Seguidores

domingo, 19 de setembro de 2010

A Noite Negra da Alma

Por Marcelo Del Debbio

Que é a Noite Negra da Alma? Trata-se de um termo há muito usado pelos místicos para denotar certo estado emocional e psicológico, assim como para indicar um período de testes por que todo mortal passa alguma vez em sua vida. Essa Noite Negra da Alma é caracterizada por uma série de fracassos; o indivíduo experimenta muitas frustrações. Qualquer coisa que o indivíduo se propõe a fazer parece carregada de incertezas e obstáculos. Não importa o quanto ele tente ou que conhecimentos aplique, o indivíduo se sente amarrado. Quando prestes a se concretizarem, as oportunidades parecem escapar de suas mãos. Coisas com as quais ele muito contava, não se realizam. Seus planos tornam-se estáticos e não se concretizam. Ne­nhuma circunstância lhe oferece solução ou encorajamento quanto ao futuro. Este período é repleto de desapontamento, desânimo e depressão.

Durante esse período, o indivíduo sente-se fortemente tentado a abandonar seus mais acalentados ideais e esperanças, tornando-se extremamente pessimista. O maior perigo, contudo, é sua tendência de abandonar todas aquelas coisas às quais atribuía grande valor e importância na vida. Ele pode achar que é inútil continuar seus estudos místicos, suas atividades culturais e sua afiliação a entidades filantrópicas. Caso ceda a essas tentações, estará realmente perdido. De acordo com a tradição mística, este é o período em que a fibra da personalidade-alma é testada. Suas verdadeiras convicções, sua força de vontade e seu merecimento de maior iluminação são colocados à prova. Se o indivíduo sucumbe a essas condições, embora a frustração e o desespero possam diminuir, ele não conhecerá o júbilo da verdadeira conquista na vida. Daí por diante, sua existência poderá ser medíocre e ele não experimentará verdadeira paz interior.

Não se trata de algum tipo de punição imposta ao indivíduo. Como evidenciam os ensinamentos místicos, não é uma condição cármica. É, isto sim, uma espécie de adaptação que o indivíduo deve fazer dentro de si mesmo para evoluir a um nível mais elevado de consciência. É uma espécie de desafio, uma espécie de exigência de que a pessoa recorra à introspecção e promova uma reavaliação de seus ideais e objetivos na vida. Uma exigência de que a pessoa abandone interesses superficiais e se decida sobre o modo em que deve utilizar sua vida. Não significa que o indivíduo deva abandonar seu trabalho ou meio de vida, mas, que ele deve reestruturar sua vida futura. A Noite Negra o faz perguntar-se sobre quais as contribuições que ele pode fazer à humanidade. Faz com que ele descubra seus pontos fracos e fortes.

Se a pessoa fizer esta auto-análise durante a Noite Negra ao invés de apenas lutar contra suas frustrações, toda a situação mudará para melhor. Ela passa a ter domínio sobre acontecimentos que concluiu serem meritórios. Mais cedo ou mais tarde, então, advém a condição que há muito os místicos chamam de Áureo Alvorecer. Subitamente, parece haver uma transformação: a pessoa torna-se efervescente de entusiasmo. Há um influxo de idéias estimulantes e construtivas que ela sente poder converter em benefícios para sua vida. Todo o novo curso de sua existência é promissor. Em contraste com as condições anteriores, sua nova vida é verdadeiramente áurea no alvorecer de um novo período. Acima de tudo, há a iluminação, o discernimento aguçado, a compreensão de si mesmo e de situações que antes não compreendia.

Aqueles que não têm conhecimento deste fenômeno mas que no entanto perseveram e superam a Noite Negra da Alma, tomam-se algo confusos pelo que lhes parece uma transformação inexplicável em seus afazeres e obrigações. Particularmente estranho lhes parece o que acreditam ser alguma energia ou combinação de circunstâncias externas que produziu a mudança. Eles não percebem que a transformação ocorreu em sua própria natureza psíquica como resultado de seus pensamentos e vontade.

