Por Guilherme Tommaselli
Esse artigo tem, como objetivo,estabelecer uma relação entre os conceitos de biopoder e biopolítica,desenvolvidos por Michel Foucault, e o conceito de semiformação desenvolvido por Theodor Adorno. O esforço em realizar essa reflexão se deve a importância dessesdois autores para a compressão de questões do mundo contemporâneo. Deste modo,esse artigo será composto por três pontos: O conceito de biopoder; o conceitode semiformação e a possível relação que se estabelece entre ambos.
Para análise dos conceitos e sua possível relação, usaremos, como referencia básica,o texto "a história da sexualidade: a vontade de saber", para abordar oconceito de biopolítica e biopoder e, o texto " teoria da semicultura", para abordar o conceito de semiformação.
Deste modo, a intenção desse trabalho é traçar possíveis relações entreos conceitos, procurando mostrar que, em uma sociedade semiformada, onde aautonomia do indivíduo sequer é gerada, a presença do biopoder e da biopolíticaé menos percebida por estes.
Conceito de Biopoder
O conceito de biopoder (e biopolítica), foi desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault, em uma de suas mais notórias obras: A história da sexualidade,primeiro volume, publicado em 1976. O biopoder é um instrumento que auxilia a reflexão acerca das práticas disciplinares presentes na sociedade contemporânea. Segundo Foucault, o biopoder e a biopolítica são ambos formas de exercício de poder, que se desenvolveram a partir do século XVIII.
De acordo Foucault (1988), a disciplina era direcionada para o indivíduo e, mais especificamente, para o controle de seu corpo, para a sua normatização e adestramento, através das instituições modernas que fazem parte da vida do indivíduo, como, por exemplo, a escola, a fábrica, o hospital, a prisão.
Essas instituições, segundo o autor, domesticavam os corpos tornando-os aptos ao trabalho industrial, fruto do desenvolvimento da sociedade capitalista. Para Foucault (1988), a disciplina dessas instituições centrava-se no corpo do indivíduo e, este (o corpo), era adestrado, de modo que se tornasse mais dócil sua relação com o trabalho, facilitando a sua integração em sistemas de controle mais eficazes e com menor custo de produção.
O poder disciplinador age sobre os corpos através de sua integração a espaços determinados, do controle do tempo sobre os corpos, da vigilância constante e,também, da produção do conhecimento.
Portanto,o poder disciplinar age sobre os indivíduos no controle do seu corpo e,paralelamente a este fato, segundo Foucault, se desenvolveu o biopoder, umanova forma de controle que age em um âmbito mais amplo, a espécie. Assim, obiopoder é responsável pelo controle dos processos de nascimento e de morte, dasaúde da população, da longevidade, etc.
Deste modo, podemos compreender o biopoder como um mecanismo de controle da vida em um âmbito geral, isto é, a ação do poder disciplinador sobre o biológico que,nesse contexto, ganha papel central nas questões políticas. Segundo Foucault (1988), o biopoder tem como um de seus objetivos transformar, aperfeiçoar, essa forma de controle sobre a vida, visando sempre um maior controle, um maiorpoder de disciplinar, sobre os indivíduos.
Assim,através do desenvolvimento da disciplina corpórea, o corpo foi submetido ao processo de domesticação, que o tornou mais dócil, para o exercício da atividade de produção fabril. Portanto, podemos considerar o desenvolvimento do biopoder como um importante momento do desenvolvimento do capitalismo, visto que, através dele, se pode alcançar um maior controle sobre a população e, consequentemente, uma adaptação mais fácil aos processos econômicos.
