Cavaleiros
vestidos com malhas de ferro se tornaram figuras lendárias da Idade Média na
Europa. E essas malhas - elaboradas com milhares de elos de ferro ligados um a
um por mestres armeiros e privilégio dos nobres ou dos muito ricos - ainda
assombram. Principalmente quando uma delas é encontrada enterrada próxima à
margem da Via Lagos, em Araruama. Por quase cinco séculos, ela permaneceu
oculta sob um areal. Mas, numa descoberta espetacular, agora ela promete ajudar
a iluminar os obscuros primeiros tempos do Brasil. Com ela, emergem também
histórias de batalhas e barganhas entre índios, piratas e corsários franceses e
seus rivais portugueses.
A
malha está no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, onde arqueólogas a
recuperam e analisam. A cota é parte de um trabalho muito maior, a reconstrução
de capítulos perdidos da formação do Brasil. O estudo dos elos revelou que foi
feita na Normandia, na França, em algum momento do século XVI, quando esse tipo
de arma de guerra ainda estava em uso. Do mesmo sítio arqueológico, uma aldeia
tupinambá de quase cinco séculos, estudada desde 1993 pelo grupo do museu,
saíram todos os elementos dos primeiros contatos entre os nativos e europeus.
Viagem
á terra das lendas
Estão
lá as contas de vidro colorido e as facas levadas pelos brancos para trocar por
pau-brasil; os corpos e a arte ceramista dos índios. Os brancos em questão não
eram os portugueses, mas os derrotados franceses. Piratas e corsários expulsos
da História. Agora, descobre-se que eles deixaram, sim, um tesouro enterrado. Mas,
em vez de ouro e pedras preciosas, pedaços de vidro e metal - jóias para a
História do Brasil.
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A presença francesa no Brasil habita o terrítório da lenda. Ainda muito pouco
se sabe sobre ela - diz Maria Dulce Gaspar, uma das arqueólogas do Museu
Nacional que se dedica a investigar os povos indígenas que ocuparam por
milênios o litoral antes da chegada dos brancos.
O
local da descoberta, um sítios chamados Serrano, é uma cápsula do tempo. De lá
saíram a cota normanda e objetos franceses, 26 estruturas funerárias tupinambá
e objetos de cerâmica.
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Esse sítio nos conta a história dos vencidos. Índios e franceses foram
derrotados e esquecidos. O século XVI sempre foi polêmico e complicado de
estudar. Muitos indícios eram confusos. Mas nos sítios da Região dos Lagos
temos descoberto sinais evidentes do momento crucial do contato - observa Maria
Dulce.
A
mesma opinião têm suas colegas de pesquisa Jeane Cordeiro e Angela Guimarães,
todas especialistas na Região dos Lagos. O sítio Serrano é apenas um na
imensidão de vestígios arqueológicos existentes na região, mas é importante
porque reúne um microcosmo do momento do contato entre europeus e as sociedades
nativas. Sabe-se que os franceses, que chegaram a Cabo Frio em 1504, conviveram
muito mais de perto com os índios. Alguns chegaram a viver nas aldeias - o que
incluía andar nu e praticar canibalismo.
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No Serrano, uma antiga aldeia tupinambá, o contato com o europeu está presente
em toda a sua complexidade. Foram recuperadas peças que atestam a interação das
duas culturas, numa etapa em que a sociedade nativa não havia sido destruída -
diz Angela Buarque, que desde o início dos anos 90 estuda o sítio.
O
Serrano começou a ser investigado pelas arqueólogas nos anos 90, num trabalho
paciente e minucioso - em arqueologia não se usa força, mas instrumentos
delicados, que não danificam as peças. Mas, como tudo em sua trajetória, a
malha de ferro foi descoberta de forma inusitada. Foram as máquinas usadas para
a extração ilegal de areia que a desenterraram por acaso, em 2001. A peça
imediatamente chamou a atenção dos operários. Foi levada para a Prefeitura de Araruama
e agora está em estudo no museu.
Jeanne
Cordeiro ainda se emociona quando lembra a primeira vez que viu a cota
normanda.
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É como um sonho encontrar uma peça assim. Vimos que estava tudo lá, as armas
dos brancos e dos índios, as contas de vidro trocadas. Toda a história estava
na nossa frente - destaca.
Descobrir
como a cota de ferro foi parar em Araruama não será fácil. Uma análise de uma
pequena amostra dos elos enviada ao especialista inglês Thom Richardon, curador
de Armaduras e Coleções Orientais da Royal Armouries, em Leeds, na Inglaterra,
revelou que a cota foi feita na Normandia talvez no início do séculos XVI.
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Sabemos que era cara, muito cara. Estácio de Sá, por exemplo, não tinha uma.
Naquela época as posses de cada pessoa eram bem invetariadas e em nenhum
momento aparece a descrição de uma peça assim - frisa Jeanne.
Ela
poderia ter sido roubada ou conquistada em batalha por um corsário ou pirata
francês. Mas como veio parar no Brasil é mistério. Aqui seria mais símbolo do
poder - os índios não tinham ferro - do que uma peça prática.
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Ela poderia oferecer proteção contra espadas. Mas especialistas que consultamos
acham que seria perfurada pelas pontas de flecha de sílex dos índios. Além
disto, é quentíssima e muito pesada. Péssima para uma batalha nos trópicos -
explica Márcia.
O
mistério só aumenta com uma citação histórica feita por um jesuíta. Jeanne diz
que em "O combate das canoas", de 1564, o jesuíta Vicente de Salvador
descreve uma batalha às margens da Lagoa de Araruama entre franceses,
portugueses e os índios aliados dos dois lado.
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Os portugueses venceram. Mas o jesuíta menciona um francês que usava uma cota
de ferro - conta Jeanne.
Segundo
ela, quem vestia a cota era o comendante francês. morto no combate - não se
sabe se ele morreu em batalha ou foi levado ferido para uma aldeia onde morreu.
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Nunca saberemos se a cota é a mesma que está conosco. É provável, por se tratar
de uma peça rara e cara. Mas não há como provar - observa.
As
arqueólogas esperam descobrir mais sobre a peça quando enviarem elos para
análise na França.
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Pelo tipo de liga metálica será possível dizer de que burgo veio a cota - diz.
Se
a história da cota de malha de ferro é misteriosa, a da aldeia tupinambá onde
foi encontrada pouco a pouco começa a ser revelada. As arqueólogas do Museo
Nacional trabalham com a hipótese de que o sítio Serrano seja, na verdade, uma
aldeia chamada Syryzi. O nome significa "aldeia do mau rapaz". Não há
idéia de quem tenha sido o tal rapaz, provavelmente, um índio e não um europeu.
Mas a aldeia Syryzi aparece num mapa do século XVI. A carta elaborada pelo
francês Jacques de Vau de Claye, em 1579, mostra partes do território do atual
Estado do Rio. Na parte inferior se vê o que aparece ser a Região dos Lagos,
com aldeias proximas à Lagoa de Araruama. Vau de Claye se refere à Escalle de
Paratitou, que seria um local hoje chamado Paracatu. A aldeia próxima é Syryzi.
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Não sabemos como a aldeia acabou. Os tupinambás não habitavam o mesmo local por
muito tempo - explica Marcia Barbosa Guimarães.
Por
Ana Lucia Azevedo
Ciência
e Vida - O Globo 11/11/2006
Fotos
e digitação do texto por R.M.G.
Retirado de:
http://rosegrims.multiply.com/journal/item/93/Um-tesouro-de-piratas-no-Rio?&item_id=93&view:replies=reverse
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