Quando é que começa a Noite Negra da Alma? Em que idade ou período da vida ela ocorre? Podemos responder que normalmente ela se sucede ao fim de um dos ciclos de sete anos, como 35, 42, 49, 56, 63… anos de idade. Ela ocorre com mais freqüência no fim do ciclo dos 42 ou 49 anos, e muito raramente aos 63 ou além.

Quanto tempo ela dura? Em verdade ninguém pode responder esta pergunta pois sua duração é individual. Depende de como a pessoa tenha vivido; de seus pensamentos e ações. Contudo, enfatizamos uma vez mais: A Noite Negra não advém como punição pelo que a pessoa possa ter feito no passado, mas, sim como um teste do merecimento de penetrar no Áureo Alvorecer. Talvez quanto mais circunspecto seja o indivíduo, quanto mais sincero ele seja na busca de realizar nobres ideais, tanto mais cedo sua determinação e seu verdadeiro caráter serão postos a prova pela Noite Negra da Alma.

Por quanto tempo tem a pessoa de suportar essa experiência? Isto também varia de acordo com o indivíduo. Se ele resiste, se não sucumbe à tentação de abandonar seus hábitos, prática e costumes meritórios, a Noite logo termina. Se, porém, ele sucumbe, entrega-se à estagnação profunda e abandona seu melhor modo de vida, então a Noite pode continuar em diferentes intensidades pelo resto de sua vida.

Deve-se compreender, repetimos, que esta não é uma experiência ou fenômeno que ocorre somente para os estudantes de misticismo. Aliás, ela não guarda relação direta com o tema do misticismo, exceto pelo fato de ser um fenômeno natural, psicológico e cósmico. Os místicos o explicam; os outros, não. Os psicólogos, por exemplo, dirão que se trata de um estado emocional, uma depressão temporária, um estado de ânimo que inibe o pensamento e a ação da pessoa, o que explica os fracassos e as frustrações. Eles procurarão encontrar algum pensamento, alguma repressão subconsciente para explicar tal estado. Como dissemos, a Noite Negra ocorre na vida de todo mundo, independentemente de a pessoa conhecer ou não algo de misticismo. É bem provável que você tenha conhecido alguma pessoa que passou por esse período. As coisas para tal pessoa pareciam redundar em fracassos, a despeito de quanto esforço ela fizesse. Então, algum tempo depois, essa pessoa tomou-se bem sucedida, feliz, parecendo ter outra personalidade.

Entretanto, o indivíduo, por sua própria negligência, pode acarretar condições semelhantes às da Noite Negra. Uma pessoa preguiçosa, indolente, descuidada, indiferente e sem senso prático acarretará muitos fracassos à sua própria vida. Ela pode lastimar-se de sua sina a outros, e, se conhecer algo a respeito, poderá mesmo dizer que está passando pela Noite Negra. Mas saberá que a falha está em seu próprio interior.

A diferença entre esta pessoa e o indivíduo que está realmente passando pela Noite Negra está em que o último, pelo menos a princípio, sinceramente procurará enfrentar cada situação e aplicar seu conhecimento até que chegue a compreender que está bloqueado por algo maior que sua própria capacidade. A pessoa indolente, porém, sempre sabe que é indolente, quer isto admita ou não. A pessoa negligente sempre sabe que negligenciou o que deveria ter realizado. A pessoa descuidada que é assim por hábito, sabe que não vai muito longe e que comete muitos erros. - AMORC

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Saindo do Lugar Estreito

Hoje vou postar um trecho do livro do Rabino Nilton Bonder, “A Alma Imoral”. O livro é sensacional, imperdível para quem busca o autoconhecimento. Não estou muito confortável, nem certo de que é responsável compartilhar com vocês um trecho do livro nesse espaço. Pensei em reescrever o texto, comentar e colocar aqui, mas daí perder-se-ia o vigor e a paixão com que o rabino constrói seu argumento. De longe o que se segue não substitui a leitura do livro inteiro. Espero que sirva de aperitivo para que isso aconteça, que instigue quem gostar do que ler a buscar a completude do argumento folheando as páginas da obra. A parte que destaquei, dentre as muitas que o merecem, fala de decisões. De como as vezes temos dificuldades de deixar o inferno conhecido para entrar no paraíso desconhecido...

