Eu nunca disse
que deus não existe.
Por Alexey Magnavita
Eu
disse e repito, isso sim, que não acredito em sua existência. É diferente. Há
diferença entre afirmar inexistência e não crer na existência, mas nem todo
mundo entende a enorme diferença entre estas duas coisas. É muito difícil
afirmar a inexistência de uma coisa, o que nos resta é crer ou não crer, a
partir dos critérios que elegemos. A minha descrença, entretanto, precisa ser
melhor pontuada: eu não creio, de jeito nenhum, na concepção pessoal que a
maioria das pessoas e religiões têm de deus. Sendo direto: fizeram de deus um
gênio da lâmpada de Aladin, com quem se estabelece relação comercial. Faço
promessas, e ele me atende. Bajulo a divindade, e ela cura minhas doencas. No
catolicismo isso toma uma forma até mais simpática, pseudomonoteísta, em que temos
mais santos a ser venerados [e para quem podemos pedir coisas] do que os
antigos gregos tinham deuses. Mas ao constatar isso, não sinto o outro [meu
semelhante, que assim age] como ridículo, tolo ou estúpido. Compreendo
perfeitamente o conforto e bem estar que alguém pode sentir ao rezar para uma
imagem, ou para várias, entendo o sentimento de segurança que a pessoa tem ao
dialogar internamente com aquilo que ela mesma chama de “força superior”.
Comigo é diferente. Eu reconheço uma força superior em um monte de coisas: no
presidente de um país, numa estrela supernova, na Constituição, na gravidade,
na polícia. Há, evidentemente, coisas que são mais poderosas do que a minha
vontade. A questão é que, no meu caso, nenhuma dessas coisas é metafísica.
Mas
seria possível um mundo em que pessoas que crêem em coisas diferentes pudessem
coexistir? Eu gosto de apostar no sim!
Por
exemplo: compreendo perfeitamente que, quando alguém me diz “deus te abençoe”,
é a forma que a pessoa usa para dizer que deseja o meu bem. Respondo
“obrigado”, todas as vezes. Recentemente, a namorada ateia de um amigo ateu
ficou seriamente doente. Em seu Facebook, vi diversas manifestações de
solidariedade, e em muitas delas as pessoas diziam que estavam orando por ela.
Em momento algum, vi meu amigo reclamando do que alguns ateus mais indignados
chamam de “tolice da oração”. Eu o via, sim, agradecer. E não, ele não se
tornou crente, ele estava sendo educado e, pelo que conheço, sinceramente grato
pela cortesia das pessoas. Sei como é isso. Se adoeço e alguém diz que ora por
minha recuperação, sinto gratidão, pois reconheço ser esta uma forma de me
desejar o bem. Não, não acredito que a oração dos outros vá curar minhas
eventuais doenças. Acredito, isso sim, que a oração faz bem a quem sente fé
neste ato. Eu extraio bem estar de outros procedimentos: ouvir música e tomar
um banho quente quase que invariavelmente me faz ficar melhor de qualquer mal
estar.
Há
manifestações de intolerância tanto em crentes quanto em ateus [embora,
honestamente, eu as veja com mais recorrência entre crentes]. Darei um exemplo
de ignorância nos dois casos:
Anos
atrás, eu e um conhecido ganhamos um prêmio em dinheiro num jogo televisivo de
perguntas e respostas. Meu conhecido é ateu declarado. Depois que ele ganhou o
prêmio, choveram mensagens em sua página do Orkut, com argumentos do tipo “como
você consegue não acreditar em deus depois dessa coisa maravilhosa que te
ocorreu? Deixe de ser ignorante!”. Quer dizer: deus existe porque meu amigo
soube responder corretamente as perguntas de um show de TV? Deus existe porque
ele, meu amigo, foi privilegiado? Isso não me parece crer em deus. Me parece
ser uma crença no gênio de Aladin.
Certa
feita um padre muito meu amigo ficou indignado ao ver na TV um pagodeiro “agradecer
a deus” pela venda de milhões de CDs. Não é apenas porque parecia uma heresia
supor que deus se dispôs a auxiliar na venda de CDs de músicas de gosto
sofrível. A indignação de meu amigo padre era a mesma que eu, em minha
descrença, tinha: as pessoas pegam um conceito grandioso [deus] e o convertem
egocentricamente numa força mágica que existe para nos servir, nos dando
carros, casas e ajudando a vender CDs de pagode. Note: não é diferente de
imaginar que deus curou o seu câncer porque você lhe fez promessas. Se assim
fosse, não seria deus, seria um comerciante cósmico que vive à base de
venerações. Pergunta: por que curou o SEU câncer, mas não o de outra pessoa?
Não responda que é porque VOCÊ tem fé e a outra pessoa não, pois tal resposta é
totalmente falaciosa. Ela torna deus exatamente o que eu disse: um comerciante
que precisa de veneração para escolher uns em detrimento de outros. Se você
pensa assim, adivinhe só: o seu conceito religioso não é nada diferente do de
povos que você chama de “primitivos”.
