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domingo, 3 de julho de 2011

Como a TV Te Vê

Homero Icaza Sanchez foi o primeiro analista de pesquisa da TV Globo, contratado por José Bonifácio Oliveira Sobrinho, o Boni, então Superintendente de Produção e Programação. Panamenho da Cidade do Panamá, naturalizado brasileiro, nascido em 1925, formou-se em Direito e Sociologia. Foi cônsul geral do Panamá no Rio, de 1950 a 1968, fundou o Itape — Instituto Técnico de Análises, Pesquisas e Estudos — em 1968 e foi diretor nacional de Análise e Pesquisas da Rede Globo de 1972 a 1983. É membro vitalício da International Communications Association. Nesse texto ele explica como começaram as pesquisas de intenção que hoje norteiam as produções da televisão aberta. É um texto antigo, com alguns pontos de vista desatualizados, mas indispensável para entendermos um pouco como funcionam as mentes por trás da TV que invade nossas casas todos os dias. Os grifos em itálico no texto são meus.  

 ***

“Em 71, comecei a fazer alguns estudos sobre televisão. Um dia, numa conversa com o [José] Perigault [um dos diretores do IBOPE], o Boni [José Bonifácio Oliveira Sobrinho – Superintendente de Produção e Programação da Rede Globo] disse que precisava de alguém para interpretar o grande volume de dados que recebia.

