Por Daniel Lopes
Os tempos são caóticos. Sempre foram. Todo ser humano, em sua própria época, tem essa sensação de fim e de mediocridade. É característico. O passado, o que não vivemos, tem de fato um sabor mais romântico; no fundo, entretanto, os ritos são os mesmos. O enredo é um só. Não existem dois. Mudam-se, se é que se muda, os atores e mais nada. A história se movimenta em círculos.
Objetividade é mito. Qualquer ciência, mesmo as ditas exatas, são subjetivas, por isso, só posso falar por mim. Meu foco é a Arte, mais especificamente a Literatura e, em alguns momentos, a pintura. O que sinto em relação, é que vivemos um retorno ao cientificismo racionalista do século XIX. Peguemos os escritores, só para exemplificar, a maioria deles, por não entender que estilo é ritmo, são econômicos. O ser humano, os personagens, são vistos como seres meramente biológicos. Qualquer espécie de construção psicológica ou poética mais profunda é analisada com desdém e atirada imediatamente ao limbo por críticos e escritores analfabetos. Literatura é investigação profunda da condição humana. Querem arrancar o literário da Literatura. Nada de novo sob o Sol. Allain Robbe-Grillet propôs a mesma coisa cinqüenta anos atrás. Um tédio.
Num cenário assim, o gosto pelo oculto e pelo místico é considerado a pior das aberrações. Como assim? – Eles gritam – Então este idiota não sabe que estamos no século XXI e que desvendamos códigos genéticos? E estamos a poucos passos de nos tornarmos imortais? E construímos maravilhas tecnológicas?
Sei. Conheço essa história. Entretanto, as maiores obras literárias e pictóricas do ocidente são impregnadas de misticismo. O trabalho de Shakespeare, centro do cânone ocidental, é repleto de feitiços, magias e fantasmas. Dante escreveu a Divina Comédia, não preciso dizer mais nada... E temos John Milton, com Paraíso Perdido... E temos Goethe com Fausto... E San Juan de la Cruz... E Whitman... E Pessoa... E Blake... E, no Brasil, Guimarães Rosa com a mais poderosa obra já produzida em nosso país, Grande Sertão: Veredas. Literatura e Religião são raízes que bebem do mesmo lençol freático. Quanto à pintura, vou dizer só alguns nomes para não me estender além da conta: Da Vinci... O próprio Blake... Odilon Redon... Dalí... Miró... Xul Solar e por aí vai.
- Mas estamos no século XXI! – Repetem, não se cansam nunca – E, com o desenvolvimento da ciência que temos hoje, não são mais críveis estes contos da carochinha e a ninguém fascina mais tantos Cristos, e ceias, e imagens sacras! Sei. Esses defensores da objetividade têm visão manca. Enxergam só um dos pólos da esfera. Imaginam o homem um fenômeno puramente biológico. Mas o homem, ao contrário do que acreditam esses darwinistas estrábicos, é um fenômeno biológico e cultural, conseqüência de formações neurológicas e psíquicas. Aliás, da análise do confronto entre essas forças antagônicas surgiu um dos melhores livros de Freud: O mal-estar na cultura.
Creio que o homem, da mesma maneira que carrega uma herança biológica e genética, também carrega, desde os tempos escuros das cavernas, uma imensa herança cultural e, ainda mais importante, psíquica. Tal herança habita as profundezas do ser, feito o magma nas profundezas do planeta. Justamente por ser tão profunda, não é objetiva ou racional, mas simbólica. A imagem do falcão tem a mesma representação nos rituais de índios norteamericanos e nas cerimônias dos esquimós da Sibéria. Jung chamou tal herança de inconsciente coletivo. Freud chamou de supereu. A maioria dos povos ditos primitivos chama apenas de mundo dos espíritos. Para Mikao Usui era a energia Reiki. Schopenhauer interpretou-a como uma Natureza mística, onde a espécie guarda a essência eterna, imutável, transcendente de todos os seres. Sinceramente, todos estão falando da mesma coisa.
O acesso a este mundo de símbolos se dá, de maneira individual, por meio dos sonhos e do consumo de certas drogas. No coletivo, os mitos, como percebeu Joseph Campbell, e certas obras de Arte tocam o mistério.
O que defendo é a Arte que seja uma mordida na carne desses símbolos. O que é uma metáfora afinal? O Artista feito médium. A técnica é só o princípio da caminhada. A Arte pulsa muito além do código.
A entrada do xamã no mundo dos espíritos se dá pela primeira vez no fim da infância e início da adolescência, normalmente depois de um evento traumático. René Magritte começou a pintar depois de encontrar, aos catorze anos, o cadáver da mãe que se suicidara no mar. Pintou pelo resto da vida mares e mulheres molhadas. Nada me tira da cabeça que aquele castelinho no topo da rocha flutuando sobre o mar é o lar que ele quis dar a mãe. Frida Kahlo começou a pintar depois do acidente que quase a matara. Uma de suas melhores telas é a coluna partida, reflexo do trauma que sofrera. É possível alguma analogia entre artistas assim e os jovens xamãs?
Voltemos à Literatura. Um escritor iniciante emular escritores consagrados é coisa normal, corriqueira. O que não consigo entender é a bajulação do Realismo e a premiação sistemática de autores que não passam de simulacros do Rubem Fonseca. Outra coisa que irrita é o foco exagerado na concisão em detrimento da profundidade. O problema não é o texto ser conciso, é a falta de profundidade. Grande parte dos microcontos que leio não me dizem coisa alguma. E isso é que é premiado, porque os juízes tacanhos também escrevem assim. Cá entre nós: uma tramoia imensa. Falam de twitter... facebook... etc, mas a forma é que deve estar a serviço da literatura e não o contrário.
Enfim, acho que já barulhei demais. Se posso dizer algo acertado, é o seguinte: sejam como William Blake, procurem ver através da janela e não com a janela. É preciso irromper do outro lado e trazer o mistério entre os dentes. Não é o caminho mais fácil, mas quem foi que disse que Arte tem algo a ver com facilidade?
Daniel Lopes é paulistano. Escreveu o romance É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança e o livro de contos Pianista Boxeador. Bloga em http://pianistaboxeador21.blogspot.com
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