"Titulação não garante mérito. Mérito se avalia por produção. Há muito professor universitário neste país que julga que seus títulos têm algum valor que os coloca acima do resto da sociedade. Fortemente recomendo que abandonem essa lamentável ideia. Soa como um palhaço que insiste em ser chamado de Doutor Palhaço. " (Adonai Sant'Anna)
Por Adonai Sant’Anna
Anos
atrás fiz várias contribuições para a Scientific American Brasil, com dois
artigos, diversas notas de divulgação e jornalismo científico, revisões
técnicas para a Série Gênios da Ciência e uma resenha de um livro de Richard
Dawkins, entre outras. No final do ano passado, porém, apresentei uma proposta
ao editor Ulisses Capozzoli: publicar um artigo sobre as mazelas das
universidades federais brasileiras. Pedi a ele que visitasse este blog, para
ter uma ideia melhor sobre o que eu tinha em mente. Capozzoli imediatamente
concordou, percebendo que certas questões sobre as universidades públicas
precisam ser urgentemente discutidas.
A
edição de fevereiro de Scientific American Brasil com o artigo em questão já
está nas bancas brasileiras e portuguesas. No editorial, Capozzoli dá especial
atenção ao artigo, afirmando que "o que ocorre nessas instituições
[universidades públicas] é a ação nefasta de grupos/pessoas interessadas na
fermentação interna da mediocridade intelectual como estratégia de sobrevivência
parasitária".
Com
permissão do editor, reproduzo aqui uma versão do artigo original, adaptada ao
perfil deste blog.
Agradeço
ao editor Ulisses Capozzoli não apenas pela importante iniciativa, mas
principalmente pela cuidadosa revisão que ele fez na primeira versão do texto.
Parte
significativa do artigo contém informações e discussões já veiculadas aqui,
principalmente sobre o problema da estabilidade de emprego entre professores de
instituições federais de ensino superior. Mas há também tópicos que ainda não
exploramos neste blog.
Veremos,
agora, as reações dos diferentes segmentos sociais deste país. As primeiras
mensagens de reação já começaram a chegar, principalmente de jovens estudantes.
Desejo
a todos uma leitura crítica.
________
Ciência e
Educação (de qualidade) são a Base da Esperança
Em
1998 o Governo Federal criou por decreto a Gratificação de Estímulo à Docência
no Magistério Superior. Tratava-se de um adicional ao salário dos docentes de
instituições federais de ensino superior (ifes), cujo valor dependia da
produtividade em ensino, pesquisa, extensão e administração de cada professor.
Pouco tempo depois o valor máximo desta gratificação foi incorporado aos
salários de todos os docentes concursados das ifes. Os professores que sistematicamente
tinham produtividade máxima (de acordo com critérios governamentais)
continuaram a receber em seus contra-cheques o mesmo valor de meses anteriores.
Os demais, com produtividade inferior, conquistaram significativo aumento em
seus vencimentos.
Este
é um exemplo que retrata com fidelidade o quadro típico da universidade pública
brasileira: a falta de meritocracia. E, sem reconhecimento efetivo de mérito,
como promover progresso científico e tecnológico relevante? Esta falta de
políticas meritocráticas na academia brasileira atinge não apenas professores e
pesquisadores, mas também alunos e funcionários do quadro
técnico-administrativo.
Neste
artigo esboço de forma muito breve alguns dos mais graves problemas crônicos do
ensino superior público - com ênfase nas universidades federais - e algumas
consequências de tais problemas, geralmente gravitando ao redor da confortável
garantia de emprego para todos os professores concursados. O foco deste texto
se justifica de forma simples. As universidades federais de nosso país têm um
papel estratégico fundamental em toda a rede educacional brasileira. Ações e
políticas de instituições privadas e estaduais de ensino superior ou médio são
muitas vezes dependentes de práticas comuns às universidades federais
espalhadas pelo território nacional, as quais são fortemente controladas pelo
Governo.
