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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Reflexões sobre a existência de Deus

Eu nunca disse que deus não existe.
Por Alexey Magnavita
Eu disse e repito, isso sim, que não acredito em sua existência. É diferente. Há diferença entre afirmar inexistência e não crer na existência, mas nem todo mundo entende a enorme diferença entre estas duas coisas. É muito difícil afirmar a inexistência de uma coisa, o que nos resta é crer ou não crer, a partir dos critérios que elegemos. A minha descrença, entretanto, precisa ser melhor pontuada: eu não creio, de jeito nenhum, na concepção pessoal que a maioria das pessoas e religiões têm de deus. Sendo direto: fizeram de deus um gênio da lâmpada de Aladin, com quem se estabelece relação comercial. Faço promessas, e ele me atende. Bajulo a divindade, e ela cura minhas doencas. No catolicismo isso toma uma forma até mais simpática, pseudomonoteísta, em que temos mais santos a ser venerados [e para quem podemos pedir coisas] do que os antigos gregos tinham deuses. Mas ao constatar isso, não sinto o outro [meu semelhante, que assim age] como ridículo, tolo ou estúpido. Compreendo perfeitamente o conforto e bem estar que alguém pode sentir ao rezar para uma imagem, ou para várias, entendo o sentimento de segurança que a pessoa tem ao dialogar internamente com aquilo que ela mesma chama de “força superior”. Comigo é diferente. Eu reconheço uma força superior em um monte de coisas: no presidente de um país, numa estrela supernova, na Constituição, na gravidade, na polícia. Há, evidentemente, coisas que são mais poderosas do que a minha vontade. A questão é que, no meu caso, nenhuma dessas coisas é metafísica.

Mas seria possível um mundo em que pessoas que crêem em coisas diferentes pudessem coexistir? Eu gosto de apostar no sim!

Por exemplo: compreendo perfeitamente que, quando alguém me diz “deus te abençoe”, é a forma que a pessoa usa para dizer que deseja o meu bem. Respondo “obrigado”, todas as vezes. Recentemente, a namorada ateia de um amigo ateu ficou seriamente doente. Em seu Facebook, vi diversas manifestações de solidariedade, e em muitas delas as pessoas diziam que estavam orando por ela. Em momento algum, vi meu amigo reclamando do que alguns ateus mais indignados chamam de “tolice da oração”. Eu o via, sim, agradecer. E não, ele não se tornou crente, ele estava sendo educado e, pelo que conheço, sinceramente grato pela cortesia das pessoas. Sei como é isso. Se adoeço e alguém diz que ora por minha recuperação, sinto gratidão, pois reconheço ser esta uma forma de me desejar o bem. Não, não acredito que a oração dos outros vá curar minhas eventuais doenças. Acredito, isso sim, que a oração faz bem a quem sente fé neste ato. Eu extraio bem estar de outros procedimentos: ouvir música e tomar um banho quente quase que invariavelmente me faz ficar melhor de qualquer mal estar.

Há manifestações de intolerância tanto em crentes quanto em ateus [embora, honestamente, eu as veja com mais recorrência entre crentes]. Darei um exemplo de ignorância nos dois casos:

Anos atrás, eu e um conhecido ganhamos um prêmio em dinheiro num jogo televisivo de perguntas e respostas. Meu conhecido é ateu declarado. Depois que ele ganhou o prêmio, choveram mensagens em sua página do Orkut, com argumentos do tipo “como você consegue não acreditar em deus depois dessa coisa maravilhosa que te ocorreu? Deixe de ser ignorante!”. Quer dizer: deus existe porque meu amigo soube responder corretamente as perguntas de um show de TV? Deus existe porque ele, meu amigo, foi privilegiado? Isso não me parece crer em deus. Me parece ser uma crença no gênio de Aladin.

Certa feita um padre muito meu amigo ficou indignado ao ver na TV um pagodeiro “agradecer a deus” pela venda de milhões de CDs. Não é apenas porque parecia uma heresia supor que deus se dispôs a auxiliar na venda de CDs de músicas de gosto sofrível. A indignação de meu amigo padre era a mesma que eu, em minha descrença, tinha: as pessoas pegam um conceito grandioso [deus] e o convertem egocentricamente numa força mágica que existe para nos servir, nos dando carros, casas e ajudando a vender CDs de pagode. Note: não é diferente de imaginar que deus curou o seu câncer porque você lhe fez promessas. Se assim fosse, não seria deus, seria um comerciante cósmico que vive à base de venerações. Pergunta: por que curou o SEU câncer, mas não o de outra pessoa? Não responda que é porque VOCÊ tem fé e a outra pessoa não, pois tal resposta é totalmente falaciosa. Ela torna deus exatamente o que eu disse: um comerciante que precisa de veneração para escolher uns em detrimento de outros. Se você pensa assim, adivinhe só: o seu conceito religioso não é nada diferente do de povos que você chama de “primitivos”.

