O
símbolo da inteligência é a antena do caracol “com a visão tacteante”, graças à
qual, a acreditar em Méfistófeles,38 ele é também capaz de cheirar. Diante de
um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protector do
corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará
sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente,
ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará.
Em seus começos, a vida intelectual é infinitamente delicada. O sentido do
caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu
funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo
medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis.
Os
animais mais evoluídos devem o que são à sua maior liberdade; sua existência
mostra que, outrora, suas antenas foram dirigidas em novas direcções e não
foram retiradas. Cada uma de suas espécies é o monumento de inumeráveis outras
espécies cuja tentativa de evoluir se frustrou desde o início; que sucumbiram
ao medo tão logo uma de suas antenas se moveu na direcção de sua evolução. A
repressão das possibilidades pela resistência imediata da natureza ambiente
prolongou-se interiormente, com o atrofiamento dos órgãos pelo medo. Cada olhar
de curiosidade que o animal lança anuncia uma forma nova dos seres vivos que
poderia surgir da espécie determinada a que pertence o ser individual. Não é
apenas seu carácter determinado que o mantém sob a guarda de seu antigo ser; a
força que vem de encontro a esse olhar é uma força cuja existência remonta a
milhões de anos: foi ela que o fixou desde sempre em sua etapa evolutiva e
impede, numa resistência sempre renovada, toda tentativa de ultrapassar essa
etapa. Esse primeiro olhar tacteante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás
de si a boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo
sido definitivamente afugentado da direcção que queria tomar, o animal torna-se
tímido e burro. A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de
desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice
parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez
de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a
inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas. As perguntas sem
fim da criança já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para a
qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente.
A
repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem
parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando
o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada, por
exemplo, quando o leão em sua jaula não pára de ir e vir, e o neurótico repete
a reacção de defesa, que já se mostrara inútil. Se as repetições já se
reduziram na criança, ou se a inibição foi excessivamente brutal, a atenção
pode se voltar numa outra direcção, a criança ficou mais rica de experiências,
como se diz, mas frequentemente, no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma
cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou
insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar
caracteres, duros e capazes, podem tornar as pessoas burras – no sentido de uma
manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência, quando ficam apenas
estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem
um câncer em seu interior. A violência sofrida transforma a boa vontade em má.
E não apenas a pergunta proibida, mas também a condenação da imitação, do
choro, da brincadeira arriscada, pode provocar essas cicatrizes. Como as
espécies da série animal, assim também as etapas intelectuais no interior do
género humano e até mesmo os pontos cegos no interior de um indivíduo designam
as etapas em que a esperança se imobilizou e que são o testemunho petrificado
do facto de que todo ser vivo se encontra sob uma força que domina.
DIALÉTICA
DO ESCLARECIMENTO - Fragmentos Filosóficos - 1947
(Dialektik
der Aufklärung – Philosophische Fragmente) - Theodor W. Adorno e Max Horkheimer
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