito rígido. Perguntei por que estava começando a me ensinar como se eu já fosse um profissional. Ele respondeu: aquele que começa com coisas fáceis, fica despreparado para os grandes desafios. Melhor saber logo que tipo de dificuldade irá encontrar no caminho.
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Durante muito tempo eu atirava sem conseguir abrir direito o arco, até que um dia o mestre me ensinou um exercício de respiração, e tudo ficou fácil.Perguntei porque demorara tanto para me corrigir. Ele respondeu: ' Se desde o início eu tivesse lhe ensinado os exercícios respiratórios, você acharia que eram desnecessários. Agora você irá acreditar naquilo que eu lhe digo, e irá praticar como se fosse realmente importante. Quem sabe educar, age assim'.
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O momento de soltar a flecha acontece de maneira instintiva, mas antes é preciso conhecer bem o arco, a flecha e o alvo. O golpe perfeito nos desafios da vida, também usa a intuição; entretanto, só podemos esquecer a técnica depois que a dominamos completamente.
(...) Depois de quatro anos, quando já era capaz de dominar o arco, o mestre me deu os parabéns. Eu fiquei contente, e disse que já tinha chegado na metade do caminho. 'Não', respondeu o mestre. 'Para não cair em armadilhas traiçoeiras, é melhor considerar como metade do caminho o ponto que você atinge depois de percorrer 90% da estrada.'
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Dia após dia, eu ia penetrando com maior facilidade na interpretação e na prática da Doutrina Magna do tiro com arco e a executava sem esforço, como se o estivesse praticando durante um sonho. Confirmavam-se, assim, as palavras do mestre. Contudo, eu não conseguia me concentrar além do momento do disparo. Manter a atenção num máximo de tensão não só me fatigava, ocasionando um relaxamento da própria tensão, como se desvanecia, perdendo sua energia potencial até tornar-se insuportável e, em muitas ocasiões, obrigando-me a dirigir minha atenção, provocando eu mesmo o disparo.
‘Deixe de pensar no disparo!’, exclamava o mestre. ‘Assim não há como evitar o fracasso!’
‘Eu não consigo evitar’, repliquei. ‘A tensão é insuportavelmente dolorosa.’
‘Isso acontece porque o senhor não está realmente desprendido de si mesmo. Contudo, é tão simples... Uma simples folha de bambu pode ensiná-lo. Com o peso da neve ela vai se inclinando aos poucos, até que de repente a neve escorrega e cai, sem que a folha tenha se movido. Como ela, permaneça na maior tensão até que o disparo caia: quando a tensão está no máximo, o tiro tem que cair, tem que desprender-se do arqueiro como a neve da folha, antes mesmo que ele tenha pensado nisso.’
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‘O senhor sabe o que acontece se somos incapazes de permanecer livres de intenção, no estado de máxima tensão. O senhor não pode continuar o aprendizado se não se perguntar uma ou outra vez: 'Eu o conseguirei? Espere pacientemente o que vier e como vier!’ Lembrei-lhe que estava no curso há quatro anos e que minha estada no Japão não era ilimitada, ao que ele respondeu:
‘O caminho até a meta é incomensurável. Para ele nada significam semanas, meses, anos.’
‘Mas se eu tiver que interromper meu aprendizado na metade do caminho?’
‘Pode fazê-lo a qualquer momento, desde que se tenha desprendido realmente do seu eu. Por isso, continue praticando!’
E assim, voltamos a começar desde o princípio, como se todo o aprendizado tivesse sido inútil. Continuava impossível para mim permanecer sem intenção dentro, como se fosse possível escapar de um caminho por demais viciado, até que um dia perguntei ao mestre:
‘Como o disparo pode ocorrer, se não for eu que o fizer acontecer?’
‘Algo dispara’, respondeu-me.
‘Já ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: como posso esperar pelo disparo, esquecido de mim mesmo, se eu não posso estar presente?
‘Algo permanece na tensão máxima’.
‘E o que é esse algo?’
‘Quando o senhor souber a resposta, não precisará mais de mim. E se eu lhe der alguma pista, poupando-o da experiência pessoal, serei o pior dos mestres, merecendo ser dispensado. Por isso, não falemos mais! Pratiquemos!’
Passaram-se muitas semanas sem que eu tivesse avançado um passo, mas isso em nada me afetava. O longo aprendizado tinha me tomado indiferente. Aprender a arte, descobrir o que o mestre quis dizer com o seu algo, encontrar o acesso ao Zen, tudo isso me pareceu de repente tão longínquo, tão indiferente, que já não me preocupava. Em várias ocasiões, propus-me confessá-lo ao mestre, mas diante dele a coragem desaparecia. Estava convencido de que escutaria outra vez a sua resposta tranquila: ‘Não pergunte, pratique!’ Então, deixei de fazer perguntas e por pouco, também de praticar, se o mestre não me tivesse mantido seguro nas suas mãos. Indiferente, eu deixava os dias passarem, cumprindo da melhor maneira possível minhas obrigações profissionais, já não me afastando a constatação de indiferença que eu tinha diante daquilo a que, durante anos, eu dedicara meus mais persistentes esforços.
Certo dia, depois de um tiro executado por mim, o mestre fez uma profunda reverência e deu a aula por terminada. Diante do meu olhar perplexo, exclamou: ‘Algo acaba de atirar’. E, ao compreender o que ele queria dizer, fui tomado por uma incontida explosão de alegria.
‘Minhas palavras’, advertiu-me o mestre, ‘não são de elogio, mas uma simples constatação que não deve alterá-lo. A minha reverência não foi dirigida ao senhor. O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima: o disparo caiu, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido.’
Retirado de: Eugen Herrigel, - A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. São Paulo. Editora Pensamento-Cultrix
Amigo, obrigado pela postagem. Disse-me coisas que há tempos ansiava por ouvir novamente.
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