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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Escrever de Pé

Esse texto me foi enviado pela querida Professora Elaine Brito e apresenta um bela reflexão sobre o ofício de escritor. 


Por Michel Tournier
(Trad: Marcelo Diniz)
             O visitante carcerário do centro de Cléricourt prevenira-me: “Todos eles fizeram muitas e grandes besteiras: terrorismo, sequestro, assalto.  Mas, nas folgas da oficina de marcenaria, leram alguns de seus livros e, agora, desejariam falar com o senhor.” Investi-me, então, de coragem e tomei a estrada para essa descida ao inferno. Não era a primeira vez que ia à prisão. Como escritor, entenda-se, e para me entreter com esses leitores particularmente aplicados, jovens detentos. Guardara dessas visitas uma impressão rascante insuportável. Lembrava-me, aliás,  de uma esplêndida tarde de junho. Após duas horas de conversa com seres humanos semelhantes a mim, retornei a meu carro dizendo comigo: “E agora, reconduzem-nos às suas celas, e você vai jantar em seu jardim com uma amiga. Por quê?”
            Confiscaram-me os documentos e, em troca, tive direito a uma grande ficha numerada. Passaram-me o detector de metais sobre as vestes. Em seguida, as portas de comando eletrônico abriram-se e se fecharam de novo atrás de mim. Atravessei caldeiras. Percorri corredores que cheiravam a caústica. Subi  escadarias protegidas por telas, “precaução contra as tentativas de suicídio”, explicou-me o guarda.
            Estavam reunidos na capela, alguns, de fato, muito jovens. Sim, haviam lido alguns de meus livros. Ouviram-me na rádio. “Trabalhamos com madeira, disse-me um deles, e queríamos saber como se faz um livro.” Evoquei minhas pesquisas preliminares, minhas viagens, depois, os longos meses de artesanato solitário em minha mesa (manuscrito = escrito à mão). Um livro é feito como qualquer móvel, por ajuste paciente de peças e pedaços. É preciso tempo e cuidado.
            - Sim, mas uma mesa, uma cadeira, sabemos a que essas coisas servem. É útil, um escritor?
            Era inevitável que a questão se impusesse. Disse-lhes que a sociedade é ameaçada pelas forças da ordem e da organização que pesam sobre ela. Todo poder –  político, policial ou administrativo – é conservador. Se nada o equilibra, há de engendrar uma sociedade bloqueada, semelhante a uma colmeia, um formigueiro, um termiteiro. Mais nada haverá do humano, ou seja, do imprevisto, do criativo entre os homens. O escritor tem por função natural acender, com seus livros, esses focos de reflexão, de contestação, de recolocar em questão a ordem estabelecida. Incansavelmente, lança apelos à revolta, evocações à desordem, porque nada há de humano sem criação, mas toda criação ameaça. Por isso é com frequência perseguido e caçado. E citei François Villon, ordinariamente mais na prisão do que fora dela; Germaine de Staël, desafiando o poder napoleônico e se recusando a escrever a única frase de submissão que lhe teria valido um favor do tirano; Victor Hugo, vinte anos exilado em sua ilhota. E Jules Vallès, e Soljenitsyne, e tantos outros.
            - É preciso escrever de pé, jamais de joelhos. É a vida um trabalho que há de ser feito sempre de pé - disse enfim
            Um deles apontou com o queixo a pequena fita vermelha de minha lapela.
            - E isto? Não é submissão?
            A Legião de Honra? Ela recompensa, a meu ver, um cidadão tranquilo, que paga seus impostos e não incomoda seus vizinhos. Meus livros, porém, escapam a toda recompensa, bem como a toda lei. E citei-lhes a fala de Erik Satie. Esse músico obscuro e pobre detestava o glorioso Maurice Ravel, a quem acusava de lhe ter roubado o lugar ao sol. Um dia, Satie soube, com estupor, que se ofereceu a cruz da Legião de Honra a Ravel, o qual a recusou. “Recusa a Legião de Honra, diz ele, mas toda sua obra a aceita.” O que foi    muito injusto. Creio, no entanto, que um artista pode aceitar para si todas as honras, desde que sua obra, ela sim, recuse-as.
            Despedimo-nos. Prometeram escrever-me. Não acreditei. Enganei-me. Fizeram melhor. Três meses depois, uma caminhonete da penitenciária de Cléricourt parava diante de minha casa. Abriram-se as portas traseiras e delas saiu um pesado púlpito de carvalho maciço, um desses altos móveis sobre os quais escreviam outrora tabeliães, mas também Balzac, Victor Hugo, Alexandre Dumas. Chegava tão fresco da oficina que ainda lhe recendiam as lascas e a cera. Uma breve mensagem o acompanhava: “Para escrever de pé. Da parte dos detentos de Cléricourt.
 (in: Le médianoche amoureux. Paris, Galllimard: 1989)




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