Seguidores

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Renzo: Em Busca do Horizonte (Parte 4 de 7)

Capítulo 04

Sozinho no Escuro

- Meu pai – começa Renzo - era um descendente de italianos que veio para o Brasil com algumas economias na década de 50 e se estabeleceu com uma loja num subúrbio. Era um prédio de dois andares, em cuja parte inferior havia um pequeno armazém de secos e molhados com duas portas. Na verdade, era um pequeno mercado onde se vendia de tudo, mas principalmente artigos de quitanda. Havia um grande letreiro sobre as duas portas metálicas onde estava escrito "MERCEARIA DO RENZO". Na calçada, grandes caixotes com pés expunham as verduras e legumes aos fregueses que passavam por ali.
“Minha mãe e eu ajudávamos no trabalho. Ela gostava, eu não. Meu pai era Um homem grande, de cabelos e olhos escuros, e um vasto bigode, sempre com calças de algodão arregaçadas à altura da canela, calçando botinas de couro preto e uma camisa de tergal surrada sobre uma camiseta de algodão que ficava de pé na porta da mercearia aguardando fregueses.”
“Um dia eu conversava com alguns amigos sentados em círculo com suas bicicletas perto da quitanda quando ouvi meu pai gritar”:
- Maurício Renzo Júnior! Moleque preguiçoso... Onde você está!
“Voltei correndo para junto dele e meu pai brigou comigo na frente de todo mundo. Quando isso acontecia eu ficava apenas com a cabeça baixa e olhando para o chão com as mãos para trás enquanto ele falava, queimando por dentro de vergonha e frustração.”
- Quantas vezes já te disse para não ficar de conversa com esses vadios? Eu preciso de você, filho! Sua mãe está sozinha lá dentro. Você tem que nos ajudar.
“De vez em quando apareciam uns homens de terno escuro que conversavam durante horas com ele e quando saíam, invariavelmente, ele estava com muita raiva. Hoje eu sei que deviam estar cobrando por proteção. Acontece que em um determinado dia eles devem ter aumentado demais a cota e por isso meu pai aborreceu-se mais do que o normal.”
“Enquanto arrastava para dentro uma caixa de madeira cheia de legumes puxando com as duas mãos e algum esforço, os homens foram saindo. Não entendi direito do que se tratava na época e não dei muita importância, mas ouvi claramente um deles dizer: ‘Ele vai se arrepender..."
“Nós morávamos na parte de cima da mercearia e eu era o responsável pelo fechamento da loja todos os dias, mas naquela noite foi diferente... Contra a vontade de meu pai, eu havia marcado com uns amigos para irmos ver um ‘pega’ de carros num bairro afastado. Era uma corrida ilegal muito perigosa e por isso mesmo disputada. A adrenalina da corrida em si e o fato da polícia poder aparecer a qualquer momento dava uma imagem de transgressão que agradava a todos os adolescentes “rebeldes” da minha turma Meu pai sempre guardava as chaves com ele no quarto, por isso tive a idéia de deixar uma das portas da mercearia aberta.”
“Nunca tínhamos tido problemas com ladrões e achei que deixar a pesada porta encostada por algumas horas não faria mal nenhum. Mas estava enganado... Quando voltei para casa era madrugada. Em frente a minha casa fiquei paralisado com os braços caídos ao longo do corpo como se estivesse em transe com os olhos fixos nas chamas do incêndio que consumia minha vida, e ao mesmo tempo ofuscado pelas várias luzes, sons e toda a movimentação.”
“O prédio todo estava pegando fogo. Grande parte já havia desabado e só restava a fachada que ruiu pouco depois. Os carros da polícia e dos bombeiros com as luzes acesas estavam sobre as calçadas em volta enquanto os homens jogavam água para tentar controlar o fogo. Várias pessoas circulavam por toda parte e eu era apenas um espectador à distância. De uma hora para a outra fiquei sozinho no mundo. Perdi tudo o que tinha, tudo o que agora eu sabia que amava. E eu achava que a culpa era toda minha.”
“Caminhei pela cidade como um morto-vivo durante dias, vaguei sem rumo pelas ruas da cidade tomado por um remorso enorme e um ódio de mim mesmo ainda maior. Eu fora o responsável pela morte de meus pais...”
