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domingo, 29 de janeiro de 2012

Epicuro e as Reflexões Sobre a Vida Moderna

No início do século II d.C., no mercado principal de Enoanda, cidade de 10 mil habitantes no sudoeste da Ásia Menor, foi erigida uma enorme muralha de oitenta metros de largura e quase quatro metros de altura, com inscrições baseadas na filosofia de Epicuro, e cuja finalidade era atrair a atenção dos compradores. Era uma espécie de alerta:

“Comidas e bebidas requintadas… de modo algum libertam do mal ou proporcionam a saúde da carne. Deve-se atribuir à riqueza excessiva o mesmo grau de inutilidade que representa acrescentar água a um recipiente que já estava prestes a transbordar. Os verdadeiros valores não são gerados por teatros e termas, perfumes e essências… mas pela ciência natural.”

O muro foi pago por Diógenes, um dos homens mais ricos de Enoanda, que desejava, 4 séculos após Epicuro e seus amigos terem fundado o Jardim de Atenas, compartilhar os segredos da felicidade que ele havia descoberto na filosofia de Epicuro.

O antigo filósofo cuja maior parte das obras se perdeu foi bem mais incompreendido – ou analisado de forma superficial – do que compreendido. Dizem que tudo que ensinava era a busca pelo prazer (hedonismo) e o materialismo (atomismo), mas é preciso desconhecê-lo profundamente para tais tipos de hiper-simplificações de seu pensamento.

Sobre a busca do prazer, Epicuro em realidade afirmava que “o homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que é jovem ou velho demais para ser feliz.” Longe de ensinar uma busca desenfreada por prazeres mundanos, ele defendia que uma vida equilibrada e na companhia de boas amizades era todo o necessário para a felicidade – neste caso, pão e água eram suficientes… “De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade… alimentar-se sem a companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.”

Poucos foram aqueles que, ao longo da história, enxergaram o quanto a filosofia de Epicuro sempre se fez necessária para nos afastar das tentações e desejos inúteis da vida em sociedade. Ele separava os desejos da seguinte forma:

O que é essencial para a felicidade:

Natural e necessário   Natural mas desnecessário     Nem natural nem necessário
Amigos, Liberdade,    Palacete, Terma privativa,      Fama, Poder, Status
Reflexão, Casa,          Banquetes, Empregados,
Comida, Roupas,        Peixe, Carne
Amigos,

Dizem também que Epicuro era ateu. Mas de fato tudo o que defendia era que os deuses viviam em uma realidade muito superior a mundana, de modo que provavelmente não estariam preocupados com nossos afazeres, e nem era necessário que nos afligíssemos com eles ou que preparássemos rituais e oferendas para aplacar sua ira ou barganhar por favores sobrenaturais.

Para Epicuro, isso tudo era fonte de angústias desnecessárias… Porque se preocupar com política, com os deuses, com o acúmulo de riquezas ou com a morte, se o prazer da vida está exatamente em compartilhá-la com os amigos, em não viver com mais do que o necessário, e na constante reflexão sobre a natureza infinita do Cosmos?

Em sua recusa em se preocupar com um panteão de deuses com seus próprios afazeres e em sua exaltação da felicidade que advém da vida harmoniosa, em contato constante com os amigos e a natureza, Epicuro era bem mais religioso que a maioria dos eclesiásticos – e bem mais monoteísta que a maioria dos religiosos que dizem seguir somente a um único Deus, mas que ao fim do dia seguem a vários…

Pensemos nos dias atuais, em que a maior religião e o maior deus passam desapercebidos da grande maioria, embora quase todos acabem rezando para ele: o deus do consumo. Seus evangelizadores estão em cada canal de TV paga ou aberta, sua bíblia é ensinada desde as “orientações vocacionais” das escolas aos “discursos sobre a dura realidade da vida e sobre como um bom salário é mais importante do que tudo”… Andando pelas ruas, vemos suas orações expostas em outdoors e páginas de jornal. Ele é tão poderoso que abocanhou até mesmo o tempo – “tempo é dinheiro, eu sou o tempo, eu sou o seu deus!”