Instituições
federais de ensino superior não têm autonomia para contratação, demissão ou
negociação salarial de professores. Concursos públicos, para fins de
contratação de novos docentes, somente podem ser realizados através de editais
nacionais do Governo Federal. Localmente, não há como negociar a contratação de
professores, não importando a competência dos mesmos, fatores emergenciais ou
as necessidades da instituição. Sempre devem ser aguardados os editais
governamentais. Demissões somente podem ocorrer em casos extremamente graves,
como abandono do cargo. Participei, anos atrás, de uma comissão interna da
Universidade Federal do Paraná (UFPR) que deveria avaliar a situação de um
docente que não aparecia no trabalho há pelo menos seis meses. Esta foi uma
demonstração muito clara da lentidão administrativa de uma universidade
federal. Se um docente lecionar de forma incompetente ou se não realizar
atividades de pesquisa, extensão ou administração, isso não caracteriza motivo
suficiente para demissão ou perda de privilégios básicos do cargo. Vale
observar que estou falando da prática e não daquilo que consta em documentos
oficiais. Também não estou discutindo sobre professores substitutos, os quais
são contratados por tempo determinado, ganhando salários muito inferiores aos
de concursados.
Se
um professor é contratado após realização de concurso público, ele deve cumprir
um estágio probatório de três anos. Após este período, seu cargo está
praticamente garantido, independentemente de sua produção posterior ao longo de
toda a vida acadêmica restante. Além disso, docentes podem eventualmente
progredir em planos de carreira, mas jamais regridem. Uma vez que um docente se
torna Associado III, por exemplo, jamais pode regredir para Associado II ou I,
mesmo que nada mais produza após sua última progressão funcional.
É
claro que há professores de ifes que mantém excelente produção acadêmica. Mas
existem também aqueles que faltam às aulas (sem registro oficial de tais
faltas), não cumprem ementas de disciplinas ou horários de aulas, não realizam
pesquisa alguma ou qualquer atividade de extensão e nem orientam alunos de
graduação ou de pós-graduação. Tais professores podem contar com os mesmos
benefícios da estabilidade dada aos mais produtivos.
São
várias as consequências do conforto conquistado através da estabilidade
irrestrita. Uma delas é o fato de que comumente professores mais antigos se
sentem intimidados por jovens que demonstram talento evidentemente superior à
média, e muitas vezes usam mecanismos burocráticos absurdos como tentativa
desesperada para nivelar todos a um mesmo patamar de desempenho mediano. Cito
um caso que eu mesmo testemunhei. Durante minha chefia do Departamento de
Matemática da UFPR, de 2005 a 2007, fui relator de um processo de pedido de
afastamento de um casal de jovens professores recentemente contratados pelo
Departamento de Estatística daquela instituição: Leonardo Soares Bastos e Thaís
Cristina de Oliveira Fonseca. Ambos foram convidados para realizar doutoramento
em ótimas universidades britânicas, sob a orientação de dois pesquisadores de
excelente reputação internacional e com bolsas de estudos pagas pelas
respectivas instituições estrangeiras. Apesar do Departamento de Estatística
ter aprovado as duas solicitações e de meu parecer ter sido justificadamente
favorável, o Setor de Ciências Exatas (instância superior) indeferiu os
pedidos. A alegação foi o estágio probatório, o qual deveria ser cumprido por
ambos. Legalmente, o estágio probatório poderia ser cumprido no exterior, uma
vez que o vínculo empregatício com a UFPR seria mantido. E os membros do
Conselho do Setor de Ciências Exatas sabiam disso. Mas o fato é que vi de perto
os verdadeiros motivos para negar os pedidos de afastamento temporário: o medo
provocado por jovens que crescem rapidamente em suas carreiras. O resultado não
poderia ser outro. O ambicioso casal pediu demissão e seguiu rumo para a
Inglaterra. Hoje são professores doutores das Universidades Federal Fluminense
e Federal do Rio de Janeiro. Ou seja, apesar das políticas das ifes serem
praticamente as mesmas em todo o país, este casal ainda insiste em apostar no
futuro de nossa nação. Afinal, o Brasil precisa de estatísticos de alto nível.
A
consequência mais óbvia da estabilidade irrestrita para docentes das ifes é a
falta de um ambiente competitivo na vida acadêmica pública. É claro que muitos
professores com produção científica (nem todos) têm acesso a bolsas de estudo
e/ou pesquisa, o que caracteriza um certo reconhecimento de mérito por parte de
órgãos de apoio que são geralmente externos às ifes. E a manutenção dessas
bolsas depende da contínua produção científica dos beneficiados, de acordo com
critérios muitas vezes exigentes. No entanto, seus cargos em suas instituições
de origem jamais estão ameaçados, ainda que não produzam conhecimento algum. E
mesmo em casos de faltas graves, como a prática comum de lecionar conteúdos de
forma superficial e até errada, o cargo continua garantido. As ifes ainda
contam com o trabalho competente de diversos pesquisadores e cientistas
brasileiros, algo que dificilmente pode ser encontrado em universidades
privadas deste país. Mas, em geral, as condições de trabalho deles em pouco
difere daquelas ofertadas a todos os demais. Temos, assim, um ambiente de pouco
estímulo à produção intelectual relevante do ponto de vista do exigente cenário
internacional.
