Por Livio Nakano e Igor Teo
Existe
um viés permanente de entendimento ao se imaginar que a realidade do filósofo
ou das ideias estudadas equivaleria à sua própria, cidadão do século XX ou XXI.
Na verdade, quando lemos um autor medieval, persa, romano ou helenístico, a
ideia de historicidade não é apenas útil – é indispensável! Se não, caímos em
lugares comuns, confundimos alhos com bugalhos e perdemos o fio da meada que
estaríamos procurando encontrar. Foi tendo isto em mente que nós iniciamos uma
interessante conversa que rendeu algumas reflexões.
Há
uma linha de estudos acadêmicos conhecida como história da psicologia. Ao
contrário do que o nome possa sugerir, ela não trata apenas do estudo da
história da psicologia em si (como, por exemplo, em qual ano Freud escreveu seu
último texto ou quando se abriu um cérebro pela primeira vez). Estudar história
da psicologia é, sobretudo, estudar a história das ideias psicológicas, como
estas surgiram, sobreviveram e cambiaram com o passar do tempo. Ideias
psicológicas são, por sua vez, todas as concepções que o homem cria sobre si
próprio, isto é, ideias que o homem construiu ao longo da história sobre
emoção, razão, alma, e todas estas demais questões pertinentes que hoje são
temas da recente psicologia científica. Pensar em termos da história da
psicologia é entender a história e as motivações de nosso pensamento. Entender
que ideias diferentes têm origens diferentes e razões diferentes, e essas
diferenças refletem, sobretudo, o contexto socio-histórico das mesmas.
Ao pensarmos nos rumos da história, o seu
desenrolar óbvio e ao mesmo tempo incerto,
questionamentos nos podem vir à mente. Até que ponto somos produtos de
um passado se projetando ao futuro? Até que ponto somos livres para reinventar
o porvir? Que peso damos a própria noção de Livre-Arbítrio enquanto valor
necessário e capaz de libertar qualquer mortal das tramas sórdidas do destino
ou de criar crescimento e evolução a partir de dificuldades, dor e desgraças,
ignorando até rumos mais fortes como circunstâncias ambientais e geográficas,
ciclos celestes e até a providência divina?
Na Grécia Antiga, por exemplo, salvo raras
exceções, acreditava-se que o destino dos homens pertencia aos deuses e não
cabia aos mortais o poder de mudá-lo A história de Édipo é um exemplo de que
por mais que se tente fugir do seu destino, você ainda estará o executando. E
mesmo os primeiros filósofos cristãos não eram partidários do livre-arbítrio.
Agostinho de Hipona, uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do
cristianismo no Ocidente, já falava em predestinação divina muito antes de
Calvino e da Reforma Protestante. No mundo moderno, por sua vez, é comum a
crença de que somos capazes de tudo e só não obtemos por mera e talvez
momentânea falha nossa. Estão aí os livros de autoajuda para todo mundo que
quer abrir uma empresa e ser o próximo Eike Batista.
Para quem se ergue é fácil compor todas as
dificuldades da vida em uma sequência narrativa inevitável. Assim como para
quem desaba. Até onde nosso presente foi
só fruto de nossas decisões e acordos, até que ponto foi fruto de um destino, e
até que ponto, isto foi ou seria negociável? Isto lembra muito ao excelente
filme “De Volta para o Futuro”, onde todo o futuro do protagonista dependia de
um simples baile de formatura de ginásio nas mais variadas e diferentes
direções – o presente original, o futuro alterado do primeiro filme, do
segundo, e etc. E se tais momentos cruciais existem, seriam a todo o momento e
a toda hora, e talvez, tão lábeis assim, como no filme? Afinal, para cada baile
de formatura, existem centenas de tardes e noites que passamos no sofá de nossa
casa (e talvez, nosso “livre arbítrio”, muitas vezes, se limite a escolher o
passivo momento da inércia, em detrimento de uma trabalhosa e incerta
oportunidade, que pode tanto oferecer tragédia como fortuna).
Indo
na contracorrente de uma ciência determinista, que procura a medição e o
controle absoluto de variáveis para determinar exatamente os possíveis
resultados, Jean-Paul Sartre vai construir uma filosofia da liberdade. O filósofo
não vai negar as determinações que condicionam uma realidade, mas ao mesmo
tempo vai defender veemente a liberdade pessoal, ainda que condicionada aos
determinantes. Dizia ele que a todo o momento nós estamos fazendo escolhas, e
dizer que as determinações nos coagem a optar por algo, ignorando o nosso
próprio poder de decisão sobre as mesmas, é o tipo de atitude que ele vai
chamar de má-fé. A frase sintetizadora de sua filosofia é “o importante não é
aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram
de nós“. Para Sartre, não posso evitar que alguém escolha me dar um tapa, mas
eu posso escolher revidar ou me abster. Mas foi essa uma escolha verdadeira ou
ela existiu apenas por causa de uma pré-disposição que eu já tinha em mim,
produto de minha própria história pessoal, para revidar ou abster? Pois e se
realmente não houver liberdade, dizer que alguém é responsável por seu
sofrimento não seria culpar a vitima?
Sartre resume bem o dilema: um mesmo fato,
dividido em pessoas diferentes, pode resultar em traumas de infância, em
perversões sexuais, em obras artísticas plásticas ou musicais, em anos e anos
de análise ou em religiosidade e transcendência. Só que talvez não dependa
unicamente de uma crucial decisão, mas sim, da estrutura e das ferramentas que
o mesmo possuiria.
Um limite da ciência, é que ela não tem como
avaliar uma hipótese onde se observe múltiplas variáveis oscilando durante o
período de estudo. Outra é que deve haver um limite para o período de
observação. Mas uma coisa possível é reconhecer que pessoas são e serão
diferentes. Há pessoas que toleram o treinamento do BOPE e outras que trincam e
nunca mais se levantam na primeira decepção romântica. Não é todo o mundo que
nasceu para ser caveira. E aquela criatura que carrega eternamente uma mágoa do
bullying de infância pode não ser necessariamente apenas um “bunda mole”.
Este tipo de questionamento pode estar
presente na paternidade ou maternidade. Quando nossos filhos nascem, podemos
querer que sejam doutores, meritíssimo e excelências, mas não dá para saber se
eles serão revolucionários ou conservadores, homossexuais ou heterossexuais,
hereges ou fanáticos, mesmo com todo nosso esforço, exemplo e educação
doméstica. Ou seja, nossos amados filhos terão um destino próprio a cumprir,
que podemos e iremos ajudar, mas jamais determinar. Que podemos oferecer
valores, limites, disciplina, mas não temos como interferir na sua soberana
escolha de exercício de sua afetividade (seja em gênero, classe social, raça,
religião).
E pensar seletivamente, em critérios de
exclusão, pode ser legal em vestibular, em concursos, em atletas olímpicos,
especialmente se você é um dos ungidos, um dos vencedores – mas não quando
procuramos inclusão e abraçar ao todo, à humanidade em si, a valores como
fraternidade, e quando queremos dividir tudo o que conquistamos com pessoas que
“não se encaixariam” em extremos de meritocracia, mas que você tanto ama.
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