Por Rafael
Arrais
Desde
que a pitonisa do templo de Apolo afirmou que Sócrates era o homem mais sábio
da Grécia, ele se dedicou a procurar saber quem era realmente sábio, e quem se
julgava sábio, mas não era. A suspeita de Sócrates era simples: ele mesmo não
se julgava sábio, portanto se os deuses afirmavam que o era, a única explicação
era a de que a sua parca sabedoria advinha do fato de reconhecer a própria
ignorância. O mundo era muito vasto, e o grande sábio da Grécia era sábio
exatamente por perceber que ainda havia muito por ser descoberto – não era
possível julgar-se coisa alguma no ramo da sabedoria, ou pelo menos não no
sentido de estarmos numa posição superior aos demais.
Era
uma época privilegiada da civilização Grega, por todo o lado surgiam grandes
pensadores e, como não poderia deixar de ser, diversas teorias diferentes que
tentavam explicar o mundo. Talvez o pensamento mais revolucionário da época –
para o bem ou para o mal – tenha sido o sofismo. Até o surgimento dos sofistas,
a educação grega (paideia) não fazia distinções entre religião e cultura –
estava profundamente enraizada na religiosidade. Mas eis que surge o sofismo, e
com ela uma nova forma de se pensar a educação: não mais um conceito de
formação moral, enraizado nos valores absolutos transmitidos pelos deuses, mas
um método de conhecimento do mundo, de organização dos diversos “saberes”,
relativo em seus valores morais, assim como cada grupo de homens e, em última
instância, cada indivíduo, traz consigo a sua própria visão de mundo – sua
própria moral, independente dos deuses.
Sócrates
se dedicou a demolir os argumentos de cada sofista que passou por seu caminho
em Atenas. Perante sua sabedoria enraizada em campos elevados, seus argumentos
eram como bodes mancos incapazes de subir as encostas de uma colina… Ante a
máxima de Protágoras, um dos grandes dentre a escola sofística – o homem é a
medida de todas as coisas –, Sócrates sai-se com uma outra máxima, que segundo
muitos lhe é amplamente superior – a medida de todas as coisas é Deus.
É
muito fácil, hoje em dia, interpretar tais afirmações de forma superficial, e
fora de seu contexto. Pode-se, dessa forma, até mesmo imaginar que Protágoras e
os sofistas eram prepotentes e ateístas, enquanto que Sócrates era o grande
sábio temente a Deus… Porém, ambos, tanto Sócrates quanto Protágoras, foram
acusados de ateísmo. A diferença é que Protágoras fugiu para a Sicília,
impondo-se um auto-exílio, enquanto que Sócrates preferiu aceitar a punição
máxima da morte por ingestão de veneno, embora tenha lhe sido ofertada a opção
do exílio…
Não
se discute que Sócrates foi um homem muito mais sábio, nobre, e relevante para
a história da cultura ocidental, do que Protágoras – ele obviamente o foi.
Porém, não se deve julgar todos os sofistas apenas por aquilo que se mostra
deles nos livros de Platão. Em realidade, aqueles não eram sofistas na real
acepção de seu lema (humanistas em essência), do contrário seriam grandes
amigos de Sócrates, e não aqueles que ele caça em meio às ruas de Atenas,
ansioso por demonstrar-lhes os equívocos de suas “suposições do grande saber”.
Com
o sofismo surgiram os primeiros pedagogos e os primeiros advogados de que se
tem notícia na história. Tratavam-se de homens que dedicavam a vida a estudar o
conjunto dos conhecimentos e saberes, e então vendiam seus ensinamentos aos
homens abastados, particularmente aqueles que se interessavam pela oratória ou
pela política. Ora, Sócrates não cobrava por seus ensinamentos, mais consta que
sobrevivia do auxílio de seus discípulos. Pode-se então imaginar Sócrates como
um “mendigo sábio”, e os sofistas como enganadores e quem sabe até ladrões… Mas
em realidade todos tiveram seu devido papel na história.
É
sabido que Sócrates não confiava muito na “sabedoria escrita”. Acreditava que
os discursos escritos não tinham como defender a si próprios da argumentação
alheia, eram demasiadamente estáticos e, portanto, impróprios para uma reflexão
aprofundada do Cosmos. Ora, é claro que Sócrates tinha razão, mas o problema é
que o mundo vinha já crescendo, e os conhecimentos humanos com ele; Também se
fazia necessária à devida “catalogação” dos saberes, a organização dos
processos de ensino, enfim, o surgimento da pedagogia.
Se
hoje existem mestrados, doutorados e áreas de especialização nas mais diversas
disciplinas, não se enganem: também devemos isso aos sofistas, e bem mais do
que a Sócrates. Entretanto, a questão parece estar em não abandonar a
sabedoria, em não esquecer da espiritualidade, nos afogando em meio à pura
racionalidade dos sistemas de conhecimento humanos. No fundo, Sócrates também
tinha razão numa coisa: existem coisas que os livros jamais poderão nos
ensinar.
Sim,
o homem pode mesmo ser a medida de todas as coisas, mas tão somente no sentido
de que é o homem quem interpreta todas as coisas, e é através dele que elas são
efetivamente medidas. Mas sabemos que no mundo existem muitas e muitas coisas
que estão além da medida, que não se equacionam, e que tampouco puderam nalgum
dia serem medidas. Coisas como o amor, a ética e a poesia parecem pertencer a
um outro reino, muito no alto das montanhas, além de nossa capacidade de
catalogação – eis as coisas que residem no mundo das idéias, na terra da
essência e não da transitoriedade. As coisas medidas por Deus.
O
homem, porém, está no mundo, vive no mundo, lida com o mundo. Se ele consegue
perceber a essência divina das coisas, da mesma forma parece conseguir
organizar o próprio conhecimento dessa percepção, e medir o infinito por sua
própria medida – humana!
Existem,
portanto, essas duas lentes para se enxergar o Cosmos: uma lente que enxerga os
sentidos e essências e outra lente capaz de observar os mecanismos e
conhecimentos. Para muitos seres a vida sem a primeira lente pode ser
insuportável e cinzenta; Mas há ainda outros que parecem ignorar a falta desta
primeira lente por completo, e se dedicar apenas a uma imensa “catalogação” das
cores do Cosmos. Seja como for, embora a segunda lente se faça até mesmo mais
necessária quando consideramos uma vida em sociedades de conhecimento, o ideal
me parece ser podermos contar com ambas. Contar com o humanismo dos sofistas e
a espiritualidade dos sábios – ver tudo o que há para ver na imensidão
infinita. E medir…
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