“Depois de muito andar sem destino dormindo em qualquer lugar e com uma fome implacável corroendo minhas entranhas o remorso me levou à entrada de um morro onde eu sabia haver tráfico de drogas. Não sei mais se inconscientemente o que eu buscava era punição ou então desejava cair de cabeça na vida de criminoso que eu achava que era.”
“Aproximei-me de uma "barraca", "tendinha" ou "birosca" no alto do morro, à frente da qual, sob um alpendre de madeira havia uma mesa de sinuca onde dois homens jogavam e outra de carteado onde quatro homens jogavam sentados em cadeiras metálicas com propaganda de cerveja.”
“Na mesa de cartas, havia um homem negro de bermuda, camiseta e usando uma touca com listas horizontais largas amarelas e pretas que era o gerente da favela e a sua direita e ao seu alcance, havia um revolver calibre 38 prateado colocado sobre a mesa. Em uma das mãos ele tinha um cigarro aceso e na outra as cartas.”
- Ouvi dizer que o senhor tem trabalho aqui. – Comecei eu ao chegar perto dos homens - Eu faço qualquer coisa.
O homem falou sem virar-se.
- Tu faz qualquer coisa?
“Ele me olhou de cima embaixo pelo o que me pareceu longos minutos e depois apontou com o polegar para o outro lado da rua, havia dois homens conversando: um negro só de bermuda com uma pistola na cintura e um moreno de óculos escuros Ray-ban, com um cabelo ralo empastado de algum tipo de creme, e uma camisa aberta no peito mostrando um grosso medalhão circular dourado de São Jorge com uma também grossa corrente.”
- Tá vendo aqueles dois do outro lado da rua? Pega esse berro que tá aqui em cima e apaga o cara de óculos.
- Eu- Eu não posso fazer isso. – Eu disse hesitante.
- Então cai fora, ô bundão! Não tem nada pra você aqui!
“Todos riram da fala do chefão embora não houvesse nada de engraçado nela. Eu saí da favela de cabeça baixa por entre casas e becos estreitos. Em um terreno vazio havia muito lixo e coisas jogadas fora. Porcos fuçavam os dejetos em busca de alimento e próximo a eles um garoto revirava uma lata de lixo retirando e comendo os restos de comida que encontrava.”
“Naquele momento, não sei por que, eu me lembrei de um poema que eu escutei na escola certa vez. Parecia ter sido numa outra vida. A professora mostrou para turma um poema do Manuel Bandeira e disse que toda vez que o lia tinha vontade de chorar.”
“Eu não era um bicho. O gerente nem viu quando o revolver desapareceu. Quando ele percebeu eu já estava de arma em punho com o braço esticado andando como se estivesse em transe em direção aos dois homens que ele havia indicado antes. Os homens se assustaram com a minha aproximação e logo eu estava cercado por cinco ‘soldados’ armados que gritavam coisas para mim enquanto gerente observava de pé com os braços cruzados sobre o peito com sorriso e um ar sarcástico.”
- Acho que arrumamos mais um soldado, pessoal!
“Depois de alguns dias como ‘soldado’, o gerente chamado "Macarrão", com a ajuda do homem em quem eu iria atirar, um policial civil, providenciaram para mim um ‘batismo de fogo’ para avaliar do que eu era feito. Aparentemente meus dias na rua não havia me feito perder uma certa cara de “burguesinho branco”, como os outro garotos me chamavam, e isso não lhes inspirava confiança. Logo eu estava sentado dentro de uma viatura sendo levado para uma delegacia. Quando a porta da "caçapa" se abriu, um homem moreno, magro, de cabelos cinzentos ondulados e curtos, usando um fino bigode, e aparentando uns quarenta anos, vestindo calça e camisa social e com um paletó de linho cinza surrado nas mãos foi colocado para dentro por dois policiais, um deles era o mesmo que estava na favela.”
- Volto a dizer que isso é um grande erro, senhores. Vocês não tem nada contra mim. Não podem me prender...
- Cale a boca Domingos! - disse o homem que eu conheci na favela - Senão vamos te dar o "tratamento especial" e você não vai gostar nem um pouco.
“A patrulha parou em frente de uma delegacia policial junto com outras viaturas e os dois policiais conversaram dentro enquanto as pessoas circulava em volta.”
- Porra, Antunes...Trazer o Domingos, tudo bem, agente já tava na cola dele a algum tempo... mas acho que esse garoto vai nos trazer problemas. Ele é menor, Antunes!
- Não esquenta, Marcos, o macarrão quer que ele passe uma noite na cadeia. Amanhã a gente devolve ele. Do jeito que estiver...