“Um dos ensinamentos chassidicos mais interessantes é o que aponta para quatro comportamentos do corpo diante das exigências da alma. Este ensinamento, desenvolvido pelo último rabi de Lubavicht, isola um episódio paradigmático do momento de encontro dos interesses do corpo e da alma: a saída dos hebreus do Egito. Por tratar-se de um símbolo de movimento ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, esse acontecimento em muito se presta para exemplificar os processos humanos que realizam movimento semelhante.
É fundamental mencionar que o Egito é, acima de tudo, um símbolo, por representar um lugar que ‘já foi bom’ e deixou de ser. As analogias se tornam mais interessantes ainda se reconhecermos que a etimologia hebraica da palavra Egito — mitsraim — quer dizer ‘lugar estreito’.
Todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores.
No processo de saída de um lugar estreito, temos uma descrição interessante dos fatos históricos ocorridos no relato bíblico. Segundo o mesmo, o processo de saída esbarra num limite tão real e profundo como o mar. Arrependido por ter permitido a saída dos hebreus após sofrer dez pragas diferentes, o faraó os encurrala junto ao mar. Entre o exército mais poderoso do mundo de então e o mar, os hebreus se voltam ao líder Moisés em desespero. O que fazer?
Quando resolvemos sair do lugar estreito, ocorre um processo semelhante com o corpo. O corpo não gosta de sair, de mudar. São a estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe outra saída. Mas para onde ir se o corpo não conhece nada diferente de si mesmo? A alma, imoral em sua proposta de desalojamento do corpo, impõe uma caminhada que para o corpo acaba por ser um enfrentamento com uma barreira aparentemente intransponível. Como seguir rumo à ‘terra prometida’, ao futuro, se entre o presente e ela existe um fosso, um mar, absoluto. O corpo então questiona a sensatez da alma. Os portões do passado se fecham, os do futuro não estão abertos e o corpo experimenta a mais temida das sensações - o pânico de se extinguir.
Encurralados diante do mar, o povo, representativo do corpo, assume algumas posturas possíveis. De acordo com o ensinamento chassídico, existem quatro comportamentos clássicos mencionados como quatro acampamentos. Sem saber como proceder, o povo se divide em quatro acampamentos. O primeiro quer voltar, o segundo quer lutar, o terceiro quer jogar-se ao mar, o quarto se mobiliza em oração.
Como leituras da alma, essas quatro posturas representam resistências do corpo. A própria idéia de acampar é, em si, uma forma de ‘empacar’. Aquele que propõe o retorno reconhece o poder do lugar estreito. Esse lugar do hábito é tão poderoso que foi uma ilusão se deixar levar pelo sonho de sair. Tudo estava errado desde o início e a proposta de voltar pressupõe uma vida estreita e em conformidade com a realidade e as limitações que esta impõe.
Lutar, por sua vez, é a crença de que se poderá fazer do próprio lugar estreito um lugar mais amplo. Se o lugar estreito é poderoso para impor-se como realidade, o que resta é desafiá-lo, como se a estreiteza fosse externa e não um processo de relação entre o mundo externo e o interno. Jamais devemos esquecer que o lugar estreito um dia não o foi.
