Jean-Claude Bernadet ao escrever sobre o cinema, oferece uma instrutiva visão (que alguns diriam datada ou obsoleta por que imersa num marxismo hoje fora de moda) de como essa indústria pode se constituir num mecanismo de reprodução do ideal capitalista. Sua reflexão, entretanto, não restringe ao cinema; ela pode ser aplicada, guardadas as devidas proporções, à televisão, ao teatro e a imprensa mainstream, oferecendo uma explicação que revelaria a forma como eles normatizam nossas vidas o tempo todo. Cabe a cada um refletir sobre isso e tirar suas próprias conclusões.
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A máquina cinematográfica não caiu do céu. Em quase todos os países europeus e nos Estados Unidos no fim do século XIX foram-se acentuando as pesquisas para a produção de imagens em movimento. É a grande época da burguesia triunfante; ela está transformando a produção, as relações de trabalho, a sociedade, com a Revolução Industrial; ela está impondo seu domínio sobre o mundo ocidental, colonizando uma imensa parte do mundo que posteriormente viria a se chamar de Terceiro Mundo. (...)
No bojo de sua euforia dominadora, a burguesia desenvolve mil e uma máquinas e técnicas que não só facilitarão seu processo de dominação, a acumulação de capital, como criarão um universo cultural à sua imagem. Um universo cultural que expressará o seu triunfo e que ela imporá às sociedades, num processo de dominação cultural, ideológico, estético. Dessa época, fim do século XIX, início deste, datam a implantação da luz elétrica, a do telefone, do avião, etc, etc, e, no meio dessas máquinas todas, o cinema será um dos trunfos maiores do universo cultural. A burguesia pratica a literatura, o teatro, a música etc, evidentemente, mas essas artes já existiam antes dela. A arte que ela cria é o cinema.
Não era uma arte qualquer. Reproduzia a vida tal como é — pelo menos essa era a ilusão. Não deixava por menos. Uma arte que se apoiava na máquina, uma das musas da burguesia. Juntava-se a técnica e a arte para realizar o sonho de reproduzir a realidade.
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Vai-se até mais longe. Não só o cinema seria a reprodução da realidade, seria também a reprodução da própria visão do homem. Os nossos dois olhos nos permitem ver em perspectiva: não vemos as coisas chapadas, mas as percebemos em profundidade. Ora, a imagem cinematográfica também nos mostra as coisas em perspectiva e por isso ela corresponderia à percepção natural do homem. A reprodução da percepção natural apresentar-nos-ia a reprodução da realidade, tudo isso graças à máquina que dispensaria maior intervenção humana.
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É verdade que é necessário forçar um pouco a barra para chegar a essa compreensão do cinema. Por exemplo, a imagem cinematográfica não reproduz realmente a visão humana. Nosso campo de visão é maior que o espaço da tela. Sentando-se no meio de um cinema, além da tela, o nosso olhar abrange também as partes laterais, superior e inferior. (...) Vemos em cor: quando o cinema surgiu, a imagem era em preto e branco, portanto não natural, mas artificial. E mesmo com o cinema em cor que se implantou nos anos 50, as cores não são naturais. Percebe-se que foi necessário deixar muita coisa de lado para identificar a imagem cinematográfica à percepção natural.
Até a perspectiva: muito mais do que a visão natural, a imagem cinematográfica reproduz uma forma de representação que se implantou na pintura com o Renascimento, no fim da Idade Média. Nem sempre a pintura obedeceu à perspectiva: os egípcios não desenharam em perspectiva, nem a pintura medieval segue a perspectiva tal como a conhecemos hoje.
Nas artes plásticas, a perspectiva é um fenômeno ocidental, não universal. A partir do Renascimento, os ocidentais começam a familiarizar-se com a pintura em perspectiva e a nossa cultura acostumou-nos a considerá-la como a visão natural na pintura, mas é uma convenção.
E também nos dizem que o cinema reproduz o movimento da vida. Mas sabemos que não há movimento na imagem cinematográfica. O movimento cinematográfico é uma ilusão, é um brinquedo ético. A imagem que vemos na tela é sempre imóvel. A impressão de movimento nasce do seguinte: "fotografa-se" uma figura em movimento com intervalos de tempo muito curtos entre cada "fotografia" (= fotogramas).
São vinte e quatro fotogramas por segundo que, depois, são projetados neste mesmo ritmo. Ocorre que o nosso olho não é muito rápido e a retina guarda a imagem por um tempo maior que 1/24 de segundo. De forma que, quando captamos uma imagem, a imagem anterior ainda está no nosso olho, motivo pelo qual não percebemos a interrupção entre cada imagem, o que nos dá a impressão de movimento contínuo, parecido com o da realidade. É só aumentar ou diminuir a velocidade da filmagem ou da projeção para que essa impressão se desmanche.
