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segunda-feira, 4 de julho de 2011

Herman Hesse e o Verdadeiro Suicida

"Cada espécie de homens tem suas características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus pecados mortais. Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser um noctívago. A manhã era para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas ideias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava a se animar e, ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo e, às vezes, até brilhante e alegre.

Disso decorria sua necessidade de isolamento e de independência. Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele. Em sua juventude, quando ainda era pobre e tinha dificuldades em ganhar a vida, preferia passar fome e andar mal vestido a sacrificar uma parcela de sua independência. Nunca se vendera por dinheiro ou vida fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que aos olhos do mundo representa vantagens e regalias, a fim de salvaguardar a sua liberdade.

Nenhuma ideia lhe era mais odiosa e terrível do que a de exercer um cargo, submeter-se a horários, obedecer a ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de audiência eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel. Sabia subtrair-se a todas essas coisas, a custo de grandes sacrifícios e nisso residia sua força e virtude, nisso era inflexível e incorruptível, nisso seu caráter era firme e retilíneo. Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino.

Ocorria a ele o que se dá com todos: o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxurioso pela luxúria.

O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e de isolamento.

Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença. O maravilhoso desejo fora realizado e já não era possível voltar atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e nostalgia, disposto à fraternidade e à vida social. Tinham-no agora deixado só. Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. Pelo contrário, tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o apreciava. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não podia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais significativas de sua vida.

Outra era a de que pertencia ao grupo dos suicidas. E aqui é necessário esclarecer que não se devem considerar suicidas somente aqueles que se matam. Entre estes há suicidas que só o chegaram a ser por mero acaso, e de cuja essência do suicídio não fazem realmente parte. Entre os homens sem personalidade, sem características definidas, sem destino traçado, entre os homens incapazes e amorfos, há muitos que perecem pelo suicídio, sem por isso pertencerem ao tipo dos suicidas, ao passo que há muitos que devem ser considerados suicidas pela própria natureza de seu ser, os quais, talvez a maioria, nunca atentaram efetivamente contra a própria vida.

O 'suicida' — e Harry era um deles — não precisa necessariamente viver em relações particularmente intensas com a morte; isto se pode fazer sem que se seja um suicida. É próprio do suicida sentir seu eu, certo ou errado, como um germe da Natureza, particularmente perigoso, problemático e daninho, que se encontrava sempre extraordinariamente exposto ao perigo, como se estivesse sobre o pico agudíssimo de um penedo onde um pequeno toque exterior ou a mais leve vacilação interna seriam suficientes para arrojá-lo no abismo.

Esta classe de homens se caracteriza na trajetória de seu destino porque para eles o suicídio é a forma de morte mais verossímil, pelo menos segundo sua própria opinião. A existência dessa opinião, que quase sempre é perceptível já na primeira mocidade e acompanha esses homens durante toda sua vida, não representa, talvez, uma particular e débil força vital, mas, ao contrário, encontram-se entre os suicidas naturezas extraordinariamente tenazes, ambiciosas e até ousadas. Mas assim como há naturezas que caem em febre diante da mais ligeira indisposição, assim propendem essas naturezas a que chamamos "suicidas" e que sempre são muito delicadas e sensíveis à menor comoção, a entregar-se intensamente à ideia do suicídio. Se tivéssemos uma ciência que possuísse coragem e autoridade suficientes para ocupar-se do homem, em vez de fazê-lo simplesmente no mecanismo dos fenômenos vitais, se tivéssemos uma verdadeira Antropologia, uma verdadeira Psicologia, tais fatos seriam conhecidos de todos".

Retirado do livro de Herman Hesse: O Lobo da Estepe, Editora Record.

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O Lobo da Estepe (no original, Der Steppenwolf) é um livro do alemão naturalizado suiço e Prêmio Nobel de literatura em 1946, Hermann Hesse (02/07/1877, Stuttgart, Alemanha - † 9/08/1962, em Montagnola, Suíça), publicado em 1927. É considerado o melhor dos livros de Hesse, e um dos romances mais representativos do século XX. No Brasil foi traduzido por Ivo Barroso e publicado pela Editora Record em 1993.
O livro conta a história de Harry Haller, um outsider, um misantropo de cinqüenta anos, alcoólatra e intelectualizado, angustiado e que não vê saída para sua tormentosa condição, autodenominando-se “lobo da estepe”. Mas alguns incidentes inesperados e fantásticos o conduzem lenta porém decisivamente ao despertar de seu longo sono: conhece Hermínia, Maria e o músico Pablo. E então a história se desenvolve de forma surpreendente.
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