Uma Leitura do livro "Teatro do Oprimido" de Augusto Boal
por TammirisDesde sempre, a discussão sobre a relação arte e política gira em torno das afirmações: "arte é pura contemplação" e "arte é política". Para Aristóteles, arte e política são independentes. Entretanto, o filósofo apresenta, na Poética, um raciocínio segundo o qual todas as atividades do homem, todas as artes, especialmente o teatro, podem ser consideradas políticas. E estabelece um sistema POÉTICO-POLÍTICO de intimidação e coerção do espectador, sendo o teatro a forma mais artística e perfeita de coerção..
O Conceito de Arte
Para Aristóteles, "A Arte é uma imitação da Natureza".
IMITAR = mímesis = recriar
NATUREZA = princípio criador de todas as coisas criadas
Assim, para o filósofo, Arte seria uma recriação do princípio criador das coisas criadas. Tal princípio criador foi definido anteriormente por diversos filósofos que buscavam uma explicação para a existência do mundo à sua volta e para a sua própria existência, como sendo uma matéria ou substância única, cujas transformações originaram todas as coisas conhecidas e associaram cada substância a uma força transformadora.
Utilizando Platão e seu princípio segundo o qual o conhecimento consistia na passagem do mundo sensível da realidade (coisas imperfeitas) para o mundo das idéias perfeitas, Aristóteles introduz os conceitos de substância, matéria e forma, afirmando que a realidade tende à perfeição expressa pelas idéias.
Assim, IMITAR significaria recriar o movimento interno das coisas que se dirigem à perfeição (o movimento que desenvolve a matéria em direção à sua forma final). Tal movimento era a NATUREZA.
A Arte, a partir da recriação desse movimento, tem como função corrigir as falhas que a Natureza apresenta na sua busca pela perfeição.
A Tragédia para Aristóteles
A Tragédia deve imitar as ações determinadas pela alma racional, paixões transformadas em hábitos, do homem que busca a felicidade, através do comportamento virtuoso (caracterizado por voluntariedade, liberdade, conhecimento e constância), cujo fim supremo é a Justiça, cuja expressão máxima é a Constituição.
Com isso, conclui-se que a Aristóteles afirma que a felicidade do homem está condicionada à obediência às leis. Como nem todos aceitam os critérios de desigualdade nos quais se baseiam as leis para a obtenção da justiça, faz-se necessária a presença de certas formas de repressão (política, polícia, costumes, tragédia grega), para fazer com que todos fiquem contentes ou passivos diante da situação estabelecida.
O sistema aristotélico de funcionamento da tragédia pode ser considerado um forte sistema de repressão, uma vez que tem por finalidade provocar a "catarse" no público espectador. Assim como a Arte corrige as falhas da Natureza na busca pela perfeição, a Tragédia corrige as falhas humanas na busca da felicidade pelo comportamento virtuoso, através da catarse, da eliminação (purgação) do elemento estranho e indesejável (impureza) que impede o homem de atingir seus objetivos. Tal elemento estranho é algo que ameaça o indivíduo e a sociedade, algo contrário às leis.
Como Funciona o Sistema Trágico Coercitivo de Aristóteles
Estabelecimento de empatia entre personagem e espectador.
O herói trágico revela sua harmatia (única falha) através da qual atinge a felicidade ostentada.
Empaticamente, a harmatia do espectador é estimulada.
Surge um ponto de reversão (PERIPÉCIA): mudança radical no destino da personagem, que, juntamente com o espectador, inicia seu caminho para a desgraça (terror no espectador).
A personagem reconhece seu erro (ANAGNORISIS) e, empaticamente, o espectador também reconhece como má sua harmatia.
A personagem sofre violentamente as conseqüências do seu erro (CATÁSTROFE), provocando a CATARSE no espectador que, aterrorizado, se purifica de sua harmatia.
O sistema trágico coercitivo de Aristóteles é um sistema de repressão na medida em que tem por finalidade, através da eliminação de algum elemento prejudicial ao equilíbrio interno da sociedade (catarse), frear o indivíduo, conter rebeliões contra o sistema político estabelecido, eliminar tudo aquilo que não é legalmente aceito, purgar as tendências agressivas do espectador, uma vez que revela o destino trágico de uma personagem que agiu contra os valores éticos da sociedade em que se encontra.
Ao apresentar variações do sistema de Aristóteles, o autor sugere que ele continua sendo seguido, ao menos na sua essência, nos dias atuais, purgando os indivíduos de características contrárias ao sistema político, social e econômico estabelecido. O que não deixa de ser verdade, levando-se em consideração as telenovelas e produções cinematográficas atuais, em que o herói apresenta uma infinidade de virtudes (características boas aos olhos da sociedade) e o vilão, uma série de vícios (características más aos olhos da sociedade). Na maioria dos casos, estabelece-se o happy end, em que o herói goza de plena felicidade e o vilão sofre as consequências de seus atos.
Entretanto, o destino das personagens, principalmente no que se refere às telenovelas, é determinado pela reação do público espectador, que reflete a opinião da sociedade. Assim, ao mesmo tempo em que as telenovelas reforçam a visão da sociedade e das camadas de poder, podendo ser vistas como elemento coercitivo e intimidatório das classes mais baixas, é também controlada e repreendida pela mesma sociedade que pretende repreender.
O poder de repressão encontra-se, sim, presente, mas parece que sofreu uma inversão: ao invés de partir do produto veiculado e se instaurar sobre a população, parte agora da população, que impõe seus valores nas produções artísticas de sua época. Tal poder é exercido de tal maneira que o sucesso das produções está plenamente vinculado à aceitação do público, que passa a escolher e decidir por conta própria o que é bom e mau para si próprio.
Trata-se, pois, não mais de artes que, ao refletirem os valores da sociedade, acabam por os impor na população, mas de populações que, ao adquirirem consciência e liberdade de expressão, acabam por impor seus valores sociais nas produções artísticas.
*Leitura de Augusto Boal, "O Teatro do Oprimido" e outras poéticas políticas. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1988.
Retirado de: http://geminidiz.blogspot.com/2007/09/o-sistema-trgico-e-coercitivo-de.html
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O texto de Augusto Boal apresenta uma proposta que, enquanto ligada a um dos muitos marxismos que existiram e existem ainda por aí, parece estar um tanto datada... Entretanto as reflexões que são propostas, entre elas a que está exposta no trecho acima, nos permitem colocar a frente do palco (num trocadilho infame, eu sei...) as relações entre a produção de arte e o que sempre está por trás dela: as intenções de quem a realizou. Com relação às novelas, não concordo com o que a autora diz sobre o fato de que o público atual escolhe "o que é bom ou mal para si próprio". Hoje os "grupos de discussão" apenas demonstram uma tendência mercadológica que, se em alguma medida dirige o que é apresentado, não é o principal motor de quaisquer modificações diretas no conteúdo, no máximo uma correção de rumo. Entretanto é sempre bom que questionemos o que nos é apresentado de forma crítica e responsável para identificarmos as ideologias por trás do que vemos e se aceitaremos a sua influência sobre nós. Um homem sábio disse que a ideologia mais perversa é aquela que não é reconhecida como tal.
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