Jogar-se ao mar é a atitude do desespero. É a entrega do corpo na descoberta de que a alma propiciou um limbo insuportável em que não há mais o passado que o definia nem lhe é permitido um novo futuro que o redefina. Na busca de um novo ‘bom’, não se encontra um novo ‘correto’ e a única saída é pagar o preço de não se ter bancado o ‘correto’ do passado mesmo que o ‘bom’ fosse inadequado. Desse desespero surge a resignação de que, apesar de não se voltar ao lugar estreito, jamais se poderá atingir um novo lugar amplo.
Orar é um recurso de fazer da situação do ‘novo’ uma reprodução do lugar estreito. Numa aparente resolução das demandas da alma, o corpo exige que a realidade seja ‘compassiva’ com ele, permitindo que o novo lugar não exija dele uma nova definição de si. O novo lugar é o velho sem parecer-lhe estreito. Muitos de nossos sonhos do pós-vida se classificam nessa categoria.
A beleza da interpretação chassídica está na utilização do versículo (Ex. 14:13), que esboça a reação de Moisés, o líder e representante dos interesses da alma (o empreendedor da saída do lugar estreito): ‘E disse Moisés ao povo: (l) Não temais, ficai e vede a salvação do Eterno; (2) porque os egípcios que vedes hoje não volvereis a vê-los nunca mais; (3) o Eterno lutará por vós e (4) vós vos calareis.’
Segundo essa interpretação, temos aqui uma resposta aos quatro acampamentos. Aos que queriam se jogar no mar: ‘Não temais, ficai.’ Aos que desejavam voltar: ‘Não volvereis a vê-los nunca mais.’ Aos que se propunham a lutar: ‘O Eterno lutará por vós.’ E aos que oram: ‘Vós vos calareis’. Nenhum dos acampamentos representa o futuro e a saída. Todos eles são variações sobre a hesitação e a vacilação. São, na realidade, a fronteira onde um corpo morre para renascer com uma mesma alma em outro corpo — do outro lado da margem.
Mas, se nenhuma dessas condutas é apropriada, qual é o caminho então? Não nos esqueçamos da realidade que interpõe um mar entre um corpo e outro. A resposta de D'us às vacilações do corpo, ou seja, resposta proveniente da fonte de toda alma e todo futuro, é Igualmente decisiva e intrigante (Ex: 14:15): ‘Diga a Israel que marche.’
Marchar, dar andamento, a quê? Para onde? Que solução óbvia é essa que a divindade apresenta, pela qual nenhum acampamento, ou nenhuma perspectiva do corpo, consegue dar conta de uma saída?
Conhecemos o final do relato bíblico em que o mar se abre. Mas, para o Midrash — comentários alegóricos dos rabinos -, a abertura do mar se dá de uma maneira muito peculiar. Um homem chamado Nachshon ben Aminadav, que não sabia nadar, começou a adentrar as águas. Estas, no entanto, não se abriram num primeiro instante. Somente quando o homem já estava com a água no nível do nariz, as águas se abriram.
Diferente do acampamento, que queria se jogar ao mar como forma de desesperança no futuro, Nachshon compreende a recomendação de D'us: ‘marchem’. O futuro existe se vocês marcharem. O futuro, porém, não está ligado ao presente pelo corpo. A alma guiará o caminho seco por meio do molhado, de um corpo a outro ou de uma margem a outra. Saber abrir mão desse corpo na fé de que outro se constituirá é saber dar o passo que leva até onde ‘não dá mais pé’. Enquanto der pé, estaremos estacionados em acampamentos.
Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.
Conhecemos esse processo através de nosso nascimento. Em determinado momento, o lugar mais maravilhoso, aconchegante e repleto de nutrientes para o corpo se desenvolver se torna estreito. O útero materno deixa de ser amplo e se transforma em um mitsraim (Egito). A saída pelas águas a seco é difícil e pressupõe uma coragem que só se torna possível se alma e corpo andam de mãos dadas. Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico.”