O
Brasil não é internacionalmente reconhecido como uma nação que produz ideias.
Os Estados Unidos são um país tão novo quanto o nosso. Mas as melhores
universidades do planeta estão na América do Norte, de acordo com diversas
pesquisas internacionais realizadas de forma independente. Por que o Brasil não
consegue se destacar em produção científica? Não estaria na hora de percebermos
que estamos fazendo alguma coisa errada? Mentes brilhantes nosso país tem desde
muito tempo atrás.
Carlos
Chagas foi oficialmente indicado ao Nobel de Medicina em duas ocasiões. Perdeu
porque Afrânio Peixoto era contrário à política meritocrática adotada por
Chagas durante sua gestão no antigo Departamento de Saúde Pública do Governo
Federal. Deste modo, Peixoto e colegas fizeram campanha perante a Comissão
Nobel, no Instituto Karolinska (Suécia), afirmando, resumidamente, que o
trabalho de Chagas não merecia atenção alguma.
Natural
de Petrópolis, RJ, Peter Medawar ganhou o Nobel de Medicina, mas durante a
juventude teve a cidadania cassada pelo Governo Federal, simplesmente porque
não se apresentou ao serviço militar obrigatório. Os resultados de suas
pesquisas sobre transplantes de tecidos vivos estão acessíveis a qualquer
brasileiro, incluindo militares. Mas a cidadania de Medawar somente foi
restaurada muito tempo depois e de forma absolutamente discreta. Por sorte
Medawar tinha cidadania britânica também. Assim, Inglaterra ganhou um Prêmio Nobel
a mais e o Brasil até hoje ignora a fundamental importância da ciência feita em
ambientes competitivos.
Universidades
estadunidenses também conferem estabilidade para professores. Mas são poucos os
que recebem este benefício, conhecido como tenure. O critério é simplesmente
meritocrático. E tal mérito não se avalia através de concurso público realizado
em dois ou três dias, mas ao longo de uma extensa carreira marcada por
contribuições de elevada relevância acadêmica e negociações. A concessão de estabilidade
irrestrita a qualquer professor universitário ou pesquisador é uma forma
extremamente eficaz para cultivar um ambiente sem desafios significativos. E
ciência, como qualquer outra atividade profissional de alto nível, se
fundamenta na constante luta para vencer desafios.
Um
docente de instituição federal de ensino superior pode ter acesso a bolsas
governamentais de pesquisa e orientar alunos de pós-graduação, se demonstrar
produção científica principalmente na forma de artigos publicados em certos veículos
especializados de circulação internacional. No entanto, em áreas como
matemática, física, química e biologia, esta produção é especialmente avaliada
a partir de números que nem sempre têm a ver com qualidade. Avalia-se a
quantidade de artigos publicados em periódicos reconhecidos pelos órgãos de
apoio à pesquisa, mas raramente se avaliam fatores extremamente importantes,
como impacto social de pesquisas e a efetiva participação dos envolvidos.
A
revista britânica Nature, por exemplo, adota a seguinte política editorial: ao
final do artigo publicado deve ser especificada a real contribuição de cada um
dos autores. No entanto, a maioria dos periódicos especializados não adota esta
postura. A inclusão de nomes de colegas em artigos científicos tem sido cada
vez mais frequente, mesmo quando estes colegas não participam de forma alguma
no projeto em questão. E apenas uma minoria dos professores pesquisadores das
ifes consegue publicar contribuições que demonstram algum impacto significativo
à ciência. O mecanismo mais imediato para avaliar impacto é citação. Em geral,
quanto mais citações um artigo recebe na literatura especializada
internacional, mais relevante é o impacto do trabalho citado. Porém, mesmo esta
visão quantitativa tem limitações.
Por
conta de um único artigo publicado na revista Nature, o curitibano Cesar Lattes
revolucionou a física de partículas elementares. E, por conta deste trabalho,
ele também foi indicado ao Nobel. Quantos outros pesquisadores deste país podem
dizer que passaram por experiência parecida? Em avaliações de produtividade,
para fins de progressão funcional nas ifes, este artigo de Cesar Lattes valeria
tanto quanto um trabalho obscuro publicado em Physics Essays, um dos piores
periódicos de física em circulação. E valeria a metade de um livro didático
publicado, independentemente de sua qualidade.