Além disso, acreditar que deus escolhe uns em decorrência de promessas e fé em detrimento de outros pode ser decepcionante. Muitas das pessoas que sofrem desgraças abomináveis são cristãs fervorosas. Lembro de uma senhora em Salvador que vivia em função da caridade, era católica devota, e morreu espancada depois de ser estuprada num estacionamento. E lembro de ateus que tiveram vidas felizes e morreram confortavelmente.

Já vi demonstrações de ignorância ateista [felizmente, foram poucas, comparadas ao nível de ódio que vejo em fanáticos religiosos]. Certa feita, fui criticado por um senhor que diz representar ateus. A razão da crítica? Ele descobriu que eu, no enterro de um amigo, dei as mãos para os pais dele e rezei o Ave Maria. Ora, rezei mesmo! E rezaria de novo! Se o fiz, não foi por crer na Virgem Maria, mas por estar num contexto em que tal ritual estava sendo realizado, eu ali estava e quis participar de um ato que, sei, confortaria – ainda que minimamente – os pais do meu amigo. Fui acusado de “trair meus ideais”. Mas que ideais? Eu não tenho “ideais antireligiosos”! Eu estava num ambiente religioso. Rezar o Ave Maria, para mim, tinha o mesmo significado de declamar uma poesia qualquer. E ser gentil com aquelas pessoas, naquele momento, era para mim muito mais importante do que bater pé e dizer:

- Desculpe, não vou dar as mãos para vocês e não vou rezar o Ave Maria porque vocês sabem, né? Não acredito nisso.

É preciso muito cuidado quando falamos em deus. O que significa esta palavra? Numa palestra na Escócia, Carl Sagan foi interpelado por um ouvinte que lhe disse “Deus existe e é muito fácil de perceber. Deus é amor, e o amor existe”. A frase é bonita, mas eu acho a resposta de Sagan muito melhor: prefiro chamar o amor de amor, e deus de deus. Chamar uma coisa de outra não passa de jogo de palavras, e admito que este tipo de malabarismo causa muito impacto e comove as pessoas. Eu acredito no amor. Mas dizem de deus que ele é onipresente e, lamento dizer, o amor não é onipresente. Há situações e circunstâncias em que não há amor nenhum presente, a não ser que você seja adepto do pensamento agostiniano que insiste em dizer que “há, sim, mas somos incapazes de ver”. Este argumento de Agostinho demanda fé, e aqui entramos num círculo vicioso que não é diferente do conto da roupa inexistente que deixava o rei nu, mas que – em tese – apenas os honestos podiam vê-la, de modo que todo mundo fazia de conta que via, para não passar por desonesto. Mas o rei estava ali, peladão. Perdão, mas se uma criança é estuprada, eu não vejo amor algum presente e me recuso a dizer que “deus tem desígnios que desconhecemos”. Acho ofensivo, acho de uma resignação repugnante. Tampouco as outras explicações metafísicas me atraem: karma expiado de vidas passadas me parece a mais enrolada desculpa para aceitar as misérias desta vida. Não serve para mim, lamento.

Espinosa, por exemplo, dizia que “deus é a natureza”. Notem que ele foi excomungado por dizê-lo, e foi considerado ateu por isso, mesmo falando que deus existe. É porque “ateu”, durante grande parte da história, significou simplesmente “aquele que não acredita em deus do mesmo jeito que eu acredito”. Bem, devo dizer que se deus é a natureza, como dizia Espinosa, então eu acredito em deus. Mas ainda prefiro o posicionamento de Sagan: chamemos a natureza de “natureza”. Já está de bom tamanho.

Notem que a todo momento estou falando de ideias que sei que existem, e a todo momento digo que elas não servem para mim. Estou ciente de que muitas pessoas crêem nestas ideias, inclusive alguns amigos muito queridos meus. Eles sabem que não os acho ridículos ou burros. E eles também não me infernizam com a obsessiva insistência de que eu devo crer, aceitar tais ideias.

Algumas pessoas se angustiam muito com a possibilidade da inexistência de deus. Dizem que se nada tem sentido, não faz sentido viver. Discordo. Na verdade, esta é a minha mais profunda alegria: se nada tem um sentido a priori, eu – como ser racional – tenho o dever ético de construir sentidos. Se não existe um “bem supremo metafísico”, nós – na condição de “animais inteligentes” – temos a oportunidade de discernir o certo do errado [nem sempre é tarefa fácil], e procurar fazer deste mundo um lugar que valha a pena existir. E a longa jornada começa com a recusa em mergulhar no sentimento do ódio pelo outro que crê [ou não crê] em coisas diferentes das suas.

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