Retirado de: "A Alma Imoral", Nilton Bonder, Editora Rocco.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Luiz Fernando Veríssimo e a Suruba Psicológica

Luis Fernando Verissimo nascido em Porto Alegre, 26 de setembro de 1936 é um gênio. Ponto. É conhecido por suas crônicas e textos de humor, publicados diariamente em vários jornais brasileiros, é cartunista, tradutor, roteirista, autor de teatro e romancista.

Seus livros são sempre uma grande leitura, mas para além de suas capacidades literárias, há um texto em que ele também dá uma dica sobre autoconhecimento, auto-estima, auto-imagem e toda uma série de “autos” que estão na fronteira entre a psicologia e a filosofia e que pode ser usado por aqueles que desejam saber um pouco mais sobre si mesmos:

O Mendoncinha
- Tente relaxar...
- Desculpe. É que tem uma parte de mim que, entende? Fica de fora, distanciada, assistindo a tudo. Uma parte que não consegue se entregar...
- Eu entendo.
- É como se fosse uma terceira pessoa na cama.
- Certo. É o seu superego. O meu também está aqui.
- O seu também?
- Claro. Todo mundo tem um. O negócio é aprender a conviver com ele.
- Se ele ao menos fechasse os olhos!
- Calma. Eu sei como você se sente. Nestas ocasiões, sempre imagino que a minha mãe está presente.
- A sua mãe?
- É. Ela também está conosco nesta cama.
- Você se analisou?
- Estou me analisando. Pensando bem, ele também está aqui.
- Quem?
- O meu analista. Nesta cama. Meu Deus, ao lado da minha mãe!!
- Meu pai está aqui...
- Seu pai também?
- Meu superego e meu pai.
- O superego e o pai podem ser a mesma pessoa. Será que um não acumula?
- Não, não. São dois. E não param de me olhar.
- Mas sexo é uma coisa tão natural!
- Diz isso pra eles.
- Na verdade, não é mesmo? Nem nós somos só nós. Eu sou o que eu penso que sou, sou como você me vê...
- E a gente também é o que pensa que é para os outros.
- Quer dizer: cada um de nós é, na verdade, três.
- Quatro, contando com o que a gente é mesmo.
- Mas o que que a gente é mesmo?
- Sei lá. Eu...
- Espere um pouco. Vamos recapitular. Do seu lado tem você - aí já são no mínimo três pessoas - o seu superego, o seu pai...
- Do seu lado, vocês três, a mãe de vocês e o analista.
- E o meu superego.
- E o seu superego.
- Mais ninguém?
- O Mendoncinha.
- Quem?!
- Meu primeiro namorado. Foi com ele que...
- Espera um pouquinho. O Mendoncinha não.
- Mas...
- Bota o Mendoncinha para fora desta cama.
- Mas...
- Ou sai o Mendoncinha, ou saímos eu e a minha turma!

(Retirado de: Comédias da vida privada de Luiz Fernando Veríssimo).

***

Não gosto de moral ou de textos que explicam o que foi lido como se o leitor não pudesse tirar suas próprias conclusões... Mas desse texto apreendemos que na verdade não temos uma única personalidade, mas somos quatro: (1) como nós somos realmente, (2) como pensamos que somos, (3) como as pessoas nos veem e (4) como pensamos que as pessoas nos veem.

Assim, qualquer encontro amoroso entre quatro paredes pode ser comparado a sexo grupal. São quatro de cada lado. E se ainda levarmos conosco nossos pais e mães (representados pelos valores aprendidos ao longo dos anos de convivência), aí é que a coisa piora ainda mais...

Essa é uma ideia que pode nos instigar a buscar saber quem somos realmente (e talvez nunca saibamos). O que recebemos da sociedade e da cultura onde nascemos e crescemos? Não podemos ser definidos pela nossa profissão ou pelo nosso nome de batismo que é dado por nossos pais antes mesmo de nascermos e termos a chance de rebater se não gostarmos dele.  Então: Quem é você?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Restos de Peixe Amassado e Podre com Muito Sal

No século passado quando estava na faculdade e estudava a História da Península Ibérica, deparei-me com o fato de que a Lusitânia (que foi uma Província Romana) era uma grande exportadora do que o autor que li (e não me lembro mais do nome) chamou de “preparado piscícola”, que era levado de navio em ânforas de barro num intenso comércio com Roma e outros lugares.