Além
disso, acreditar que deus escolhe uns em decorrência de promessas e fé em
detrimento de outros pode ser decepcionante. Muitas das pessoas que sofrem
desgraças abomináveis são cristãs fervorosas. Lembro de uma senhora em Salvador
que vivia em função da caridade, era católica devota, e morreu espancada depois
de ser estuprada num estacionamento. E lembro de ateus que tiveram vidas
felizes e morreram confortavelmente.
Já
vi demonstrações de ignorância ateista [felizmente, foram poucas, comparadas ao
nível de ódio que vejo em fanáticos religiosos]. Certa feita, fui criticado por
um senhor que diz representar ateus. A razão da crítica? Ele descobriu que eu,
no enterro de um amigo, dei as mãos para os pais dele e rezei o Ave Maria. Ora,
rezei mesmo! E rezaria de novo! Se o fiz, não foi por crer na Virgem Maria, mas
por estar num contexto em que tal ritual estava sendo realizado, eu ali estava
e quis participar de um ato que, sei, confortaria – ainda que minimamente – os
pais do meu amigo. Fui acusado de “trair meus ideais”. Mas que ideais? Eu não
tenho “ideais antireligiosos”! Eu estava num ambiente religioso. Rezar o Ave
Maria, para mim, tinha o mesmo significado de declamar uma poesia qualquer. E
ser gentil com aquelas pessoas, naquele momento, era para mim muito mais
importante do que bater pé e dizer:
-
Desculpe, não vou dar as mãos para vocês e não vou rezar o Ave Maria porque
vocês sabem, né? Não acredito nisso.
É
preciso muito cuidado quando falamos em deus. O que significa esta palavra?
Numa palestra na Escócia, Carl Sagan foi interpelado por um ouvinte que lhe
disse “Deus existe e é muito fácil de perceber. Deus é amor, e o amor existe”.
A frase é bonita, mas eu acho a resposta de Sagan muito melhor: prefiro chamar
o amor de amor, e deus de deus. Chamar uma coisa de outra não passa de jogo de
palavras, e admito que este tipo de malabarismo causa muito impacto e comove as
pessoas. Eu acredito no amor. Mas dizem de deus que ele é onipresente e,
lamento dizer, o amor não é onipresente. Há situações e circunstâncias em que
não há amor nenhum presente, a não ser que você seja adepto do pensamento
agostiniano que insiste em dizer que “há, sim, mas somos incapazes de ver”.
Este argumento de Agostinho demanda fé, e aqui entramos num círculo vicioso que
não é diferente do conto da roupa inexistente que deixava o rei nu, mas que –
em tese – apenas os honestos podiam vê-la, de modo que todo mundo fazia de
conta que via, para não passar por desonesto. Mas o rei estava ali, peladão.
Perdão, mas se uma criança é estuprada, eu não vejo amor algum presente e me
recuso a dizer que “deus tem desígnios que desconhecemos”. Acho ofensivo, acho
de uma resignação repugnante. Tampouco as outras explicações metafísicas me
atraem: karma expiado de vidas passadas me parece a mais enrolada desculpa para
aceitar as misérias desta vida. Não serve para mim, lamento.
Espinosa,
por exemplo, dizia que “deus é a natureza”. Notem que ele foi excomungado por
dizê-lo, e foi considerado ateu por isso, mesmo falando que deus existe. É porque
“ateu”, durante grande parte da história, significou simplesmente “aquele que
não acredita em deus do mesmo jeito que eu acredito”. Bem, devo dizer que se
deus é a natureza, como dizia Espinosa, então eu acredito em deus. Mas ainda
prefiro o posicionamento de Sagan: chamemos a natureza de “natureza”. Já está
de bom tamanho.
Notem
que a todo momento estou falando de ideias que sei que existem, e a todo
momento digo que elas não servem para mim. Estou ciente de que muitas pessoas
crêem nestas ideias, inclusive alguns amigos muito queridos meus. Eles sabem
que não os acho ridículos ou burros. E eles também não me infernizam com a
obsessiva insistência de que eu devo crer, aceitar tais ideias.
Algumas
pessoas se angustiam muito com a possibilidade da inexistência de deus. Dizem
que se nada tem sentido, não faz sentido viver. Discordo. Na verdade, esta é a
minha mais profunda alegria: se nada tem um sentido a priori, eu – como ser
racional – tenho o dever ético de construir sentidos. Se não existe um “bem supremo
metafísico”, nós – na condição de “animais inteligentes” – temos a oportunidade
de discernir o certo do errado [nem sempre é tarefa fácil], e procurar fazer
deste mundo um lugar que valha a pena existir. E a longa jornada começa com a
recusa em mergulhar no sentimento do ódio pelo outro que crê [ou não crê] em
coisas diferentes das suas.
Retirado
de:
0 comentários:
Postar um comentário