Imediatamente, o Perigault lembrou-se de mim. Fomos jantar e depois de cinco horas de conversa, acabei sendo nomeado diretor de Análise e Pesquisas da Rede 'Globo — sem que o Boni falasse, realmente, sobre o que seria a Divisão de Análise e Pesquisas.
Para quem estava saindo do corpo diplomático, a Globo era um mundo completamente novo, uma loucura.
No início, tive de lutar contra um certo tipo de reação que considero natural: os palpites aleatórios. Se numa reunião era colocada a questão da falta de penetração de um determinado programa nas classes ‘C’ e ‘D’, havia sempre alguém que argumentava que a sua empregada, que pertencia à classe ‘C’, adorava o tal programa.
Começamos fazendo, na Divisão de Análise e Pesquisas, o que chamo de trabalho natural, estatístico e a posteriori, ou seja, a constatação do índice de audiência dos programas — o que era insuficiente, porque, antigamente, na televisão brasileira, se um programa atingia um determinado índice de audiência, qualquer outro parecido também ia ao ar.
Assim, não havia variedade. Dessa forma, percebi que estávamos apenas ‘contando narizes’, como dizem os americanos. Constatávamos o óbvio, quando o importante não era trabalhar depois do fato, mas descobrir como prever o fato. Ou melhor, em lugar de examinar a audiência de um programa, procuraríamos prever esta audiência.
Decidimos montar uma estrutura de informação que permitisse um melhor conhecimento do telespectador. Fizemos então um grande levantamento nas cidades onde a Globo tinha estação de televisão, o que nos possibilitou entender profundamente as classes sócio-econômicas.
Partimos de um critério, utilizado em vários lugares do mundo, que leva em consideração a renda e a despesa familiar, o saldo e a aplicação do saldo. Faz-se uma operação muito simples: a diferença entre a renda e a despesa define o saldo que, por sua vez, determina as classes sócio-econômicas. Se o saldo é de 0 a 10%, a pessoa pertence à classe ‘D’; se é de 10 a 20%, à classe ‘C’; de 20 a 30%, à ‘B3’; de 30 a 40%, à ‘B2’; de 40 a 50%, à ‘BI’; e, se é superior a 50%, pertence à classe ‘A’. Nos Estados Unidos, por exemplo, essas classes são nove e a tabela chega a 80%.
A adoção desse critério, por si só, deixava de lado o elemento cultural. Muitas vezes há uma grande defasagem entre o nível sócio-econômico e cultural e, por isso, inventamos uma segunda pesquisa.
A combinação dos resultados das duas pesquisas definiu o perfil do telespectador. Esse estudo sócio-econômico, feito em 72, nos ensinou muito, como por exemplo o fato de as classes ‘A’ e ‘D’ serem as mais parecidas em comportamento.
Como o sujeito da classe ‘A’ tem dinheiro, status e poder, para ele a lei não existe: o sinal de trânsito, o regulamento do prédio, a obediência cívica, nada disso importa. E o sujeito da classe ‘D’, por razões opostas, também se sente isento do dever de obedecer a normas.
Socialmente, o comportamento dos dois é muito parecido e, perante a televisão, é idêntico. Isto é, o sujeito da classe ‘A’ larga uma novela por um joguinho de pôquer ou uma taça de champanhe, enquanto o da classe ‘D’ troca-a por uma roda de samba ou uma cachacinha.
Eles não são o ‘telespectador cativo’ que se encontra entre as classes ‘B’ e ‘C’, que são as mais antagônicas. Isso acontece não porque a ‘C’ seja antagônica à ‘B’, mas porque a ‘B’ tem ódio da ‘C’ e aspira a ser ‘A’.
Para identificar as classes, inventamos na DAP — Divisão de Análise e Pesquisas — uma teoria engraçada. Costumamos reconhecer as várias classes ‘B’, sem nenhuma espécie de juízo de valor, como as classes frustradas pela mulher ou marido (‘BI’), pelo pai (‘B2’) e pelo avô (‘B3’).
O ‘B1’ é aquele senhor que começou como contador, há trinta anos, numa pequena funilaria em São Cristóvão, hoje uma imensa fábrica de tambores de gasolina, da qual ele é o diretor financeiro. Agora ele tem de usar gravata, fazer com que seus filhos estudem em escola particular, e esforçar-se para dar um fusca à filha que passe no vestibular. No dia 23 de dezembro, há sempre aquele almoço comemorativo numa churrascaria com o pessoal da empresa O dono da empresa faz com que ele fique ao seu lado e afetuosamente diz: ‘Seu Nogueira, o que seria da empresa sem o senhor?’ Quando ele chega em casa, um pouquinho ‘alto’, gravata aberta, paletó no dedo, conta para a mulher o que o chefe disse. Ela responde: ‘Muito bonito, mas dinheiro que é bom, nada! Todas as minhas amigas têm colar de pérolas de duas voltas e eu só tenho de uma; todas já foram a Buenos Aires e eu só vou a São Lourenço.’
O representante da ‘B2’ tem um pai que foi dono da Rua Senador Vergueiro ou da Marquês de Abrantes, no tempo em que eram enormes chácaras. Esse pai vendeu tudo e comprou umas apólices do cais do porto avalizadas pelo Lloyd's de Londres, que davam 3.5% ao ano. O filho — típico representante da classe ‘B2’ — cada vez que passa pela Rua Senador Vergueiro (ou Marquês de Abrantes) pensa: ‘Desgraçado, não guardou um quarteirão para mim!’ Esse rapaz é casado, a mulher trabalha, os dois são muito esforçados. Ele é ‘quadradão’ e só começou a se modificar recentemente, com o videocassete , pois leva uma fita quase pomo para casa e diz para a mulher: ‘Hoje tem!’