Isso me deixou intrigado... O que seria o tal “preparado piscícola”? Pesquisando tempos depois eu descobri que era o chamado “Garum” descrito na Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Garum) como:

“(...) um gênero de condimento muito utilizado na Antiguidade, especialmente na Roma Antiga. É feito de sangue, vísceras e de outras partes selecionadas do atum ou da cavala misturadas com peixes pequenos, crustáceos e moluscos esmagados; tudo isto era deixado em salmoura e ao sol durante cerca de dois meses ou então aquecido artificialmente. Este produto era exportado para várias partes do Mediterrâneo. Há notícias de exportação de garum para Atenas, no século V a.C. A existência de numerosos vestígios de fábricas detectados no litoral mediterrânico da península Ibérica, provam um nítido crescimento desta indústria conserveira. Em Roma, o garum chegou a ser um produto de luxo, chegando a atingir 1000 denários (apenas 6,5 L.)

Em Portugal, a maior concentração de vestígios de unidades de fabrico de garum localiza-se no litoral algarvio. Na região atlântica há a referir os restos descobertos no Alto de Martim Vaz (Póvoa de Varzim), na praia de Angeiras (Matosinhos) e no estuário do rio Sado, em Creiro, Rasca, Comenda, Ponta da Areia, Moinho Novo e Tróia, um dos mais importantes centros conserveiros da Hispânia. As ruínas destas fábricas (usinas) até agora achadas em território português são constituídos pelos tanques ou cetárias destinados à salga de peixe e à preparação de conservas, normalmente de alvenaria. As conservas de peixe destinadas à exportação eram embaladas em recipientes de cerâmica, as ânforas.”

Em 2003 o Maurício Kubrusly do Fantástico fez uma reportagem que falava sobre esse tipo de condimento culinário, que não passa de uma miscelânea variados frutos do mar misturados e macerados no que devia ser uma quantidade absurda de sal e depois deixados para apodrecer curar por dois meses. Fico imaginando o tipo de comida que se fazia com isso... Eis o texto:


Receita de Garum
Fantástico 14/12/2003
O lugar onde está Lisboa foi, durante muito tempo, parte do Império Romano. Entre os séculos I a.C. e I d.C., existiu ali uma espécie de indústria romana, que produzia um molho feito com peixes e ervas. Era produzido em grandes ânforas, fabricadas por oleiros locais. E eles assinavam os seus trabalhos de barro. Em pesquisas mais recentes, tais assinaturas foram encontradas em cacos localizados em locais muito distantes de Lisboa, ainda dentro do imenso Império Romano. Por isso, os pesquisadores concluíram que a região de Lisboa era utilizada para produção e exportação do molho chamado Garum. Ele foi utilizado na Grécia desde o século VI a.C..
Muito tempo depois, o romano Plínio se admirou do entusiasmo de seus compatriotas por "esta preciosa fermentação de peixe de cheiro muitas vezes nauseabundo". Se acompanhar a receita que foi anotada por Gargilius Martialis logo vai perceber a razão do cheirinho da Garum. Algumas das ervas da receita não são comuns por aqui, mas é possível fazer mesmo utilizando apenas parte dos ingredientes. Respire fundo - bem fundo! - e vamos lá, direto para a cozinha da Roma antiga:
Num recipiente bem grande, coloque uma primeira camada de peixes gordos - salmão, enguia, sardinha. A seguir, uma camada de ervas aromáticas - aneto, coentro, funcho, aipo, segurelha, arruda, hortelã, levístico, poejo, orégano, argemona e outras. Depois, uma camada de dois dedos de sal. Repita a seqüência de camadas até encher o recipiente. Feche com uma tampa e deixe marinar durante uma semana. Nos vinte dias seguintes, mexa a mistura todos os dias. Mas faça isso com uma colher grande, para mexer até o fundo. Depois, basta recolher o licor que ficou por cima. É preciso filtrá-lo, para que você guarde apenas o líquido, em recipientes menores. E aí está o Garum, que agradava gregos e romanos.
Agora, se você quiser conhecer o sabor do Garum sem a maratona de localizar tantas ervas raras e, principalmente, suportar um certo cheirinho... procure nas importadoras de alimentos finos um potinho de nuoc-mâm. É usado no sudeste asiático e, garantem os entendidos, tem sabor semelhante ao Garum. Bom apetite.