Mas por que ter passado por cima de tanta coisa para fazer desaparecer os aspectos artificiais e ter apresentado o cinema como reprodução do olhar natural e da realidade? Quando obviamente o cinema é um artifício, quando obviamente os filmes são feitos por pessoas. Por que ter mascarado tudo o que pudesse desmentir essa pretensa naturalidade? Por que ter feito de conta que a realidade expressava-se diretamente no cinema?
Se alguém fizer uma determinada afirmação — o regime brasileiro é ditatorial, por exemplo —, posso responder que não é, que não penso assim, que esse é o pensamento da pessoa que falou, mas pensamento sujeito a controvérsias. Este é o ponto de vista de quem falou. Mas suponhamos que, graças a alguma mágica, a pessoa que fala sumisse e que essa frase ficasse solta, como uma afirmação não de alguém em particular, mas como uma frase que existe em si, independentemente de qualquer pessoa que a proferisse.
Eu não poderia mais dizer que é um ponto de vista, que é a fala de alguém. Seria uma frase sem autor, sem intervenção humana. Não sei se por este exemplo deu para entender aonde quero chegar, mas é um pouco o que acontece com o cinema. Dizer que o cinema é natural, que ele reproduz a visão natural, que coloca a própria realidade na tela, é quase como dizer que a realidade se expressa sozinha na tela.
Eliminando a pessoa que fala, ou faz cinema, ou melhor, eliminando a classe social ou a parte dessa classe social que produz essa fala ou esse cinema, elimina-se também a possibilidade de dizer que essa fala ou esse cinema representa um ponto de vista.
Ao dizer que o cinema expressa a realidade, o grupo social que encampou o cinema coloca-se como que entre parênteses, e não pode ser questionado. Esse problema é talvez um tanto complicado, mas é fundamental tentar equacioná-lo para que se tenha ideia de como se processa, no campo da estética, um dos aspectos da dominação ideológica. A classe dominante, para dominar, não pode nunca apresentar a sua ideologia como sendo a sua ideologia, mas ela deve lutar para que esta ideologia seja sempre entendida como a verdade. Donde a necessidade de apresentar o cinema como sendo expressão do real e disfarçar constantemente que ele é artifício, manipulação, interpretação.
A história do cinema é em grande parte a luta constante para manter ocultos os aspectos artificiais do cinema e para sustentar a impressão de realidade. O cinema, como toda área cultural, é um campo de luta, e a história do cinema é também o esforço constante para denunciar este ocultamento e fazer aparecer quem fala.
Um argumento que aparece frequentemente contra o que estou dizendo é que foi o próprio cinema que se impôs como reprodução do real, não seria uma imposição da burguesia. Isto é supor que a máquina e todo o processo de realização do cinema teriam características e significações independentes de quem os usa.
Ao que se pode responder que nunca uma máquina tem uma significação em si, ela sempre significa o que a fazem significar (embora seja um pouco mais complicado do que isso). Em outras palavras, podemos dizer que uma técnica não se impõe em si. Dela se apropria um segmento da sociedade e é essa apropriação que lhe dá significação, é bastante simples provar que a burguesia sempre procurou elaborar uma estética que apresentasse as obras como expressão do real.
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Outros afirmam que pouco importa que se diga que o cinema reproduz ou não o real, é natural ou artificial, não importa o cinema em si, importa o que dizem os filmes, o seu conteúdo. É pouco relevante que dois filmes sejam sustentados pela impressão de realidade, mas é relevante que um seja contra determinado movimento operário, e outro a favor. Um fuzil é sempre um fuzil, o que é significativo não é o fuzil, mas sim quem o maneja e contra quem é manejado.
Nada do que foi dito até agora revela um complô: um burguês vilão que teria resolvido apoderar--se do cinema para dominar os pobres espectadores desprevenidos. Trata-se de processos históricos, difíceis de perceber enquanto estão-se desenvolvendo, sempre sujeitos a interpretações ambíguas. (...) Tudo isso foi sendo percebido lentamente e essa crítica à impressão de realidade e ao cinema como expressão do real só se desenvolveu a partir dos anos 60; é sintoma de uma crise que existe no cinema-e, de modo geral, na estética e nas linguagens artísticas dominadas pela burguesia. E também o cinema não nasceu assim pronto, "reproduzindo o real". É algo que se foi construindo aos poucos, o cinema levou tempo para encontrar a sua localização na sociedade, suas formas de produção, sua ou suas linguagens.
Retirado de: O que é cinema de Jean-Claude Bernardet, Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense. 1980.
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Jean-Claude Bernadet, nasceu na Bélgica, de família francesa, passou a infância em Paris, e veio para o Brasil com sua família aos 13 anos, naturalizando-se brasileiro em 1964. É diplomado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e doutor em Artes pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP.
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