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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A Medida de Todas as Coisas

Por Rafael Arrais
Desde que a pitonisa do templo de Apolo afirmou que Sócrates era o homem mais sábio da Grécia, ele se dedicou a procurar saber quem era realmente sábio, e quem se julgava sábio, mas não era. A suspeita de Sócrates era simples: ele mesmo não se julgava sábio, portanto se os deuses afirmavam que o era, a única explicação era a de que a sua parca sabedoria advinha do fato de reconhecer a própria ignorância. O mundo era muito vasto, e o grande sábio da Grécia era sábio exatamente por perceber que ainda havia muito por ser descoberto – não era possível julgar-se coisa alguma no ramo da sabedoria, ou pelo menos não no sentido de estarmos numa posição superior aos demais.

Era uma época privilegiada da civilização Grega, por todo o lado surgiam grandes pensadores e, como não poderia deixar de ser, diversas teorias diferentes que tentavam explicar o mundo. Talvez o pensamento mais revolucionário da época – para o bem ou para o mal – tenha sido o sofismo. Até o surgimento dos sofistas, a educação grega (paideia) não fazia distinções entre religião e cultura – estava profundamente enraizada na religiosidade. Mas eis que surge o sofismo, e com ela uma nova forma de se pensar a educação: não mais um conceito de formação moral, enraizado nos valores absolutos transmitidos pelos deuses, mas um método de conhecimento do mundo, de organização dos diversos “saberes”, relativo em seus valores morais, assim como cada grupo de homens e, em última instância, cada indivíduo, traz consigo a sua própria visão de mundo – sua própria moral, independente dos deuses.

Sócrates se dedicou a demolir os argumentos de cada sofista que passou por seu caminho em Atenas. Perante sua sabedoria enraizada em campos elevados, seus argumentos eram como bodes mancos incapazes de subir as encostas de uma colina… Ante a máxima de Protágoras, um dos grandes dentre a escola sofística – o homem é a medida de todas as coisas –, Sócrates sai-se com uma outra máxima, que segundo muitos lhe é amplamente superior – a medida de todas as coisas é Deus.

É muito fácil, hoje em dia, interpretar tais afirmações de forma superficial, e fora de seu contexto. Pode-se, dessa forma, até mesmo imaginar que Protágoras e os sofistas eram prepotentes e ateístas, enquanto que Sócrates era o grande sábio temente a Deus… Porém, ambos, tanto Sócrates quanto Protágoras, foram acusados de ateísmo. A diferença é que Protágoras fugiu para a Sicília, impondo-se um auto-exílio, enquanto que Sócrates preferiu aceitar a punição máxima da morte por ingestão de veneno, embora tenha lhe sido ofertada a opção do exílio…

Não se discute que Sócrates foi um homem muito mais sábio, nobre, e relevante para a história da cultura ocidental, do que Protágoras – ele obviamente o foi. Porém, não se deve julgar todos os sofistas apenas por aquilo que se mostra deles nos livros de Platão. Em realidade, aqueles não eram sofistas na real acepção de seu lema (humanistas em essência), do contrário seriam grandes amigos de Sócrates, e não aqueles que ele caça em meio às ruas de Atenas, ansioso por demonstrar-lhes os equívocos de suas “suposições do grande saber”.

Com o sofismo surgiram os primeiros pedagogos e os primeiros advogados de que se tem notícia na história. Tratavam-se de homens que dedicavam a vida a estudar o conjunto dos conhecimentos e saberes, e então vendiam seus ensinamentos aos homens abastados, particularmente aqueles que se interessavam pela oratória ou pela política. Ora, Sócrates não cobrava por seus ensinamentos, mais consta que sobrevivia do auxílio de seus discípulos. Pode-se então imaginar Sócrates como um “mendigo sábio”, e os sofistas como enganadores e quem sabe até ladrões… Mas em realidade todos tiveram seu devido papel na história.

É sabido que Sócrates não confiava muito na “sabedoria escrita”. Acreditava que os discursos escritos não tinham como defender a si próprios da argumentação alheia, eram demasiadamente estáticos e, portanto, impróprios para uma reflexão aprofundada do Cosmos. Ora, é claro que Sócrates tinha razão, mas o problema é que o mundo vinha já crescendo, e os conhecimentos humanos com ele; Também se fazia necessária à devida “catalogação” dos saberes, a organização dos processos de ensino, enfim, o surgimento da pedagogia.

Se hoje existem mestrados, doutorados e áreas de especialização nas mais diversas disciplinas, não se enganem: também devemos isso aos sofistas, e bem mais do que a Sócrates. Entretanto, a questão parece estar em não abandonar a sabedoria, em não esquecer da espiritualidade, nos afogando em meio à pura racionalidade dos sistemas de conhecimento humanos. No fundo, Sócrates também tinha razão numa coisa: existem coisas que os livros jamais poderão nos ensinar.

Sim, o homem pode mesmo ser a medida de todas as coisas, mas tão somente no sentido de que é o homem quem interpreta todas as coisas, e é através dele que elas são efetivamente medidas. Mas sabemos que no mundo existem muitas e muitas coisas que estão além da medida, que não se equacionam, e que tampouco puderam nalgum dia serem medidas. Coisas como o amor, a ética e a poesia parecem pertencer a um outro reino, muito no alto das montanhas, além de nossa capacidade de catalogação – eis as coisas que residem no mundo das idéias, na terra da essência e não da transitoriedade. As coisas medidas por Deus.

O homem, porém, está no mundo, vive no mundo, lida com o mundo. Se ele consegue perceber a essência divina das coisas, da mesma forma parece conseguir organizar o próprio conhecimento dessa percepção, e medir o infinito por sua própria medida – humana!

Existem, portanto, essas duas lentes para se enxergar o Cosmos: uma lente que enxerga os sentidos e essências e outra lente capaz de observar os mecanismos e conhecimentos. Para muitos seres a vida sem a primeira lente pode ser insuportável e cinzenta; Mas há ainda outros que parecem ignorar a falta desta primeira lente por completo, e se dedicar apenas a uma imensa “catalogação” das cores do Cosmos. Seja como for, embora a segunda lente se faça até mesmo mais necessária quando consideramos uma vida em sociedades de conhecimento, o ideal me parece ser podermos contar com ambas. Contar com o humanismo dos sofistas e a espiritualidade dos sábios – ver tudo o que há para ver na imensidão infinita. E medir…

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