Outro ponto fundamental levantado por Foucault, relativo ao biopoder, é o fato de que, conjuntamente com o seu desenvolvimento, se operou na sociedade um modo de vida onde o poder desenvolve um papel central. Nas sociedades soberanas, a figura central, o soberano, possuía o monopólio da violência, ou seja, ela possuía o direito sobre a vida de seus súditos. Essa relação sobre a vida do súdito se torna mais extrema quando este representava uma ameaça ao poder do soberano. Portanto, nesse tipo de relação o poder estabelece uma relação direta com a vida. Segundo Foucault (1988), nas sociedades disciplinares, o poder sobre a vida não está direcionado à possibilidade de extinção desta mas, ao contrário, o biopoder, nessas sociedades, se desenvolve como um meio de controle da vida em toda sua amplitude, de modo que procura organizá-la, vigiá-la, com o objetivo de controlá-la, através dos aparelhos de produção capitalista.
Assim,podemos compreender o biopoder como uma forma de controle sobre os seres vivos,de modo que estes passem a ser compreendidos através de seu valor e utilidade para o processo de produção fabril. Portanto, o biopoder se estabelece como uma forma de normatizar a conduta dos corpos, da vida. Assim, ele utiliza-se dos mais diversos aparelhos, como, por exemplo, os médicos e os aparelhos administrativos,para exercer um controle sobre a vida.
Para Foucault, esse é um processo que submeteu a vida às tecnologias do poder.Assim, ela (a vida), passou a ser compreendida como um objeto e deste modo, o direito sobre ela, sobre o corpo, sobre o ser vivo, tornou-se uma questão de primeira ordem no âmbito político.
O que é reivindicado e serve de objeto é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades,a plenitude do possível. Pouco importa que se trate ou não de utopia: temos aí um processo bem real de luta; a vida como objeto político foi de algum modo tomado ao pé da letra e voltada para o sistema que tentava controlá-la.(FOUCAULT, 1988, p.158)
Conceito de Semiformação
Teoria da semiformação foi escrito por Adorno em 1959, nesse texto, o autor enfatiza a dificuldade de educar os homens no capitalismo tardio que, tem como um de seus princípios, a reprodução do status quo em seus mais diversos aspectos,compreendendo o campo cultural.
O sistema capitalista durante seu desenvolvimento teve, como uma de suas consequências, a negação da formação cultural e, essa é a tese central desse texto. Adorno demonstra a sua preocupação com o caminho seguido pela formação cultural nesse contexto, e realiza sua reflexão acerca das possibilidades de superação desse processo,para a construção de uma sociedade mais justa, composta por indivíduos autônomos, emancipados.
Para início da reflexão sobre a semiformação é necessário antes compreender o conceito de Bildung (formação) que tem origem na língua alemã. Para compreendermos a origem deste conceito foi necessário recorrer ao texto “A idéia deformação na modernidade” escrito por Willi Bolle, presente na coletânea "Infância, escola e modernidade" organizada por Ghiraldelli.
O conceito de Bildung teve sua origem na Alemanha, no final do século XVIII. Ainda de acordo com o autor, esse é um conceito muito complexo, já que pode ser aplicado nos campos da pedagogia, da educação e da cultura, além de ser fundamental no desenvolvimento de reflexões sobre o homem,a humanidade e a sociedade. Assim, para a compreensão do conceito de Bildung é necessário compreender o contexto político-social no qual ele foi criado.
Até o século XVIII, a palavra Bildung, era utilizada na Alemanha como referência à produção exterior. Essa compreensão alterou-se com a secularização do cristianismo, no contexto iluminista, onde a palavra Bildung passou a compor o ideário do esclarecimento. Nesse momento,o sentido semântico da palavra Bildungfoi alterado e, então, ela deixou de ser compreendida como resultado de uma produção exterior e passou a ser compreendida como um modo de construção do interior do indivíduo, mental, psíquica e espiritualmente.
A Bildung,portanto, seria conquistada através do desenvolvimento da emancipação individual, que não é adquirida na escola, ou apenas por meio da educação escolar. Para a sua realização é indispensável o desenvolvimento da independência, da liberdade e da autonomia individual e coletiva e, essa possibilidade só se efetiva através do autodesenvolvimento.