A
verdade é que vivemos em uma nação na qual há um número crescente de doutores
que sequer sabem ler inglês, situação essa simplesmente inadmissível nos países
desenvolvidos, principalmente nas áreas científicas. E sem conhecimentos
básicos de inglês, como produzir ciência?
De
forma alguma recomendo que deveríamos copiar o modelo acadêmico
norte-americano. Mas certamente poderíamos aprender muito com modelos que
demonstram claramente funcionar melhor do que o nosso. Afinal, as universidades
estadunidenses, apesar de inúmeros problemas graves, produzem a maioria das
mais impactantes contribuições científicas e tecnológicas do mundo. O Brasil
simplesmente não compete.
Nos
Estados Unidos jovens ingressam em universidades. No Brasil, jovens ingressam
em cursos universitários. Esta é uma diferença profunda entre os dois sistemas.
Se um aluno de uma instituição federal de ensino superior consegue vencer as
absurdas barreiras do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e do vestibular,
ele está praticamente preso a um curso escolhido enquanto cursava o ensino
médio e, portanto, enquanto estava longe de qualquer ambiente universitário. Se
este aluno percebe que o curso escolhido não está de acordo com seu perfil
pessoal, ele dificilmente terá chances de conseguir uma transferência. A
burocracia é muito complicada e prática para poucos. Provavelmente terá que se
submeter ao ENEM e ao vestibular de novo ou simplesmente desistir, como muitos o
fazem. Já em uma universidade norte-americana, seja privada ou estadual, o
recém ingresso encontra a oportunidade de conhecer todas as diferentes
realidades das opções disponíveis para graduação. Ele tem a chance de escolher
seu futuro profissional a partir de um ambiente genuinamente universitário. No
Brasil, as ifes operam como instituições poliversitárias. E este modelo é
copiado por instituições estaduais e privadas do ensino superior brasileiro.
Logo, o Brasil não tem ideia do que é uma universidade.
Um
sistema de ensino superior que exige de um adolescente a escolha de seu curso
superior antes de ingressar em qualquer universidade é um sistema que
negligencia sua juventude.
Nas
ifes também não existe, de forma séria, a tradição das associações de ex-alunos.
Isso significa que as ifes, em geral, não avaliam as carreiras de seus
egressos. Uma universidade que não está interessada em saber sobre o destino
profissional de seus ex-alunos é uma instituição que não está interessada em
conhecer seu papel real perante a sociedade. Novamente temos negligência.
Em
2007 todas universidades federais assinaram o polêmico contrato REUNI (Programa
de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) com
o Governo. A Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) foi a última a
assinar este pacto. Em troca de dinheiro, essas ifes assumiram o compromisso de
aumentar gradualmente suas taxas de conclusão de curso para noventa por cento.
Do ponto de vista educacional, essa exigência é simplesmente irresponsável.
Cursos nas áreas científicas, por exemplo, comumente apresentam índices de
reprovação muito superiores a dez por cento, mesmo nas melhores universidades
do mundo. Isso significa que tanto o Governo Federal quanto os professores que
alegam lutar pelo ensino superior público de qualidade em seus emocionais
movimentos de greve, estão negligenciando o futuro da nação de forma realmente
perigosa. A preocupação evidente é com quantidade de jovens que se formam em
graduações e não com qualidade de ensino.
Em
2012 a consultoria britânica Economist Intelligence Unit publicou um
levantamento global de educação que comparou quarenta países, levando em conta
notas de testes realizados por alunos e qualidade de professores avaliados
entre 2006 e 2010. O Brasil ficou em penúltimo lugar, denunciando um sistema
educacional básico que supera apenas o da Indonésia. Este resultado desastroso
é uma das múltiplas evidências de que professores formados pelo ensino superior
brasileiro não estão demonstrando competência profissional. Diante da promessa
do Governo e das universidades federais de que as taxas de conclusão de curso
deverão subir indiscriminadamente para noventa por cento, percebe-se que o
futuro reserva um desempenho educacional ainda pior para o Brasil, a longo
prazo.
Usualmente
também não existem programas de honors (ou equivalentes) nas ifes. Esses
programas constituem em uma série de procedimentos de avaliação que reconhecem
os alunos que se destacam como os melhores em suas respectivas turmas de formatura.