terça-feira, 14 de setembro de 2010

DE ONDE VEM O NOME BRASIL: DA MADEIRA OU DE UMA ILHA?

Por Geraldo Cantarino
Em outubro de 1999, tive a oportunidade de ler o artigo, curiosamente, intitulado "As origens Irlandesas do Brasil", assinado pelo líder nacionalista irlandês e ex-cônsul britânico na África e América do Sul, Roger Casement. O texto, escrito em Belém do Pará, em 1908, e pinçado recentemente dos arquivos da Biblioteca Nacional da Irlanda pelo historiador escocês Angus Mitchell, defende uma outra explicação para a origem da palavra que deu nome às terras "descobertas" pelos portugueses: Brasil. Intrigado, iniciei uma busca, seguindo os passos sugeridos por Roger Casement, por uma velha trilha esquecida pela História, digamos oficial, e que me levaria a um mundo fantástico, riquíssimo em lendas, imaginação e sabedoria popular.
A pesquisa traz à tona uma explicação diferente daquela que todos nós, brasileiros, aprendemos na escola de que o nome do nosso país veio do pau-brasil - uma árvore, hoje em extinção, de onde se extraía um pigmento que tingia de vermelho a nobreza européia.
Uma centena de livros e websites depois, fica muito claro que a palavra Brasil, assim, com todas as letras como conhecemos, já existia muito antes da chegada de Pedro Álvares Cabral nas praias da Bahia. Ela deu nome a uma ilha imaginária que se acreditava existir no litoral oeste da Irlanda e que poderia ser vista da beira-mar a cada sete anos. A tradição é muito antiga, fruto talvez de uma miragem, e foi incorporada pela cultura dos povos celtas, que circularam pela Europa há cerca de 3000 anos.
Mais do que um simples punhado de terra cercado de água por todos os lados, a Ilha Brasil foi um lugar mitológico, mágico, sagrado, considerado a morada de fadas e divindades. O próprio nome viria de um semideus, Breasal, considerado o grande rei do mundo e que vivia no país chamado Hy-Brasil ("Hy" vem de "í", abreviação de island - ilha). A Ilha Brasil pode ser vista hoje como uma representação simbólica do chamado "Outro Mundo", uma expressão cunhada pelos celtas para explicar o inexplicável. A morte, para eles, não significava o fim. A vida continuava neste outro mundo, que ficava em algum lugar, aqui na Terra, como a Ilha Brasil, e não no céu concebido mais tarde pelo Cristianismo.
Na transição do paganismo para a era cristã, a Ilha Brasil ganhou outros significados e passou a ser considerada como o Paraíso Terrestre ou a Terra Prometida aos Santos. E foi em busca dessa terra, que o monge irlandês, São Brandão, teria partido numa incrível aventura no início do século VI. O relato da viagem, que segundo alguns pesquisadores teria levado São Brandão e seus companheiros ao litoral da América quase mil anos antes de Cristóvão Colombo, aparece em uma centena de manuscritos do século IX. 
A fé, a crença e o desejo de encontrar a Ilha Brasil motivaram muitos marinheiros e experientes navegadores a se lançarem ao mar em busca dessa terra tão afortunada. Em 1498, a ilha é mencionada na carta de um diplomata espanhol na Inglaterra comunicando ao rei da Espanha que várias expedições haviam deixado o porto de Bristol, ao longo dos últimos anos, àprocura de Hy-Brasil. Tudo indica que a Terra Nova, no Canadá, por onde também estiveram navegadores portugueses, tenha sido descoberta numa dessas viagens. Acredita-se que a procura da misteriosa Hy-brasil acabou sendo usada como desculpa por aqueles que saiam, furtivamente, para pescar em águas até então não muito conhecidas e riquíssimas em peixes. O nome Brasil circulava, portanto, pelos portos e embarcações da Europa, inclusive Portugal, às vésperas da descoberta de Cabral.
