Toda família tem suas piadas internas, coisas que às vezes para os demais mortais não fazem sentido algum, mas se ditas, ou algumas vezes meramente insinuadas, fazem os membros da família em questão caírem na risada sob o olhar incrédulo do vizinho ou amigo que testemunhou aquela quase telepatia e que sem o devido contexto pode parecer simplesmente um acesso de loucura passado geneticamente.
Em minha família também tem dessas coisas. O que eu hoje vou partilhar com vocês e quem sabe transformar numa piada interna entre nós (isto é, entre eu e meus dois leitores, se tanto) diz respeito a uma música.
Não é segredo para ninguém que a Vida tem trilha sonora. Quem disser que não tem é surdo de nascença ou tem a sensibilidade de um legume. Certas músicas nos evocam tempos idos, amores idem, trazem cheiros e texturas de algo que não existe mais no plano físico, mas mora com todas as suas impressões indeléveis em nossa lembrança.
Um dos responsáveis pela trilha sonora de minha vida é o meu pai. Como já coloquei em outro lugar desse blog ele é um apaixonado por música, quase sempre alta e de acordo com seu gosto forjado nos bailes da sua juventude que inclui boleros variados, sambas-canção, rumbas, mambos e um cem outros ritmos e modalidades que longe de estagnar no tempo, foram acrescentados por coisas mais modernas (desde que conformes ao gosto elástico, porém exigente de meu pai). Posso incluir aí desde Rock dos anos 50, até os chamados “pagodes” onde estão com destaque especial o sambista Dicró e o falecido Bezerra da Silva que tanto entretiveram os vizinhos ao longo desses anos.
Entretanto, o que chamava (e chama ainda) mais a atenção na coleção musical desfiada como um colar de contas em minha casa era o humor que podia ser identificado em algumas composições como nos antigos pagodes, nos hoje obsoletos vinis, com nomes pitorescos como “Grupo Favela”, “Olé do Partido Alto” ou “Partido em Cinco” (quem quiser saber mais é só procurar no Oráculo de Delfos da pós-modernidade: o Google. Lá tem tudo o que você precisa saber sobre esses grupos e a música genial e engraçada que eles faziam misturando crônica e crítica social de forma bem dosada e agradável).
Um dos cantores/compositores que eu mais gostava era o Moreira da Silva de quem já falei em outro post. É uma das suas músicas de que extrairei o mote para o que eu desejo mostrar hoje e pareço estar enrolando tanto.
Em algumas ocasiões minha família tinha por hábito sair na época do final de ano para passar o réveillon na casa de alguns tios. Sempre preocupada com a logística, minha mãe se apressava em levar conosco quitutes e acepipes que iriam reforçar a ceia e não onerar de forma muito mais pesada a mesa dos meus parentes. Enquanto era criança, e como tal sem opinião, eu era levado com os demais irmãos e me perdia entre primos e primas, dormindo amontoados na sala ou em algum cômodo improvisado durante um ou dois dias.
O problema era que como as atenções estavam voltadas para ceia, as refeições feitas antes da festa mesma eram, por assim dizer, desfalcadas daquilo de melhor que poderia haver (e que realmente haveria) no convescote noturno. Não vai aí crítica nenhuma ou acusação de má fé contra os anfitriões que acreditavam estar fazendo seu melhor, mas por conta dessas ocasiões adquiri um trauma definitivo contra determinadas partes de aves como pé, pescoço e asa (essa nem em churrascos de amigos eu me animo a provar) que eram, junto com o ubíquo “arroz com feijão”, a frugal refeição preliminar, geralmente o almoço, que precedia a esperada (e para mim demorada) grande noite onde com toda certeza sempre estavam as demais partes (seletas) dos galináceos em questão à disposição de todos.
Bom... Mas o que isso tem a ver com música? Aí é que entra o Moreira da Silva, que em uma crítica bem humorada de seu tempo, nos conta como as coisas passaram da fartura para a contenção de gastos por conta de uma “crise econômica” que atrapalhava a vida de todos (e que no Brasil parece crônica, uma vez que a música fala de algo passado por volta da década de 50 do século passado). Ei-la:
ANTIGAMENTE
(Moreira da Silva)
Antigamente quando havia baile
havia gosto na rapaziada
por que sabia que lá encontrava
um porco com farofa, uma feijoada
“Aquilo é que era tempo
Era uma fartura sobre modo.
Você chegava e a dona da casa:
Pode entrar, a casa é sua!
Eu só comia de prato fundo,
feijoada completa
feijão a quatrocentos réis o quilo,
feijão com tudo
tripa, toucinho, era uma beleza...
então eu metia um escafandro
para apanhar o toucinho,
ele disse que boia
mas eu vou apanhar lá no fundo
E depois então pra fazer a digestão
eu saía e me encontrava
com uns bons crioulos
lá no Campo de Santana
E eles conversando era uma beleza
Diziam um pro outro:
‘Há meu tempo,
Marungú, va vaçuncê tá bom
ou tá com reumatismo na joei?
Já passou o corpo em jejum?
Tempo de arroz quaquaqua,
feijão quaquaqua,
feijão agora 50 meréis quilo,
não pode mais com feijão, Eh! Eh!”
Mas hoje com a desculpa da crise
Baile de rádio é o que se vê
E há quem tenha o descaramento
De deixar os convidados sem comer e sem beber
Fui a uma festa na Muda da Tijuca
Levei gente de rádio e um bom regional
A fim de contas foi maior minha sinuca
pois não havia nem água pra dar ao meu pessoal
Além de tudo o dono dessa festa
um tal de “seu” Jacinto da Silva Camarão
Fez um rateio entre os convidados
dizendo que era a defesa da gordura pro feijão.
Hoje se alguém me convida
pra casa de alguém que eu nunca tenha ido,
eu digo logo: “queira me desculpar, mas não vou,
Pra hoje tenho meu tempo todo tomado”
Que importa que falem de mim
e digam que com isso eu só faço feio,
o que eu não posso é deixar meu conforto
pra ir passar fome na casa do alheio
Atentem para a estrofe final da canção “Antigamente”...
Depois que eu cresci o bastante para apresentar minha recusa ao “projeto de ano novo” apresentado à família por meus pais (que sempre achavam “que dessa vez seria melhor”) uma das desculpas/razões que eu apresentava era cantarolar essa estrofe.
E até hoje quando alguém me pergunta se eu pretendo ir a algum encontro em casa de amigos ou parentes cuja festa apresente alguma perspectiva duvidosa, basta dizer: “lembrem-se do que diz Moreira da Silva”.
Isso é o bastante para todos abrirem um sorriso e dependendo de quem seja, dizerem que preferem ficar no conforto do sacrossanto recesso do seu lar.