Por Gustavo Ioschpe
"A
missão da boa escola é ensinar as disciplinas fundamentais aos alunos, e não
tentar corrigir as desigualdades do Brasil" (Jonne Roriz/AE)
Um
dos males que assolam nossa educação é a esperança vã de pensadores e
legisladores de que uma escola que mal consegue ensinar o básico resolva todos
os problemas sociais e éticos do país. Eles criaram um sistema com um currículo
imenso, sistemas de livros didáticos em que o objetivo até das disciplinas
científicas é formar um cidadão consciente e tolerante. Responsabilizaram a
escola pela formação de condutas que vão desde a preservação do meio ambiente
até os cuidados com a saúde; instituíram cotas raciais e forçaram as escolas a
receber alunos com necessidades especiais. A agenda maximalista seria uma
maneira de sanar desigualdades e corrigir injustiças. O Brasil deveria
questionar essa agenda.
Primeira
pergunta: nossas escolas conseguem dar conta desse recado? A resposta é,
definitivamente, não. Estão aí todas as avaliações nacionais e internacionais
mostrando que a única igualdade que nosso sistema educacional conseguiu atingir
é ser igualmente péssimo. Copiamos o ponto final de programas adotados nos
países europeus sem termos passado pelo desenvolvimento histórico que lhes dá
sustentação.
Segunda
pergunta: esse desejo expansionista faz bem ou mal ao nosso sistema
educacional? Será um caso em que mirar no inatingível ajuda a ampliar o
alcançável ou, pelo contrário, a sobrecarga faz com que a carroça se mova ainda
mais devagar? Acredito que seja o último. Por várias razões. A primeira é
simplesmente que essas demandas todas tornam impossível que o sistema tenha um
foco. Perseguir todas as ideias que aparecem -- mesmo que sejam todas nobres e
excelentes -- é um erro. Infelizmente, a maioria dos nossos intelectuais e
legisladores não tem experiência administrativa, e acredita ser possível
resolver qualquer problema criando uma lei. No confronto entre intenções e
realidade, a última sempre vence. A segunda razão para preocupação é que, com
uma agenda tão extensa e bicéfala -- formar o cidadão virtuoso e o aluno de
raciocínio afiado e com conhecimentos sólidos --, sempre é possível dizer que
uma parte não está sendo cumprida porque a prioridade é a outra: o aluno é
analfabeto, mas solidário, entende? (Com a vantagem de que não há nenhum índice
para medir solidariedade.) E, finalmente, porque quando as intenções
ultrapassam a capacidade de execução do sistema o que ocorre é que o agente --
cada professor ou diretor -- vira um legislador, cabendo a ele o papel de
decidir quais partes das inatingíveis demandas vai cumprir. Uma medida que
deveria estimular a cidadania tem o efeito oposto: incentiva o desrespeito à
lei, que é a base fundamental da vida em sociedade.
As
aulas de ciências e as de português e matemática são as que vão fazer diferença
positiva na vida dos jovens quando eles chegarem ao mercado
Terceira pergunta: mesmo que todas essas nobres intenções fossem exequíveis, sua execução cumpriria as aspirações de seus mentores, construindo um país menos desigual? Eu diria que não apenas não cumpriria esses objetivos como iria na direção oposta. Deixe-me dar um exemplo com essas novas matérias inseridas no currículo do ensino médio -- música, sociologia e filosofia. A lógica que norteou a decisão é que não seria justo que os alunos pobres fossem privados dos privilégios intelec-tuais de seus colegas ricos. O que não é justo, a meu ver, é que a adição dessas disciplinas torna ainda mais difícil para os pobres se equiparar aos alunos mais ricos nas matérias que realmente vão ser decisivas em sua vida. A desigualdade entre os dois grupos tende a aumentar. A triste realidade é que, por viverem em ambientes mais letrados e com pais mais instruídos, alunos de famílias ricas precisam de menos horas de instrução para se alfabetizar. É pouco provável que um aluno rico saia da 1ª série sem estar alfabetizado, enquanto é muito provável que o aluno pobre chegue ao 3º ano nessa condição. O aluno rico pode, portanto, se dar ao luxo de ter aula de música. Para nivelar o jogo, o aluno pobre deveria estar usando essas horas para se recuperar do atraso, especialmente nas habilidades basilares: português, matemática e ciências. É o domínio dessas habilidades que lhe será cobrado quando ingressar na vida profissional. Se esses pensadores querem a escola como niveladora de diferenças, se a diferença que mais impacta a qualidade de vida das pessoas é a de renda, e se a fonte principal de renda é o trabalho, então precisamos de um sistema educacional que coloque ricos e pobres em igualdade de condições para concorrer no mercado de trabalho. O que, por sua vez, presume uma educação desigual entre pobres e ricos, fazendo com que a escola dê aos primeiros as competências intelectuais que os últimos já trazem de casa. Estou argumentando baseado em uma lógica supostamente de esquerda (digo supostamente porque, nesse caso, é transparente que as boas intenções dos revolucionários de poltrona só aprofundam as desigualdades que eles pretendem diminuir).
O
mercado de trabalho valoriza mais as habilidades cognitivas e emocionais não
porque os nossos empregadores sejam mesquinhos, mas porque, em um mercado
competitivo, precisam remunerar seus trabalhadores de acordo com sua
produtividade. Essa é a lógica inquebrantável do sistema de livre-iniciativa.
Não adianta pedir ao gerente de recursos humanos que seja “solidário” na hora
da contratação e leve em conta que os candidatos à vaga vêm de origens sociais
diferentes, porque, se o recrutador selecionar o funcionário menos competente,
o mais certo é que em breve ambos estejam solidariamente no olho da rua. Não
conheço nenhum estudo que demonstre o impacto de uma educação filosoficamente
inclusiva sobre o bem-estar das pessoas. Mas há vários estudos empíricos sobre
a desigualdade no Brasil. O que eles informam é assustador: o fator número 1 na
explicação das desigualdades de renda é, de longe, a desigualdade educacional
(disponíveis em twitter.com/gioschpe). Ao criarmos uma escola sobrecarregada
com a missão de não apenas formar o brasileiro do futuro mas corrigir as
desigualdades de 500 anos de história, nós nos asseguramos de que ela se
tornará um fracasso. A escola não pode fracassar, pois é a alavanca de salvação
do Brasil.
O
tipo de escola pública que queremos é uma discussão em última instância
política, e não técnica. É legítimo, embora estúpido, que a maioria dos
brasileiros prefira uma educação que fracasse em ensinar a tabuada mas ensine
bem a fazer um pagode. Acrescento apenas uma indispensável condição: que a
população seja informada, de modo claro e honesto, sobre as consequências de
suas escolhas. Quais as perdas e os ganhos de cada caminho. O que é, aí sim,
antidemocrático e desonesto é criar a ilusão de que não precisamos fazer
escolhas, de que podemos tudo e de que conseguiremos obter tudo ao mesmo tempo,
agora. Infelizmente, é exatamente isso que vem sendo tentado. Nossas lideranças
se valem do abissal desconhecimento da maioria da população sobre o que é uma
educação de excelência para vender-lhe a possibilidade do paraíso terreno em
que professores despreparados podem formar o novo homem e o profissional de
sucesso. Essa utopia, como todas as outras, acaba em decepção e atraso. Essa
pretensa revolução, como todas as outras, termina beneficiando apenas os
burocratas que a implementam.
Retirado
de:
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/a-utopia-sufoca-a-educacao-de-qualidade
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