Quando eu era mais novo tinha acessos de cólera. Em determinadas ocasiões via tudo vermelho na minha frente e eu agia como se fosse o Incrível Hulk. Como sempre fui magricela e nerd, utilizava na maioria das vezes mais palavras do que atos para manifestar minha “ira santa”, reduzindo minha vítima do momento a extrato de pó de nada (se quebrasse alguma coisa não teria dinheiro para repor – isso é coisa de personagem rico de novela do Manoel Carlos).
Depois de calmo sempre ficava com uma vergonha danada pelo meu descontrole, por que na maioria das vezes o gatilho que detonava o acesso era uma coisa de importância menor, que de longe não merecia uma reação tão alterada.
Lendo e pensando muito nisso (por que pobre não faz análise – analista de pobre é Pai de Santo) descobri que a causa desse meu destempero era uma só: a somatização das minhas pequenas decepções e raivas pessoais. Aprendi desde cedo que não era legal sentir raiva. Que Deus estava olhando e que quando batessem na minha cara eu devia virar o outro lado...
Assim a raiva era jogada para baixo de um “tapete emocional”. Guardava tudo pra mim e aquilo ia acumulando, acumulando, como se fosse uma grande represa de ódio cujas comportas estavam fechadas por um palito de fósforo. Uma última contrariedade, geralmente vinda de quem estava mais perto: namorada, parentes, amigos... e tudo vinha abaixo geralmente diretamente na cabeça do pobre que teve a infelicidade de estar no lugar errado na hora errada.
Mas de onde vinha essa emoção? Por que eu tinha tanto motivo de raiva? Mais leituras e meditações e eu cheguei a Aristóteles. Mas antes do filósofo, veja o que afirma o Rabino Kalman Pakouz em:
“Os Sábios contam no Talmud (Tratado Shabat, pág. 115) que uma pessoa que fica furiosa é considerada como se estivesse praticando idolatria. Mas qual ídolo ela estaria cultuando? A resposta é: a si própria. Ficamos com raiva porque temos a expectativa que tudo precisa correr exatamente como queremos.
Não é de surpreender, então, que o autor do livro Orchot Tsadikim (Os Caminhos dos Justos), escrito no século 14, nos explique que uma pessoa dominada pela raiva priva a si mesma de ter felicidade na vida. Uma pessoa com raiva perde o controle e fica abandonada aos caprichos de forças exteriores à sua pessoa!
A raiva vem por se ter um ego frágil. Acabamos interpretando as coisas que acontecem como um ataque pessoal ao invés de considerá-las como uma casualidade, preguiça, incompetência ou falta de consideração de outrem.
Internamente, dizemos para nós mesmos: “Como isto pode estar acontecendo comigo? Sou muito importante para que algo assim me aconteça!”
Uma pessoa nervosa que é fisicamente atacada, utiliza a raiva para responder, ao invés do intelecto. Alguém com raiva pode até ser ouvido (se tiver poder ou força), mas parecerá um meshugne (louco) gritando. Ela será uma pessoa temida, mas não amada. Coloca a sua vida em perigo (através do aumento de sua pressão sanguínea), não consegue produzir com todo seu potencial e nem desfruta a vida.”
O que o rabino diz no texto acima, Aristóteles já nos dizia em sua obra Arte Retórica, quando falava sobre a Cólera (Capítulo II item I – Da Cólera):
“Admitamos ser a cólera uma tendência acompanhada de pena que nos incita a tomar vingança manifesta por um desdém manifesto, e injustificável, de que tenhamos sido vítimas, nós, ou algum dos nossos. Se a cólera é isto que dizemos, forçosamente uma pessoa encolerizada se irritará sempre contra um indivíduo particular, (...) e não contra o homem em geral. E isto porque fizeram ou premeditaram fazer algum agravo a ela ou a algum dos seus. A cólera é seguida necessariamente de certo prazer, proveniente da esperança que se tem de se vir a vingar. Com efeito, sente-se prazer em pensar que se obterá o que se deseja. Aliás, nenhum ser humano deseja o que se lhe afigura impossível, e o homem encolerizado deseja igualmente o que se lhe afigura possível.”