A ilha, apesar de nunca ter sido alcançada, existiu nos mapas e cartas náuticas da Idade Média e Renascimento. A primeira aparição cartográfica do nome Brasil, de que se tem notícia, foi em 1325, no mapa de Angelino de Dalorto, 175 anos, portanto, antes do "descobrimento" português. O último registro em mapas talvez tenha sido em 1865, o que daria à famosa ilha uma vida longa, de 540 anos, cercada de muitos mistérios na cartografia européia.
Na literatura, a presença da Ilha Brasil também não foi imaginária. São muitos os registros que se encontram aqui e ali, com pequenas variações em sua grafia. O historiador e eclesiástico galês, Giraldus Cambrensis, ao escrever Topographia Hibernica, em 1188, um tratado sobre a topografia da Irlanda no final do século XII, já contava que entre as ilhas ocidentais estava uma considerada "Phantastica". A Academia Real Irlandesa, em Dublin, tem hoje em sua biblioteca um manuscrito, provavelmente de 1434, supostamente trazido da Ilha Brasil, com informações sobre tratamento e cura de muitas doenças.
Um outro manuscrito irlandês, do final do século XVI, nos conta a bela história de "O'Brazeel, a Ilha Submarina". O texto é a descrição de uma formidável viagem a O'Brazeel, uma ilha que teria afundado na costa irlandesa. Lá, existiria, debaixo d'água, um pequeno país e um povo feliz. Num outro manuscrito, de 1636, encontramos a história de um certo capitão Rich e seus marinheiros que teriam visto uma ilha a oeste do litoral, com cais e promontório, antes dela sumir por dentro da névoa. Em 1675, a suposta história do desencantamento da Ilha Brasil ganhou tom de verdade e virou best-seller na Inglaterra sob o título de "O'Brazile ou a Ilha Encantada".
No Brasil, poucos foram os autores que se dedicaram ao assunto. O escritor Gustavo Barroso, primeiro diretor do Museu Histórico Nacional e presidente por duas vezes da Academia Brasileira de Letras, foi um dos que foram fundo na questão e publicou, em 1941, o livro "O Brasil na Lenda e na Cartografia Antiga". Barroso acreditava na existência de dois caminhos, paralelos e independentes, para explicar a origem da palavra Brasil: de um lado estava a ilha e do outro a madeira. Mas, de acordo com a linguagem técnica do folclore, houve uma intercorrência da "lenda e da história, da madeira e da terra, do espírito e da matéria", através da semelhança dos vocábulos.. De acordo com Gustavo Barroso, "a mania geral de ir buscar para o nome Brasil um berço unicamente na madeira de tinturaria se vê prejudicadíssima" pela existência comprovada de antiga lenda, projetada na cartografia.
Surge, assim, um outro caminho para explicar a origem do nome Brasil. Resta saber qual explicação foi realmente associada ao batismo das terras descobertas na América do Sul. Para definir a questão, navegar, e muito, ainda é preciso. Mas, como escreveu Gustavo Barroso, "não pode haver quem não prefira que o apelido de seu torrão natal signifique Terra Abençoada, Terra dos Afortunados, dos Bem-aventurados, of the Best, do que recorde tão somente o utilitário e vulgar comércio do pau de tinta."