“Um pouco mais tarde no corredor de celas da delegacia entre as portas gradeadas dos dois lados, eu com os olhos arregalados e o outro homem mais velho andamos a frente de dois policiais seguindo em fila indiana. Um dos presos gritou de dentro de uma cela:”
- Bem vindo ao lar domingos!
“Outro preso completou:
- Quem é o franguinho? Seu filho ou seu amante?
“Uma outra voz falou bem alto:”
- Oba! Carne nova no pedaço!
“Domingos falou alto também.”
- Minha casa é mais bonita que esse esgoto. Vou ficar por pouco tempo! E tem mais... Não quero que ninguém toque no garoto. Ele é meu peixe. Se alguma coisa acontecer com ele alguém vai se dar mal...
“Um dos guardas, o policial Antunes, repreendeu Domingos.
- Feche o bico! Não está mais entre tuas nêgas. Além disso o garoto não vai ficar no mesmo buraco que você.
“Resignado e com medo, fui empurrado sozinho na cela superlotada aberta pelo policial. Vários homens de bermuda, camiseta e chinelos estavam espalhados por toda parte. Varais com roupas estendidas entre as grades tinham roupas dependuradas e as paredes que não tinham grades estavam cheias de pôsteres de mulheres nuas pregadas.”
“Naquele momento não entendi a atitude de Domingos. Mas isso fazia parte de sua personalidade. Ele tentara me ajudar porque percebera que eu não fazia parte daquele mundo. Usou a sua reputação para me proteger. Mas ela não foi suficiente...”
“Permaneci de pé, paralisado, próximo a entrada da cela lotada como se procurasse um lugar para ficar. De um dos cantos veio uma voz.”
- Então tu é peixe do Domingos, hein?!
“Por entre os presos surgiu um homem gordo e com aspecto sujo. Ficou ali de pé, com um bigode ralo e o cabelo desgrenhado, suado, com braços e pernas cabeludos. Vestia uma bermuda e uma camiseta surradas, usava chinelos velhos e trazia um palito de dentes no canto da boca e uma toalha encardida sobre o ombro esquerdo. Sorriu maliciosamente os dentes cariados.”
- Vai dar uma bela noiva!
 “Eu poderia dizer que nada aconteceu naquela noite... que a manhã me encontrou do mesmo jeito que a tarde me deixara... Mas não... Na verdade não me lembro de muita coisa. Lembro-me da dor, da humilhação, de ser largado no chão como um trapo velho dolorido e sangrando. De como a raiva e o ódio cresceram dentro de mim como a lava de um vulcão até explodir naquela mesma madrugada. Quando dei por mim o homem gordo e suado estava deitado de bruços embaixo de meus joelhos. Eu estava sobre suas costas pressionando as omoplatas contra o chão sujo e com as minhas mãos firmemente seguras nas duas pontas da toalha encardida enrolada em torno do seu pescoço enquanto ele se debatia. Aquela foi a primeira vez que eu matei um homem”.
“Todos sabiam o que tinha acontecido, mas ninguém falou nem fez nada. Talvez tenha sido algo que Domingos gritou de sua cela para os detentos naquela noite e que eu não lembro. Acho que ninguém gostava do ‘xerife’ da cela... Ou então seguiram a "lei do silêncio" ou coisa parecida. Não sei. Só descobririam o corpo na próxima revista. Já do lado de fora no dia seguinte como fora combinado, eu estava novamente só. Domingos estava de pé diante da delegacia como dissera acendendo um cigarro com a mão em concha protegendo o fogo do vento fresco que soprava.
- Teve coragem em fazer o que fez lá dentro, garoto. Eles poderiam ter te matado também, sabia?
- Não importa. Não foi coragem. Foi ódio, desespero e desejo de vingança.
Domingos solta uma baforada do cigarro e olha em volta.
- Tem para onde ir, garoto?
“Naquele dia não voltei mais para a favela. Na verdade nunca mais voltei lá. Domingos me adotou como filho. Me ensinou o manejo de todos os tipos de arma. Domingos era um excelente atirador e um PERCOR; um perito em luta com facas. Fora discípulo de um mestre nesta arte, um boliviano que conheceu quando esteve na penitenciária. Hoje eu também sou.”
“Convivi com ele por dez anos. Era um homem bom, embora um tanto calado. Mas eu também era. Acho que era por isso que nos dávamos bem. Nos separamos quando consegui o meu primeiro trabalho. Sem lágrimas, sem abraços... como tinha que ser. Todo predador precisa de uma grande área de caça. Gente como nós sempre trabalha melhor sozinho.
(Continua) 

0 comentários:

Postar um comentário