Assim partindo do que já foi dito, podemos inferir que a raiva, a cólera é parente do orgulho.
Onde Aristóteles diz que a cólera é “uma tendência acompanhada de pena que nos incita a tomar vingança manifesta por um desdém manifesto, e injustificável, de que tenhamos sido vítimas (grifo meu)” ele está dizendo que nos encolerizamos a partir de nos acharmos vítimas com razão ou não, isto é, sempre quando achamos que alguém ou alguma coisa nos tratou menos do que nós achamos que merecemos ser tratados. E é patente que quanto menos orgulhoso é um indivíduo menos raiva ele sente.
Então seria mesmo ruim sentir raiva? Alguns autores acham que reprimir a raiva faz mal a saúde porque se baseiam na crença de que dentro de cada um de nós, mesmo sendo uma pessoa tranquila, esconde-se uma outra entidade furiosa, berrando para explodir (em: http://www.psicologia.org.br/internacional/AP2.htm).
Veja essa outra passagem de Aristóteles que pulula na internet:
"Ficar com raiva é fácil. Mas ficar com raiva com a pessoa certa, no momento certo, pela razão certa, do jeito certo - isso não é nada fácil"
Assim, para Aristóteles seria lícito ficar com raiva apenas e desde que se sigam esses quatro passos:
1 - com a pessoa certa,
2 - no momento certo,
3 - pela razão certa,
4 - do jeito certo
Daí se infere que se você tem um animal dentro de você (e todos nós temos um como a representação dos instintos básicos do macaco pelado que nunca deixamos de ser) não é inteligente deixá-lo preso o tempo todo, por que ele pode se voltar contra a própria personalidade e causar um grande estrago. É saudável deixá-lo sair para passear e morder uns traseiros, por que como diz um velho provérbio árabe:
“Os homens são como tapetes; às vezes precisam ser sacudidos”
Isso era tudo o que eu não fazia, embalado pela minha formação judaico-cristã. Somente depois que minha matriz religiosa mudou foi que eu entendi que existem algumas alternativas para gerenciar a raiva.
A primeira é seguir as dicas do filósofo grego Epicteto, dividindo as coisas da vida naquilo que você pode e que você não pode controlar. Mantendo sua atenção nas primeiras e ligando aquela luzinha vermelha do F****-se nas segundas já que está fora do seu controle mesmo.
A segunda é trabalhar em seu próprio ego e diminuir o alto senso de si mesmo e o sentimento de orgulho (o popular “rei na barriga”); em suma: tentar ser mais simples e humilde. Nunca entrar numa disputa que não pode ganhar ou que saiba não haver benefício nenhum. É só perda de tempo.
A terceira é não somatizar. Nunca “guardar para você” aquela mágoa. Isso vai te envenenando com o tempo. Despeça o “Espírito da Escada” ("L'esprit de l'escalier), o sentimento de arrependimento por não ter pensado numa resposta quando ela mais era necessária ou adequada. Se não disse na hora é por que não era pra dizer. E quando esquecer, esqueça mesmo, do verbo “não sei o que é isso”.
Quarto: Se tiver que se alterar, sempre tente explicar para o alvo de suas imprecações por que você perdeu o controle e está dando aquele “esporro” animalesco. Siga o conselho de outro dito popular:
“o segredo não está no que você diz, mas na maneira como diz. Sempre que precisar disparar a flecha da verdade, não esqueça de antes molhar sua ponta num vaso de mel”.
Quando dizemos por que estamos fazendo algo, damos a entender ao interlocutor que não é má vontade ou o mero desejo de machucar o outro com palavras. Lembre-se de que ninguém pode adivinhar o que você pensa. As pessoas só saberão o que há em sua cabeça quando você disser. Pode parecer óbvio, mas muitos dos problemas do mundo só existem por que as pessoas querem que os demais adivinhem como elas estão se sentindo e o que elas querem.
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