Ao contrário do deus de Epicuro, que podia ser encontrado em qualquer grama de jardim, nalgum galho partido ou nos sorrisos dos amigos, este deus é feito sobretudo de coisas sem vida e de desejos desenfreados; muito embora possa parecer “onipresente” em nosso dia a dia – uma roupa de grife, um terno, um celular, um videogame, um carro, um iate… Ele nunca se cansa, e o tempo é a prova:

Porcentagem dos norte-americanos que declararam os seguintes itens como necessários

                                                       1970               2000
Segundo carro                                   20%                 59%
Segunda televisão                              3%                   45%
Mais de um telefone                           2%                   78%
Ar-condicionado no carro                  11%                 65%
Ar-condicionado em casa                  22%                 70%
 Lava-louças                                       8%                   44%

Hoje em dia vivemos correndo, “utilizando” todas as horas do dia. Comendo em fast-foods e tendo relacionamentos no estilo fast – simples, rápidos, indolores, muitas vezes “anestesiados”. Se nos angustiamos com a vida ou se caímos em depressão, oramos também ao grande profeta do deus do consumo – o guardião dos comprimidos em seu manto de tarja preta… Com tudo isso economizamos bastante tempo. Tempo para…?

Não era esse tipo de religião que Epicuro professava. Ele preferia simplesmente ser livre, talvez por reconhecer que perto da imensidão da natureza, suas angústias e desejos eram como poeira e folhas espalhadas pelo vento em seu jardim.

Quaisquer que sejam as diferenças entre as pessoas e seus desejos e angústias, elas não são nada perto das diferenças entre os seres humanos mais poderosos e os grandes desertos, as altas montanhas, geleiras e oceanos, a luz das estrelas. Existem fenômenos naturais tão grandes que tornam as variações entre duas pessoas quaisquer ridiculamente pequenas. Ao passar um tempo em amplos espaços, a consciência de nossa própria insignificância na hierarquia social pode se transformar na consciência reconfortante da insignificância de todos os seres humanos no Cosmos.

Podemos superar o sentimento de que somos insignificantes não nos tornando mais importantes ou desejando fama, poder ou status, mas reconhecendo a insignificância relativa de todos. Nossa preocupação com quem é alguns milímetros mais alto do que nós pode dar lugar a uma reverência a coisas infinitamente maiores que nós, uma força que podemos ser levados a chamar de natureza, vida, infinito, eternidade – ou simplesmente Deus.

Mas, sobretudo, quem mantém os pés no chão florido das amizades duradouras e a mente na imensidão estelar do Cosmos, este não poderá jamais ser seduzido pelas efêmeras promessas dos arautos do deus do consumo, tampouco necessitará recorrer a tratar da angústia com comprimidos (*). Este tem a seu lado o amor ao saber, as reflexões diárias, a liberdade de pensamento: este encara toda angústia e todo desejo por si mesmo, ou talvez com a ajuda de amigos. Seres reais, não imaginários nem inanimados – aí está o deus de Epicuro. Onde está o seu deus?

***

(*) Nota: certas doenças necessitam de medicação, e é excelente dispor da medicina atual para tratá-las. O que não podemos é usar comprimidos como muletas – nesse sentido nossos comprimidos serão nossos deuses, e nós os seus fantoches. Por outro lado, também é necessário “cortar o mal pela raiz”: a filosofia nos ajuda a evitar a necessidade de comprimidos, evitando antes a doença.

Leitura recomendada: “As consolações da filosofia” e “Desejo de status” – ambos de autoria de Alain de Botton e publicados no Brasil pela Editora Rocco. As citações de Epicuro e Diógenes foram retiradas do primeiro.

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