Faz algum tempo que postei uma série de textos aqui, aqui e aqui, que especulavam sobre o excesso de proteção a que os jovens dos dias de hoje parecem estar sendo submetidos por pais que não admitem que seus filhos sofram (talvez por culpa da ausência forçada pelo mundo capitalista/consumista em que vivemos) e que, ao contrário, despreparam seus rebentos para viver no universo predador (nas palavras de Dom Juan Matos, mestre de Carlos Castaneda) que nos rodeia. o texto abaixo, embora de feitio lírico me parece apontar para isso também.
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O MENINO QUE QUERIA SER BEETHOVEN
Por Flavio Migliaccio
O garotinho tinha tudo para ser um grande músico. Como Beethoven. E eu o conheci quando ainda dava seus primeiros passos numa cidadezinha no interior do estado do Rio. Ele tinha um avô que era descendente de artistas, pintores e escultores, exatamente como o grande músico alemão. Quanto ao seu pai, cantava no Coral Santa Cecília, que sempre fazia apresentações na igrejinha da cidade, e foi dele que o menino recebeu suas primeiras lições de música, revelando-se um talento excepcional. Como Beethoven.
O garoto era um verdadeiro prodígio no piano e já estava quase compondo sua primeira peça musical quando um cachaceiro passou a parar seu carro, todas as tardes, bem debaixo de sua janela. Além de deixar o veículo ligado, o miserável conservava o porta-malas do carro aberto, orgulhoso por ter instalado nele uma potente caixa de som que não parava de berrar músicas horrorosas. O pai, coitado, não quis que o filho perdesse seus dotes artísticos e resolveu se mudar, mas lamentavelmente, a família foi parar num canto da pracinha onde sempre aparecia um grupo de artistas peruanos entoando suas músicas folclóricas, numa profusão de gaitas de madeira, tambores e trombetas feitas com conchas. Era um grupo simpático e talentoso, mas o garoto jamais poderia aprimorar seus dotes artísticos ouvindo as tais melodias o dia todo.
A família, então, resolveu mudar de casa mais uma vez e foi parar num lugar distante da praça. Mas não adiantou: a cidade estava crescendo e os carros de som passaram a se proliferar. Eram casas comerciais anunciando tomates, calçados, tecidos... Tudo acompanhado pelas riquezas melódicas das músicas modernas.
A família passou a conservar as janelas da casa bem fechadas, mas o barulho foi aumentando cada vez mais e a "cultura da propaganda" passou a dominar a cidade: cada loja comercial passou a ter o seu sistema de som, com suas próprias músicas, seus próprios arautos. Para piorar, a juventude da cidade passou a se divertir transformando suas motos em verdadeiras máquinas de fazer barulho, acabando com as andorinhas da praça de onde vinham os únicos sons que davam inspiração ao jovem artista. Por onde andava, o menino era sempre violentado por um som qualquer. Quando não era o acorde em fá maior de um amolador de facas, era o dó sustenido do apito de um guarda de trânsito insistindo para os carros se apressarem. Um dia. passados muitos anos. eu encontrei o garoto num trabalho pesado na lavoura, cortando cachos de bananas. Puxei conversa e tive certeza de que era o mesmo menino que não tinha conseguido virar músico. Não toquei no assunto para não constrangê-lo. esbocei apenas um triste sorriso, quando ele desviou o olhar, atraído por um som longínquo vindo de um sabiá laranjeira. E vi seus olhos brilharem, parecendo identificar, naquele insignificante som vindo de um pássaro, restos de uma singela melodia que ele não conseguiu compor.
Reprodução da matéria da revista de domingo de o globo de 09 de outubro de 2011.
Retirado de site:
Vi primeiro enviado pelo amigo Fernando Alves dos Santos
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