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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Saindo do Lugar Estreito

Hoje vou postar um trecho do livro do Rabino Nilton Bonder, “A Alma Imoral”. O livro é sensacional, imperdível para quem busca o autoconhecimento. Não estou muito confortável, nem certo de que é responsável compartilhar com vocês um trecho do livro nesse espaço. Pensei em reescrever o texto, comentar e colocar aqui, mas daí perder-se-ia o vigor e a paixão com que o rabino constrói seu argumento. De longe o que se segue não substitui a leitura do livro inteiro. Espero que sirva de aperitivo para que isso aconteça, que instigue quem gostar do que ler a buscar a completude do argumento folheando as páginas da obra. A parte que destaquei, dentre as muitas que o merecem, fala de decisões. De como as vezes temos dificuldades de deixar o inferno conhecido para entrar no paraíso desconhecido...

“Um dos ensinamentos chassidicos mais interessantes é o que aponta para quatro comportamentos do corpo diante das exigências da alma. Este ensinamento, desenvolvido pelo último rabi de Lubavicht, isola um episódio paradigmático do momento de encontro dos interesses do corpo e da alma: a saída dos hebreus do Egito. Por tratar-se de um símbolo de movimento ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, esse acontecimento em muito se presta para exemplificar os processos humanos que realizam movimento semelhante.
É fundamental mencionar que o Egito é, acima de tudo, um símbolo, por representar um lugar que ‘já foi bom’ e deixou de ser. As analogias se tornam mais interessantes ainda se reconhecermos que a etimologia hebraica da palavra Egito — mitsraim — quer dizer ‘lugar estreito’.
Todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores.
No processo de saída de um lugar estreito, temos uma descrição interessante dos fatos históricos ocorridos no relato bíblico. Segundo o mesmo, o processo de saída esbarra num limite tão real e profundo como o mar. Arrependido por ter permitido a saída dos hebreus após sofrer dez pragas diferentes, o faraó os encurrala junto ao mar. Entre o exército mais poderoso do mundo de então e o mar, os hebreus se voltam ao líder Moisés em desespero. O que fazer?
Quando resolvemos sair do lugar estreito, ocorre um processo semelhante com o corpo. O corpo não gosta de sair, de mudar. São a estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe outra saída. Mas para onde ir se o corpo não conhece nada diferente de si mesmo? A alma, imoral em sua proposta de desalojamento do corpo, impõe uma caminhada que para o corpo acaba por ser um enfrentamento com uma barreira aparentemente intransponível. Como seguir rumo à ‘terra prometida’, ao futuro, se entre o presente e ela existe um fosso, um mar, absoluto. O corpo então questiona a sensatez da alma. Os portões do passado se fecham, os do futuro não estão abertos e o corpo experimenta a mais temida das sensações - o pânico de se extinguir.
Encurralados diante do mar, o povo, representativo do corpo, assume algumas posturas possíveis. De acordo com o ensinamento chassídico, existem quatro comportamentos clássicos mencionados como quatro acampamentos. Sem saber como proceder, o povo se divide em quatro acampamentos. O primeiro quer voltar, o segundo quer lutar, o terceiro quer jogar-se ao mar, o quarto se mobiliza em oração.
Como leituras da alma, essas quatro posturas representam resistências do corpo. A própria idéia de acampar é, em si, uma forma de ‘empacar’. Aquele que propõe o retorno reconhece o poder do lugar estreito. Esse lugar do hábito é tão poderoso que foi uma ilusão se deixar levar pelo sonho de sair. Tudo estava errado desde o início e a proposta de voltar pressupõe uma vida estreita e em conformidade com a realidade e as limitações que esta impõe.
Lutar, por sua vez, é a crença de que se poderá fazer do próprio lugar estreito um lugar mais amplo. Se o lugar estreito é poderoso para impor-se como realidade, o que resta é desafiá-lo, como se a estreiteza fosse externa e não um processo de relação entre o mundo externo e o interno. Jamais devemos esquecer que o lugar estreito um dia não o foi.
