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quinta-feira, 3 de março de 2011

A Uma Passante

Por Elaine Brito
O tempo, a inquisição de tudo que é humano, impõe a todos uma troca injusta. A matéria sucumbe diante do algoz risonho, a contemplar a sabedoria, bênção sempre tardia, aplacando os clamores de uma vida inteira, tal qual o unguento que ameniza as feridas. Mas de nada adianta saber quando só restam despedidas.

Os últimos anos não tinham sido fáceis, mas a tristeza parecia-lhe mais confortável. Era sincera. Sentia como se o espírito tivesse se acomodado às agudezas de uma existência sem grandes desafios, a não ser o convívio consigo mesma. A vida foi-lhe escapando por onde pudesse, até que algumas migalhas revelaram-se suficientes para quem já não tinha fome de nada.

Uma trajetória em branco, ninguém que pudesse dizer quem tinha sido, o que tinha feito. A vida não passa de um sopro quando não há quem a testemunhe. Mas no lugar da antiga angústia, a leveza de quem já não anseia por coisa alguma.

Porém, quis o destino que algo extraordinário lhe acontecesse, abrindo espaço no vazio.

Ia pela rua quando reparou numa moça que vinha em direção contrária. Caminhavam no mesmo ritmo, passos incrivelmente sincronizados, assim como o movimento dos braços. Sentiu que a qualquer momento o rosto da moça ficaria mais nítido e a proximidade resolveria qualquer engano. Até que a moça passou deslocando o ar em volta, fazendo levantar o voo das aves e toda a poeira encobrindo a memória. Por último, deixou um resto de cabelo no rosto da mulher que a contemplava.

O que se passou então foi um instante de assombro, um minuto da maior perplexidade. O cheiro que a moça deitou nas narinas da mulher aguçou-lhe todos os sentidos, e o olfato não era só o olfato, era a própria lembrança. Imagens sucessivas projetavam-se na retina, o outro lado da visão. Por isso, foi preciso olhar para dentro, esqueceu-se do redor.

Eram imagens de uma vida tão distante que mais pareciam contar a história de outra pessoa. Mas sabia que eram suas, as pessoas, os móveis, as paisagens, as frases, os pensamentos, os desencontros, tudo lhe pertencia. De repente, cessam as imagens e de novo olha para fora. Era o fim da vertigem. Então percebeu um orelhão, um chafariz e um homem que gesticulava. Só depois de segundos foi capaz de lhe dizer as horas. Terminada aquela cena, teve ímpeto de olhar para trás e avistar a moça, que ia cruzando a avenida a vários metros dali. Passou a observá-la de longe, a passos lentos, mas decididos na nova direção. Há muito tempo não tinha um rumo tão certo.

Depois de alcançar a outra calçada, fixou os olhos na moça de tal forma que pareciam atraídos por um ímã. Seguia a moça porque tinha que segui-la e, ao passo que ia, buscava um motivo para a aventura. De repente, a moça fez uma manobra brusca à direita, saindo do campo de visão da mulher. Atordoada pela perda, acelerou os passos o máximo que pôde até tocar a moça com os olhos novamente. Agora respirava com dificuldade, ofegante, pois a idade lhe impunha velocidades.

Perguntava-se aonde a levaria aquela perseguição, mas precisava seguir adiante. A moça cruzou a rua e enfiou-se por uma escadaria. De longe não pôde distinguir o que era, se uma galeria de lojas ou estação de metrô. A idade também lhe trazia o opaco, o translúcido, o que se quer ver e não pode. Então se aproximou com cautela e deparou com uma bilheteria de cinema. Não viu a moça em nenhuma das filas. Pensou em dar as costas e retomar o antigo trajeto. Até que, do alto da escadaria, viu a moça abrindo uma embalagem qualquer, levava uma bala à boca. A moça veio subindo as escadas, pisando com calma, como se não ousasse ferir o chão. Ao levantar o pescoço, reconheceu a mulher de algumas ruas atrás e por um segundo fixou nela os olhos.

Foi então que ocorreu o encontro mais insólito da vida de qualquer ser humano. A moça era a réplica do seu antigamente. Viu-se jovem outra vez. Aquele corpo em sua direção era a imagem saída de uma fotografia velha, dessas que se guarda num álbum muito bem escondido. Quis perguntar à moça qual era seu nome, onde morava, o que fazia. Mas contentou-se em contemplar a si mesma, ver-se com os olhos de que já viveu mais do que deveria. Percebeu que aquela moça era bonita, segura, interessada no mundo, dona da cidade. Percebeu que andava sozinha, mas satisfeita, esbanjando plenitude. A mulher, vendo tudo isso tão de perto, sentiu um alvoroço no peito, uma consternação diante do absurdo. Oh, glória ingrata, a maturidade.

Desesperou-se. Era preciso agir. Sabia que era tarde, mas quem sabe uma salvação. E ela estava ali, em carne e osso, na sua frente. Então adivinhou entre os pensamentos alguns restos de compreensão que um dia sonhou passar adiante, talvez algum filho. Tentou dizer à moça que todas as certezas do mundo não valem um punhado de sonhos rarefeitos. Tentou dizer que os livros são um engano, que a experiência vivida era o lugar preferido das respostas verdadeiras. Tentou ensinar tudo aquilo que deveria ter aprendido mais rápido. Tentou gritar até.

Mas quando movimentou o corpo e preparou a garganta, a moça já tinha passado por ela outra vez. Dessa vez ia longe, inalcançável, não passava de uma mancha na multidão.

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