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sábado, 7 de maio de 2011

A Pedra

Antônio Luiz Miranda, o Professor Toninho, é meu colega e companheiro na ádua tarefa de, como reclamava Capistrano de Abreu enquanto aspirava retomar seu trabalho de pesquisa histórica interrompida por lecionar no Colégio Pedro II: “desasnar meninos”. É escritor de mão cheia, embora sua cátedra seja a “fria” matemática e não as Belas Letras. Participante de vários concursos de contos e poesias da Secretaria Municipal e Estadual de Educação, ele gentilmente me permitiu colocar aqui no blog alguns dos seus trabalhos.

***
 Por Antônio Luiz Miranda
Bispo. Não, não é apelido. Nome de família. Família rica, sim senhor. Meu bisavô teve muita grana, foi dono de um pedaço grande desse bairro, ia até a praia, pode acreditar em mim. Não sou de contar vantagens. Conheci o Papa na praia. Papa é abreviação de Papagaio, o verdadeiro apelido dele. Papagaio porque ele falava sem parar, sobre qualquer assunto. Papa porque a turma resolveu mexer com a nossa amizade. Estávamos o tempo todo juntos. O Bispo e o Papa.
Ele morava com a avó, perto da praia, mas não de frente. Moro de frente para o mar, sim senhor. Já falei: família rica. Trabalho? Não senhor, não preciso. Tenho grana. O Papa não tinha muita, mas fazia uma presença. Conhecia todo mundo. Gostava de rock, especialmente de um antigo, que cantava de vez em quando: "O Papa é pop, o papa é pop, o pop não poupa ninguém."
A gente conversava muito, quase todo dia. Ele tinha um sonho: alugar uma lancha e mergulhar em alto mar, de preferência em Arraial do Cabo perto da Ilha do Papagaio. Quando fosse, me levaria com ele. Para fotografar.
Pedia dinheiro emprestado, sim senhor, mas pagava sempre, às vezes até a mais. Desconfiava de onde vinha o dinheiro do Papa. Na verdade, não desconfiava, tinha certeza, ma não me metia nas transações dele. Nunca vi, não senhor. Perto de mim, não rolava, pode ter certeza. Na praia? Também, sim senhor, mas, principalmente, nas festas, na night. É como eu lhe disse, lá no início, o Papa conhecia todo mundo. Pop.
Quando o dinheiro começou a aparecer muito e muitofácil eu dei uma ideia a ele, mas ele não me ouviu, nem precisava. Já tinha grana suficiente para não precisar dos meus empréstimos. Negociava com o crack. Não, não era usuário. Comprava e revendia. De São Paulo, sim senhor, para as festas, para a night. Muita grana. A avó sabia. Ele não conseguia esconder nada da velha. Velha agourenta. Dizia para o Papa: "Essa pedra vai ser sua desgraça." Ele respondia cantando: "O papa é pop, o papa é pop, o pop não poupa ninguém."
Não quis comprar o apartamento de frente para o mar, embora tivesse grana suficiente para comprar dois. Gastava muito em farras. Muita mulher, sim senhor. Balada, quase toda noite. Claro que eu ia. Mas eu juro que não via nada. Nunca vi, não senhor.
Alugar a lancha era ideia fixa, mas precisava de uma folga. Os negócios exigiam muito do Papa. Viajava para São Paulo até três vezes por semana. Avião, sim senhor. Perguntava se eu já tinha visto empresário andando de ônibus. Nem na crise dos aeroportos. Ia de carro. Tinha dois. Carretas, sim senhor.  Caminhonetes do ano. Muita grana.
Tirou umas férias agora, tem uma semana, mais ou menos. Fomos de jatinho alugado até Cabo Frio. Muita mulher, sim senhor. Muita grana. Em Arraial, casa alugada, perto da praia. Geladeira cheia, despensa cheia. Casa grande, pertinho da praia. Tenho muitas fotos, sim senhor. Nunca vi nada. Na casa, não. Fui para fotografar.
Ontem o dia estava lindo, sol de cinema. O senhor viu o último 007? Pois é, um sol daqueles. Uma praia daquelas. Lancha alugada. Sei pilotar, sim senhor. Família rica, já lhe disse isso, no início. Mas quem pilotou foi o guia do passeio. Gente boa, da área. Conhece o mar. Foi na Ilha do Papagaio muitas vezes, mas nunca levou tanta mulher bonita de uma só vez. Palavra. Gente boa. O Papa estava muito feliz, realizando um sonho. Muita grana.
Antes de chegar na Ilha, cruzamos com outras lanchas e uns barquinhos de pescadores. Pode botar aí, lanchinhas. Lancha mesmo, de Verdade, era a nossa e cheia de mulher. Tenho as fotos, fui para fotografar. Na lancha não vi nada. Bebida e fruta.   Muita bebida e muitas frutas. Só isso.
De longe a Ilha já foi deixando o Papa maluco, no bom sentido. A pedra, onde os papagaios ficavam, era muito grande e muito linda. Muita grana, sim senhor. Ele estava de bom humor. "Olha essa pedra, maluco!"
Largou o copo e a gata. Primeiro o copo, depois deu um beijo na gata. Tenho as fotos, sim senhor. Realizando um sonho. Mergulhar em alto mar, em Arraial do Cabo, perto da Ilha do Papagaio. Quando o guia viu, já era. Gente boa, conhece o mar. Mal teve tempo de gritar: "Aí, não! Tem pedra!"
Subiu uma poça de sangue do mar. Tenho as fotos, sim senhor. Fui para fotografar, não fui para chorar. Algumas gatas choraram, outras fingiram. Muita mulher, muita grana. Acharam o corpo do Papa hoje de manhã, cabeça rachada na pedra. Parece que eu estou ouvindo a voz daquela velha agourenta: "Essa pedra vai ser sua desgraça." Velha desgraçada. Ele gostava de cantar, sim senhor. Rock antigo. O pop não poupa ninguém. Velha desgraçada. Posso ir embora. Sim senhor, pode ficar com as fotos, eu fui lá para fotografar. Com sua licença.

Premiado com Menção Honrosa no 13º Concurso de Poesia e Conto da FESP no Rio de Janeiro em 2008 e publicado na respectiva coletânea.

2 comentários:

  1. Fantástico! Misturar realismo e fluxo de consciência num pretenso monólogo é demais, pouca gente consegue, parabéns pro colega!

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  2. Pouca gente entende isso. Não é um monólogo. O personagem está respondendo a um inquérito policial, mas no texto só aparecem as respostas que ele dá, as perguntas ficam subentendidas e são imaginadas no contexto da narrativa. Genial!

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