Jogar-se ao mar é a atitude do desespero. É a entrega do corpo na descoberta de que a alma propiciou um limbo insuportável em que não há mais o passado que o definia nem lhe é permitido um novo futuro que o redefina. Na busca de um novo ‘bom’, não se encontra um novo ‘correto’ e a única saída é pagar o preço de não se ter bancado o ‘correto’ do passado mesmo que o ‘bom’ fosse inadequado. Desse desespero surge a resignação de que, apesar de não se voltar ao lugar estreito, jamais se poderá atingir um novo lugar amplo.
Orar é um recurso de fazer da situação do ‘novo’ uma reprodução do lugar estreito. Numa aparente resolução das demandas da alma, o corpo exige que a realidade seja ‘compassiva’ com ele, permitindo que o novo lugar não exija dele uma nova definição de si. O novo lugar é o velho sem parecer-lhe estreito. Muitos de nossos sonhos do pós-vida se classificam nessa categoria.
A beleza da interpretação chassídica está na utilização do versículo (Ex. 14:13), que esboça a reação de Moisés, o líder e representante dos interesses da alma (o empreendedor da saída do lugar estreito): ‘E disse Moisés ao povo: (l) Não temais, ficai e vede a salvação do Eterno; (2) porque os egípcios que vedes hoje não volvereis a vê-los nunca mais; (3) o Eterno lutará por vós e (4) vós vos calareis.’
Segundo essa interpretação, temos aqui uma resposta aos quatro acampamentos. Aos que queriam se jogar no mar: ‘Não temais, ficai.’ Aos que desejavam voltar: ‘Não volvereis a vê-los nunca mais.’ Aos que se propunham a lutar: ‘O Eterno lutará por vós.’ E aos que oram: ‘Vós vos calareis’. Nenhum dos acampamentos representa o futuro e a saída. Todos eles são variações sobre a hesitação e a vacilação. São, na realidade, a fronteira onde um corpo morre para renascer com uma mesma alma em outro corpo — do outro lado da margem.
Mas, se nenhuma dessas condutas é apropriada, qual é o caminho então? Não nos esqueçamos da realidade que interpõe um mar entre um corpo e outro. A resposta de D'us às vacilações do corpo, ou seja, resposta proveniente da fonte de toda alma e todo futuro, é Igualmente decisiva e intrigante (Ex: 14:15): ‘Diga a Israel que marche.’
Marchar, dar andamento, a quê? Para onde? Que solução óbvia é essa que a divindade apresenta, pela qual nenhum acampamento, ou nenhuma perspectiva do corpo, consegue dar conta de uma saída?
Conhecemos o final do relato bíblico em que o mar se abre. Mas, para o Midrash — comentários alegóricos dos rabinos -, a abertura do mar se dá de uma maneira muito peculiar. Um homem chamado Nachshon ben Aminadav, que não sabia nadar, começou a adentrar as águas. Estas, no entanto, não se abriram num primeiro instante. Somente quando o homem já estava com a água no nível do nariz, as águas se abriram.
Diferente do acampamento, que queria se jogar ao mar como forma de desesperança no futuro, Nachshon compreende a recomendação de D'us: ‘marchem’. O futuro existe se vocês marcharem. O futuro, porém, não está ligado ao presente pelo corpo. A alma guiará o caminho seco por meio do molhado, de um corpo a outro ou de uma margem a outra. Saber abrir mão desse corpo na fé de que outro se constituirá é saber dar o passo que leva até onde ‘não dá mais pé’. Enquanto der pé, estaremos estacionados em acampamentos.
Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.
Conhecemos esse processo através de nosso nascimento. Em determinado momento, o lugar mais maravilhoso, aconchegante e repleto de nutrientes para o corpo se desenvolver se torna estreito. O útero materno deixa de ser amplo e se transforma em um mitsraim (Egito). A saída pelas águas a seco é difícil e pressupõe uma coragem que só se torna possível se alma e corpo andam de mãos dadas. Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico.”

Retirado de: "A Alma Imoral", Nilton Bonder, Editora Rocco.

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