Na prática, os programas de honors operam como cartas institucionais de
recomendação que simplesmente afirmam: "Este indivíduo realizou seu curso
com distinção e louvor." É uma forma de ajudar a alavancar as carreiras
dos mais brilhantes. Nas ifes, no entanto, novamente faz-se questão de tratar
todos de forma igualitária. Temos assim outro exemplo de negligência em um país
cujas universidades públicas geralmente consideram elitismo como algo
socialmente reprovável.
Não
existem mais cátedras nas ifes. Se um professor de universidade federal falece,
pede exoneração do cargo ou se aposenta, ele libera uma vaga. Não importa se
este docente orientou dezenas de doutores, publicou centenas de artigos de
elevado impacto, exerceu relevantes atividades administrativas ou influenciou
de forma construtiva milhares de pessoas ao longo de sua carreira. Simplesmente
não existe continuidade de sua obra. Este senso de continuidade deveria ser
estabelecido institucionalmente através da cátedra. O célebre astrofísico
Stephen Hawking, da Cambridge University, ocupou a mesma cátedra de Sir Isaac
Newton, um dos pais da ciência moderna. Trata-se de um compromisso que deve
transcender a mortalidade física dos grandes nomes da ciência mundial. Nas
ifes, porém, qualquer obra, por mais relevante que seja, deve morrer junto com
o seu autor. O grande lógico brasileiro Newton da Costa é professor catedrático
da UFPR. Sua cátedra é um cargo vitalício, conquistado décadas atrás. No
entanto, apesar deste grande cientista ser responsável pela formação de uma
importante escola de lógicos brasileiros reconhecidos internacionalmente, a
UFPR não se preocupa em ocupar esta cátedra com algum profissional que continue
tal tradição. Isso porque todas as cátedras foram extintas, não apenas na UFPR,
mas em todas as ifes. Temos aqui um exemplo de negligência com obras
relevantes. Falta a percepção de que memória não se promove apenas com museus
ou nomes dados a salas de aula e bibliotecas.
Mantenho
um blog no qual promovo discussões e articulo ações sobre educação, com
especial ênfase à matemática. Neste sítio convoquei alunos de ifes a espalharem
cartazes em suas instituições de ensino com a frase "Professor de
universidade pública tem seu emprego garantido, independentemente da qualidade
de suas aulas." É uma frase simples, excessivamente resumida, mas que
retrata um fato importante. Os jovens que atenderam ao pedido foram
surpreendidos com manifestações imediatas de extrema intolerância, vindas
justamente de professores. Docentes concursados, que viram esses cartazes,
simplesmente os arrancaram. Cartazes colados em paredes foram dilacerados. Há
pouco espaço para autocrítica nas ifes.
Recentemente
recebi convite da revista Sem Fronteiras, da Secretaria de Estado da Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do estado do Paraná, para escrever um
artigo. Imediatamente escrevi um texto crítico sobre a educação brasileira.
Recebi a resposta de que aquele texto não poderia ser publicado, pois não
interessava à SETI criar atritos políticos com demais setores do governo
paranaense. Em função desta resposta, escrevi outro artigo, no qual eu
criticava o papel do filósofo da ciência nos dias de hoje. O artigo foi
publicado na íntegra. Ou seja, criticar filósofos não tem problema. Mas
criticar o sistema público de ensino é desaconselhável. E isso ocorreu em uma
revista chamada Sem Fronteiras.
Quando
propus o presente artigo ao editor Ulisses Capozzoli, a resposta foi imediata:
se a Scientific American Brasil publica artigos contendo críticas a universidades
dos Estados Unidos e de outros países, por que não criticar universidades
brasileiras? Esta é uma postura genuinamente científica. Sem crítica, não se
faz ciência e nem educação. Sem crítica, não se sustenta uma instituição de
ensino séria e competitiva e, em particular, uma universidade. E os exemplos de
negligência dados são igualmente exemplos de falta de crítica.
Professores
de física falam de infinitésimos em suas aulas de graduação e pós-graduação,
quando modelam fenômenos físicos através de ferramentas do cálculo diferencial
e integral. No entanto, o cálculo ensinado nas mesmas instituições não emprega
infinitésimos, conceito este fundamental em um estudo avançado conhecido como
análise não standard. Professores de cursos de letras, quando lecionam
linguística, discutem sobre gramáticas gerativas de Chomsky, sem de fato
conhecer teorias de conjuntos, o que torna o estudo sério a respeito do tema
simplesmente impossível. E docentes de cursos de filosofia abordam filosofia da
ciência sem jamais terem tido qualquer contato com atividades científicas, no
sentido estrito do termo. Apesar destes problemas não serem exclusivos das
universidades federais, certamente a perpetuação de tamanha ignorância em tais
instituições constitui um péssimo exemplo que se propaga em praticamente todas
as universidades do país. O próprio Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) considera lógica matemática como especialidade
da álgebra, em sua classificação de áreas do conhecimento, demonstrando
desconhecer o que é lógica matemática.