O mais perigoso dos três está na classe ‘B3’. Trata-se do sujeito que, quando alguém diz que encontrou um dos Matarazzo na piscina do Copa, comenta: ‘O avô era mascate. Vendia renda, botão e alfinete na fazenda do meu avô em Campos’. E se lhe perguntam se o avô tinha mesmo uma fazenda, ele responde: ‘Pois se havia uma estrada de ferro que saía da fazenda do vovô e ia até o cais do porto... O imperador costumava pernoitar na fazenda quando viajava pelo Estado do Rio''. Quando se penetra na intimidade desse representante da ‘B3’, descobre-se que ele tem, cuidadosamente guardadas num armário, meia dúzia de taças de cristal e algumas xícaras de café, que afirma ser parte da louça dos escravos da fazenda, e que só não foram divididas até agora porque ‘as meninas’ ainda estão vivas. ‘As meninas' são duas tias solteironas que não permitem que nada seja dividido enquanto estiverem vivas. Esse sujeito mora na Tijuca u no Grajaú. Até 1960, sua família considerava uma honra o casamento de uma filha com um oficial da Marinha. Mulher desquitada não era recebida em casa, mas os desquites começaram acontecer na própria família. Esta é a tradicional família brasileira que acha um atentado à moral anúncios que falam em ‘bunda pra cima, barriguinha pra dentro’.
Os representantes da ‘BI’, ‘B2’ e ‘B3’ têm ódio da ‘C’.
Primeiro, porque o sujeito da classe ‘C’ é otimista; segundo, porque vive o presente e, terceiro, porque teve dois grandes pais — um foi o Getúlio [Vargas] e o outro foi o nosso querido presidente Juscelino Kubitschek, que inventou a compra de objetos em 12, 24 e 36 prestações. A partir desse momento, a classe ‘C’ entrou no mercado de consumo e passou a comprar mais do que a classe ‘B’ e a classe ‘A’.
Tive um chofer que a cada dois ou três anos me pedia dinheiro para comprar uma geladeira. Na terceira geladeira, eu disse: ‘O que aconteceu com as outras?’ Ele respondeu: ‘O senhor não conhece a vida do pobre? Eu compro uma, deixo de pagar, a loja me tira. Aí vou numa outra loja e compro outra’. Ele já tinha comprado três...
Esse sujeito da classe ‘C’ é consumidor por excelência. Ele acha que deve viver o momento de hoje, já que a vida é muito difícil. Ele brinca e se esbalda no Carnaval, faz o possível para tirar férias fora e gasta de qualquer jeito, pois se ele mesmo não prosperar o dinheiro vai passar a valer menos.
Agora entra a pesquisa, pois tudo isso é básico para se entender como a televisão aproveitou esse levantamento. Num sábado, fizemos duas pesquisas: uma com um representante da classe ‘C’ e outra com um da classe ‘B3’.
Nós os acompanhamos desde o final da tarde de sexta-feira. Descobrimos que o da ‘B3’ deixa o escritório na Candelária, pega o carro e paga o estacionamento semanal. Quando chega em casa, com uma pasta de documentos da firma, joga o sapato para o alto e pergunta se colocaram a cerveja no congelador, ‘para que fique estupidamente gelada’. Depois, assiste a um filme da TV Globo até tarde. Na manhã de sábado, apanha uma sacola listrada verde e branca, horrorosa, suja, e desce para comprar mais cerveja no botequim. Na volta, compra Time, ou Newsweek ou Le Point, dependendo da língua estrangeira que ele conhece, para exibir na praia. Almoça, sem comer nada de especial, tira uma soneca, vai ao Maracanã, ou a um cinema com a mulher e, mais tarde, vai a uma churrascaria comer pizza com sangria. À noite, cumpre seu dever conjugal, ‘porque hoje é sábado’, como disse Vinícius. No domingo, se a sogra vai almoçar, a comida é incrementada para que ela não pense que eles estão na miséria. A tarde, ele dorme ou vai ao Maracanã e, mais tarde, assiste aos Gols do Fantástico. Na verdade, esse sujeito gasta muito pouco com o seu lazer de fim de semana e, logicamente, a sua pasta volta intacta para o escritório.
Já o sujeito da classe ‘C’, quando sai do trabalho, para num boteco, bebe umas e outras, come um bolinho de bacalhau ou um ovo vermelho horroroso e antes de ir para casa, pede que embrulhem rodelinhas de presunto e aquele queijinho maravilhoso para levar para a patroa. Durante todo o tempo em que ficou no botequim, ele gastou dinheiro. No dia seguinte, esse senhor acorda às 10 da manhã, calça um chinelo velho — um sapato que ele mesmo cortou no calcanhar —, veste um short e vai para o bar do quarteirão. Joga ‘purrinha’ ou sinuca, toma uma ‘birita’ com uma linguicinha ou com sardinha portuguesa — continua gastando. Mais tarde, o filho chama para o almoço, que todas as semanas é diferente: cozido, ou feijoada, ou tripa acompanhado sobretudo de uma lata, ainda que de meio litro, de azeite português. Ele faz questão de comer bem. Depois, vai ao futebol, onde gasta mais um pouco e, à noite, cumpre o dever conjugal — o que faz com mais frequência do que o representante da outra classe — e, às vezes, vai a um baile. No domingo, joga uma pelada, almoça muito bem, à tarde leva a família ao cinema e, à noite, também assiste à televisão. Este é o grande consumidor. A classe ‘C’ consome mais do que a ‘B’ porque é mais larga na pirâmide.
Uma vez que constatamos, através desses estudos, o comportamento de um indivíduo em função da classe sócio-económica, fizemos uma pesquisa sobre hábitos e tendências para saber a que horas ele liga e desliga a televisão e a que programas assiste. Queríamos descobrir exatamente o que deveríamos levar ao ar. Nossa preocupação não era tanto de pesquisa, mas sim de análise de conteúdo — uma ciência que começou como análise de conteúdo da imprensa —, que verifica quantas vezes determinadas ideias ou palavras são repetidas. Com base nisso, consegue-se identificar a autoria de um texto pelo estilo de um autor. Resolvi, então, que era preciso fazer análise de conteúdo. Antes de aprovar qualquer sinopse de novela, por exemplo, o Boni nos enviava uma cópia para analisarmos, uma vez que tínhamos conhecimento do que pensava o telespectador.” 

Retirado do livro: Tv ao Vivo, Depoimentos. Cláudia Macedo, Angela Falcão, Cândido José Mendes de Almeida (Orgs.). Editora Brasiliense, 1988.

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