Da série quantas vidas vivendo por aí (2)
Por Ana Souto
“Quer
saber? Ele é um ma-ni-pu-la-dor”. Ela cospe as sílabas como pedrinhas no
feijão, mas no prato só tem folhinhas de salada e um pedaço de peixe grelhado.
A menina tem que sobreviver a um dia a dia hard na dieta light, atendendo dois
telefonemas a cada 15 minutos, além de tudo. “Oi, não.. tô jantando com uma
amiga, fala.” Eu descobri que tinha ficado velha quando voltei ao Brasil e
percebi que o fato das pessoas interromperem a conversa sem a menor cerimônia
me deixava com rugas na testa. Ao vivo ou remotamente. Você está lá conversando
com alguém e o seu amigo ou do alguém aparece e não vacila: pula entre os
interlocutores e começa a falar. Sem contar que praticamente todo mundo
interrompe qualquer diálogo pra atender ao celular. “Desculpa, fala, era a minha
irmã, ela está surtada”. Brinco que estamos todos em surto de dependência de
comunicação eletrônica. Ela sorri com o olhar vazio, depois parece perceber que
tem algo a ver com a máquina da qual não tira os olhos e ameaça uma
justificativa. Tudo bem, eu lhe digo, somos mesmo escravos do telefone
“Desculpa, fala.” ela diz de olhos baixos, não sei se para pensar no que eu
disse ou para não perder a tela do aparelho de vista. Depois me encara e
pergunta o que eu acho. Então digo que essa história com seu namorado parece
complicada de verdade. Fico sem jeito de confessar que estou pensando em Anna
Karenina e Madame Bovary. Só na minha mente doentia uma garota de 23 anos
poderia parecer com uma personagem do Século XIX. “Eu acho que você, com a sua
experiência pode me ajudar…”. Digo que não é tanta assim, tento ganhar tempo
pedindo ao garçom uma tônica com bastante limão e pouco gelo. “Com a minha mãe
não dá pra conversar. Ela é daquele jeito, você sabe, uma neurótica”. Digo que
é possível gostar de bebidas amargas, quer provar? Ela agradece e leva um
pedaço de peixe à boca tão pequeno que não tem de mastigar. Minha mãe, ela
quase geme, só se queixa e me critica. As coisas passam, digo a ela, tudo
passa, também como um pedido de clemência. Tivesse menos pudor, ia dizer:
deixe-me passar sem essa, minha jovem amiga, tudo passa. Mas a aflição dela não
quer passar, não antes de fazer a pergunta que me atormenta desde que veio o
cardápio. “Você acha que ele me ama?”. Como eu temia, ela quer uma resposta
pragmática e direta. Só uma resposta prática interessa. Definitiva?
Acho,
em minha cabeça, dezenas de histórias parecidas, ficcionais, vistas e ouvidas.
Não, não vou falar das vividas. Acho, minha amiga, que o amor nos tempos de
pouco tempo e muita competição, disputa com a paixão o topo no pódio da
Maratona de Santa Felicidade. Maratona que não existe porque não há como
canonizar um sentimento que são flores ocasionais do caminho e não uma santa
para quem se deva acender velas. Acho também que a felicidade, o amor, a paixão
só existem como substantivos para dar assunto aos poetas. Acho que na vida
mesmo, na carne e nos caminhos, só existem como verbo de práticas, das
comunhões do dia a dia: amar, apaixonar, ficar feliz. Todos flexionáveis para o
si e para o outro. Todos podendo ser praticados como dança ou como luta. Isso
tudo eu simplesmente acho. O que sei é que manipular e manipulador são destas
palavras que entram na moda de vez em quando, como os saltos Luiz XV, que nem
todo mundo sabe usar. E veja que interessante, minha jovem amiga: é um verbo
que, antes de tudo, se aplica ao mundo material. Manipular, diz o meu
dicionário mais antigo, é manusear, manejar, preparar manualmente, misturando,
certos elementos químicos. Não dá pra imaginar que este verbo pode ter sido
criado para indicar a lida de velhos ceramistas e só depois dos alquimistas
sonharem a química, adquiriu o sentido que lhe dão as farmácias, hoje em dia? E
que o sentido deste verbo, tão bom para descrever a concreta ação das mãos,
virou metáfora de humano-sobre-humano só depois que a filosofia saiu das torres
de marfim? Sem falar que provavelmente só virou sintoma depois que a psicologia
caiu no gosto popular. Será que agora ameaça virar rótulo que se cola às
pessoas, como elas fossem frascos na prateleira, aos quais se pode determinar
em laboratório com precisão matemática, o que contêm, quanto e de quê?
Ela
parece supor na minha hesitação a falta de elementos para responder à pergunta
fatal. “Olha só o que ele me disse:”. E prossegue, com seu talento para o
teatro e para a contação de histórias, me provendo de farto repertório de
diálogos.
Enquanto
isto, outro diálogo imaginário se desenvolve na minha cabeça. “Você se lembra
daquele livro que lhe indiquei, que falava sobre reificação, a palavra que você
não conhecia? Uma pena que você não leu. Ah, eu não tive tempo, mestra… Pois é,
mas só podemos trocar ideias sobre o sentido das palavras, quando estamos de
acordo quanto a algum significado mínimo comum. Eu queria, neste momento, poder
falar com você sobre esta palavra: reificação. Eu acho que seria tão bom se
pudéssemos falar de como a vida, que sentimos como nossa e de mais ninguém, se
confunde com as dos outros, nos modos de viver que existem, antes mesmo de
sabermos dizer mamãe, eu, amor. Eu acho que a gente ia acabar por explorar os
muitos sentidos de palavras como amor, eu e mamãe. Eu acho até que íamos nos
divertir mais do que falando do que ele-disse-ela-disse, como a se a vida fosse
uma telenovela e a medida de todas as coisas fosse o sentido e o ressentido.”
Mas
isso tudo eu só pensei e não disse. Porque a menina é jovem e tem direito a não
ser importunada por uma velha professora com ideias antiquadas. E porque não
quero ser como sua mãe, a criticá-la, e porque às vezes eu também tenho
preguiça de enfrentar questões que não têm respostas simples. E talvez aquilo
que nela me pareceu preguiça, tenha provocado um mimetismo de letargia, que me
impediu de mover a mó da poesia, a ver se podíamos fazer as palavras andarem
onde o verbo simples ou composto não alcançam. E veja como às vezes as coisas
não são nada simples, minha amiga. Seus gestos seguintes parecem dizer que a
única resposta que pude dar a deixou frustrada. Suas atitudes parecem me dizer
que talvez não lhe interesse mais nossa amizade, mas continuo solidária a você,
pensando nas suas dores, esperando que este não tenha sido o último de nossos
jantares, que vamos sarar da falta de tempo, nos encontrar mais vezes, mesmo
que seja apenas pelo prazer da companhia, de experimentar esta coisa misteriosa
de conviver. Gosto de imaginar que insistiremos em nos ver, mesmo que alguns
encontros sejam menos felizes que outros e que eu não tenha nada mais a lhe
dizer do que: não sei. Eu quero. Decida se quer e me diga, mas só quando tiver
a resposta. E, agora me ocorreu – será que não poderíamos chamar também a esta
simples decisão, a prática do amor?
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