Adorno constata que a Bildung desde sua origem coexistia com a Halbbildung (semiformação), ou seja,durante o desenvolvimento da modernidade, a Bildung passou a ser compreendida ideologicamente e, tornou-se acessível a poucos.Houve, então, um processo de desenvolvimento da Halbbildung, onde esta assumiu a forma da Bildung, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo monopolista, onde a Halbbildung passou a ser socializada através da industria cultural, que não possui um caráter formativo, ou seja, ela (a industria cultural) atua como meio de reprodução e não de formação.
Esse processo onde Halbbildung assume o lugar da Bildung não permitiu que a formação se desenvolvesse de modo autoconsciente e, deste modo, a formação cultural entrou em um processo de decadência, onde a cultura passou a ser compreendida enquanto mercadoria, e a própria apropriação subjetiva da cultura, característica fundamental da Bildung, foi submetida às necessidades do mercado.
Segundo Adorno, com a universalização do mercado na sociedade de consumo, a formação cultural não teve como resultado a democratização da cultura, do saber, mas sim, de uma semicultura. Os avanços do capitalismo monopolista e o surgimento da indústria cultural tiveram como consequência da transformação da cultura em objeto de consumo, em mercadoria,mediante ao avanço dos veículos de comunicação em massa, como, por exemplo, o rádio, o cinema, a televisão. Nesse momento, os produtos culturais se integraram à lógica do mercado, deixando de possuir apenas valor de uso e adquirindo valor de troca.
Diante dessa situação, o homem na busca pela possibilidade de atingir o saber, encontra-se diante do semi-saber e acredita já ser portador da cultura, e consequentemente se fecha à possibilidade de aquisição de cultura.
A não-cultura, como mera ingenuidade e simples ignorância, permitia uma relação imediata com os objetivos e, em virtude do potencial de ceticismos, engenho e ironia - qualidades que se desenvolvem naqueles que não são inteiramente domesticados -, podia elevá-los à consciência crítica. Eis algo fora do alcance da semiformação cultural. (ADORNO; 1996: 397)
Diante das condições encontradas nesse novo momento do capitalismo, o homem não teve tempo histórico e nem condições para desenvolver-se, deste modo, acaba transitando de uma heteronomia para outra, ou seja, da autoridade da bíblia para a autoridade do rádio, da televisão, do cinema. A condição primordial para a constituição da formação cultural – a autonomia - não foi gerada e, portanto, a capacidade de refletir, desconfiar e resistir, não se realiza.
Adorno se preocupa em deixar claro a oposição existente entre formação e semiformação. Para ele, não existe um estágio intermediário,no que diz respeito aos valores culturais. "O entendido experimentado medianamente - semi-entendido e semi-experimentado - não constituiu o grau elementar da formação e sim seu inimigo mortal" (ADORNO; 1996, p. 402).
Assim, a semiformação não representa um caminho intermediário para a cultura. O processo cultural como um todo exige a presença de suas duas dimensões: a autonomia e a adaptação. O privilégio de qualquer uma de suas dimensões é totalmente prejudicial. A semiformação tem como característica o privilégio do momento de adaptação e, portanto, lhe falta a dimensão da autonomia que possibilitaria a emancipação.
Biopoder e Semiformação
Após a exposição dos dois conceitos, a parte final dessa reflexão tem,como objetivo, o estabelecimento de uma relação entre eles. Como vimos anteriormente, o conceito de biopoder, desenvolvido por Michel Foucault, tratados mecanismos de controle e disciplina sobre a vida, nas sociedades modernas,denominadas pelo autor de sociedades disciplinares. Por sua vez, o conceito de semiformação, desenvolvido por Adorno, tem como objetivo analisar a decadência do processo de formação, e a conversão da formação em semiformação.
A relação entre os dois conceitos pode ser percebida quando há uma reflexão sobre a impossibilidade de construção de um ser autônomo, emancipado, com a conversão da formação em semiformação. O desenvolvimento da Bildung pressupõe autodesenvolvimento do ser, e este, só pode se efetivar em indivíduos autônomos, emancipados, fato este que não acontece na sociedade moderna, onde a Bildung passou a ser compreendida ideologicamente e, como consequência desse processo, a Halbbildung (semiformação) assumiu a forma da Bildung.