O
conceito de universidade deve apelar fundamentalmente para uma visão de
universalidade, como o próprio nome sugere de forma trivial. Muitas das mais
importantes contribuições científicas da história exigiram pesquisas
interdisciplinares. A descoberta da estrutura molecular do DNA, por exemplo,
somente foi possível graças a aplicações de métodos de ciências físicas em
biologia. A própria filosofia da ciência, nos dias de hoje, avançou para muito
além das ideias de Karl Popper, autor ainda venerado em graduações brasileiras
como uma espécie de líder atual que conduz aos temas mais avançados da
metodologia e da epistemologia. O casamento entre filosofia da ciência e
métodos avançados de lógica matemática praticamente não é discutido nas salas
de aulas de nossas universidades. Enquanto nossos professores universitários em
geral ignoram as profundas riquezas da psicologia matemática e das aplicações
da teoria matemática das decisões em ciências humanas, entre outros exemplos de
interdisciplinaridade, o Brasil continua estagnado perante as nações que
tradicionalmente produzem conhecimento científico de alto nível e que, por
conta disso, crescem dos pontos de vista social e econômico. Não é por acaso
que nossas graduações em engenharias são reconhecidas apenas como cursos
técnicos em países europeus.
Fala-se
muito da necessidade de valorizar o professor no Brasil. No entanto, os
professores do ensino público frequentemente querem impor essa valorização
através de greves que reivindicam melhores salários para todos, sem qualquer
discriminação. Se docentes desejam honestamente ser valorizados, poderiam
examinar certos exemplos que ocorrem em outras categorias profissionais.
Médicos, psicólogos, engenheiros, arquitetos e até mesmo corretores de imóveis
contam com o apoio de códigos de ética. Professores, porém, não têm qualquer
código de ética para estabelecer padrões de qualidade de suas profissões e
mecanismos de proteção e punição. Códigos de ética certamente não resolvem de maneira
definitiva o problema da valorização profissional. Mas constituem um importante
passo, de caráter muito mais meritocrático do que greves. Mas, para isso, seria
necessário que os docentes dialogassem com especialistas em ética, cujas
competências sejam internacionalmente reconhecidas. Sem diálogo entre
diferentes áreas do saber, não há universidade e nem educação.
Para
o leitor perceber melhor as origens da incompetência dos professores
brasileiros, recomendo a leitura deste artigo de Paula Louzano e colaboradores.
Nos
Estados Unidos todas as instituições de ensino superior são pagas, incluindo
estaduais e municipais. No Brasil as universidades públicas são gratuitas. Este
é um exemplo brasileiro de profunda responsabilidade social. Mas qualquer que
seja a realidade educacional e científica de uma nação, sempre haverá problemas
graves a serem resolvidos. Portanto, a visão crítica jamais deve deixar de
existir. Porém, levando em conta nossa realidade de hoje, fica evidente que
ainda não encaramos de frente os problemas mais crônicos e graves.
Há
muito tempo o Governo Federal tem investido consideráveis verbas para apoiar
pesquisas e expandir vagas em universidades. E graças a iniciativas como a
criação de institutos de pesquisa, projetos de convênios internacionais e
órgãos de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico, o Brasil conseguiu
conquistar um certo reconhecimento internacional em algumas áreas da medicina,
matemática e física, para citar umas poucas.
Mas
a preocupação principal que deve ser colocada, atualmente, é sobre a estrutura
fundamental do ensino superior brasileiro. E o primeiro foco de atenção deve
ser voltado às instituições federais de ensino superior, as quais respondem por
grande parte da produção científica da nação e estão ao alcance de ações
imediatas do Governo Federal. Em alguns rankings internacionais, as primeiras
universidades brasileiras citadas são duas estaduais de São Paulo.
Eventualmente aparecem também nestas listas a Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Mas suas colocações são sempre modestas. E na rigorosa classificação
Shangai, nenhuma instituição brasileira é citada.
A
situação econômica do Brasil, bem como seus reflexos sobre a qualidade de vida
de cada um de nós, não serão sustentados a longo prazo sem uma revisão drástica
sobre os fundamentos de nossa educação e produção científica e tecnológica. Sem
ciência e educação, simplesmente não há esperança.
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