Portanto,o indivíduo semiformado não possui os subsídios necessários para perceber o tipo de controle desenvolvido pelo biopoder e, deste modo, sua submissão a esse controle se torna mais fácil. A não autonomia do ser dificulta o processo de reflexão necessário para a percepção do controle de vida, do corpo, exercido pelo biopoder.
Diante dessa situação, a presença do biopoder passa desapercebida pela maior parte dos indivíduos e, deste modo, a possibilidade de enfrentar essa questão se torna muito mais complexa. O biopoder, como dito antes, conduz a vida ao controle das tecnologias do poder. Segundo Foucault (1988), a presença do biopoder se torna uma questão política fundamental e, é necessário que haja um desenvolvimento deformas de luta contra esse poder.
Porém, se observarmos esse aspecto sob a ótica de Adorno, a semiformação, seria um elemento fundamental para compreender a passividade do indivíduo diante dessa situação.O indivíduo semiformado não desenvolveu a autonomia do pensamento, necessária para identificar com maior clareza a presença do biopoder, que passa desapercebido. Diante dessa impossibilidade, fica difícil a manifestação deposições contrárias ao poder de controle exercido sobre a vida, pelo biopoder.
*Artigo escrito conjuntamente com luis paulo santos bezerra.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio deJaneiro: Zahar, 1985.
ADORNO,T.W. Educação e emancipação. Tradução e introdução de Wolfgang Leo Maar.São Paulo: Paz e Terra, 1995.
ADORNO,T.W. Teoria da Semicultura. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, BrunoPucci, Cláudia B, Moura Abreu, revisão pelos autores, com colaboração de PaulaRamos-de-Oliveira. In Educação & sociedade: Revista quadrimestral deciência e educação, ano XVII n 56, Campinas: Editora Papirus, Deze./1996.
ADORNO,T.W. Palavras e Sinais: modelos críticos 2/ Theodor W.Adorno ; traduçãode Maria Helena Ruschel ; supervisão deÁlvaro Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
BOLLE, Willi. A idéia de formação namodernidade. IN: GHIRALDELLI JR., Paulo (org.) Infância, escola e modernidade.São Paulo: Cortez; Curitiba: Editora da Universidade do Paraná, 1997.
COHN, G. (org). Theodor W. Adorno. SãoPaulo: Editora Ática (Coleção Grandes Cientistas Sociais), 1986.
DUARTE, R. Esquematismo e semiformação. Educação e Sociedade, nº 83, 2003, p.441 - 457.
FOUCAULT, Michel. Historia da Sexualidade: a vontadede saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio deJaneiro: Edições Graal, 1979.
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. TemasBásicos da Sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973.
MAAR, W. L. Adorno, semiformação e educação. Educação e Sociedade, nº 83, 2003, p. 459 - 476.
PUCCI,B. (org). Teoria crítica e educação: a questão da formação cultural naEscola de Frankfurt. Petrópolis, RJ: Vozes; São Carlos, SP: EDUFISCAR,1994.
ROUANET, Sérgio P. Teoria Crítica ePsicanálise. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986.
ZUIN, Antônio Soares; PUCCI, Bruno; NEWTON,Ramos de Oliveira. |Organizadores|. A Educação danificada: Contribuições àteoria crítica da educação. Petrópolis, RJ: Vozes; São Carlos, SP:Universidade Federal de São Carlos, 1997.
ZUIN, A. A. Educação e emancipação: Adorno,crítico da semicultura. Pro - Posições,nº 23, 1997, p. 72 - 83.
ZUIN et al. Formação cultural, desbarbarização e reeducação dos sentidos: umaeducação emancipatória. IN: Adorno: opoder educativo do pensamento crítico. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes, 1999,p. 109 - 150.
Retirado e adaptado:
0 comentários:
Postar um comentário