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quarta-feira, 31 de julho de 2013

O Filho da Vida

Por Rafael Arrais
Numa noite fria um homem letrado veio tratar com Yeshua, que o recebeu em sua tenda, animado por poder conversar com um sacerdote. Seu nome era Nicodemus…

Sacerdote – Shalom, rabi.

Mensageiro – Está errado: você quem é o rabi, e eu é que estou em paz.

Sacerdote – Mas como pode estar em paz, vendo seu povo sofrendo, oprimido?

Mensageiro – E quem não sofre nesta vida?

Sacerdote – Mas nós judeus temos sofrido em demasiado. Onde está Adonai para libertar nosso povo? Dizem que você nos trouxe sinais de que é seu enviado, seu filho… Então me diga, onde está este Senhor Ausente?

Yeshua apanhou um galho seco do solo onde foi montada a tenda…

Mensageiro – Você vê a vida aqui?

Sacerdote – Não, isto é apenas um galho seco.

Mensageiro – Esta é a diferença. Você acha que o seu senhor está aqui e ali, e eu o percebo em todo lugar, para onde quer que olhe estou sempre coberto por seu perfume. Este galho seco um dia abrigou vida, e agora se torna inerte novamente, porém não menos sagrado. Eis o meu sinal e a minha mensagem, rabi: tudo é sagrado, tudo vibra e nada está parado. Quem há de ter iniciado esta roda senão aquele a quem você proclama ausente?

Sacerdote – E porque não o convoca então? Quero vê-lo!

Mensageiro – Ele já está aqui. Ainda mais perto de sua alma do que seu próprio olho.

Sacerdote – Mas não o vejo, não o vejo! Se o vê, diga-lhe então que nos ajude, que nos lidere, que expulse os opressores de nossa terra…

Mensageiro – Mas como pode alguém retirar a moeda ou o trigo da balança, sem que torne a transação injusta para o vendedor ou para o comprador? Você deseja um Senhor dos Exércitos, mas como pode um general marchar contra o seu próprio exército?

Sacerdote – O que está dizendo, rabi? E acaso Adonai também defende aos opressores?

Mensageiro – E como poderia existir um exército de homens que não pertença ao Senhor da Vida? Não é sua culpa que os homens busquem a morte, e não a vida. Em verdade lhe digo, ó Nicodemus, que nosso Pai não é um general, mas um semeador… E nós somos as sementes! Algumas há que germinaram em solo fértil, enquanto outras encontraram o solo seco, e viveram vidas de galhos secos. Porém, há sempre a oportunidade de aproveitar as chuvas que antecedem a primavera.

Sacerdote – Eu não compreendo… Se este de quem fala é o senhor dos romanos, não pode ser Adonai. Você é filho de um falso deus, um deus ausente, um deus traidor. Quem é você afinal?

E dizem que aquela foi a primeira vez que o viram exaltado:

Mensageiro – Ó Nicodemus, porque tanto proclama ser um conhecedor das coisas celestes, se mal compreende as coisas do mundo? A quem pretende ensinar com esta alma cega?
Você acusa nosso Pai de ser ausente, e, no entanto, ele é tão ausente quanto à luz das estrelas é ausente da noite! Você acusa nosso Pai de ser traidor, quando não há no mundo quem ele possa trair, visto que não fez promessa alguma! Você me acusa de ser filho de um deus falso, quando ele é a fonte única de todos os Elohim, que são a essência de tudo o que há de belo e verdadeiro no mundo!
Saia desta tenda, Nicodemus, e volte para seus manuais de palavras vazias e sem vida. De nada adianta conhecer as palavras se você não percebe o baile da vida a escorar pelo ombro, o vento que sopra onde quer, e não atende ao chamado de almas secas.

Mas, antes de sair, Nicodemus virou-se e perguntou:

Sacerdote – E como você faz para falar com esse tal deus? Quem sabe um dia eu consiga falar com ele, para que possa fazer por nosso povo o que você se recusa a pedir…

Mensageiro – Em verdade lhe digo, hipócrita, que ele fala na única linguagem que não é ainda capaz de compreender sequer duas palavras: o amor. E, caso lhe perguntem como eu sei de tudo isso, diga-lhes que eu sou o Filho da Vida.

Retirado de “O Mensageiro”, parte de “Os Evangelhos de Tomé e Maria” (*)


quinta-feira, 18 de julho de 2013

A Humanidade Como uma Obra Inacabada

Por Wanderson Silva de Souza
Mas tá bom que eu vi hoje um homem falando sozinho na rua.
Eu não fiquei triste.
Fiquei contente.
Dando-me conta novamente de que só um animal na face da Terra pode fazer isso: O Homem.
Aquele homem falava sozinho.
E ele falava sozinho porque podia falar.
Porque é um homem.
Corremos o perigoso risco de morrermos quando usamos a mesma via para falar, comer e respirar.
Corremos o risco de morrer.
E nos arriscamos a tanto porque falar para nós, humanos, é muito importante.
É parte do que nos distingue dos outros animais.
Alguns de nós, não gostam da evolução, de tudo aquilo que nos faz cada vez mais sofisticados enquanto animais e querem nos trazer para o passado, para o mundo das desigualdades e da lei do mais forte.
Querem evitar pesquisa com células tronco (isso talvez esteja desatualizado) a pretexto de uma sacralização equivocada da vida, do ser humano.
O homem faz muito tempo não é mais tão somente um conjunto de ossos, sangue, carne e instinto.
Fossemos só isso, não existiriam os terapeutas de casais e as sex shopp, pois estaríamos ainda submissos ao cio e ao sexo apenas para procriação.
A moralidade atroz e obstinada nega ao homem o que é próprio do homem ao impor-lhes naturalidades estanques.
O natural do homem é inventa-se, transgredir-se a todo instante e ser um humano é justamente inverta-se como humano.
Não, um embrião não é um humano.
Nem por isso deixa de ser alguma coisa que podemos dizer-se orgânica.
No entanto, humano é algo que muitas vezes um sujeito pode viver toda uma vida e morrer e nunca apenas conseguido ser o que sempre foi, desde sua época de embrião, ou seja apenas uma organicidade.
O status de humano é algo tão subjetivo quanto são a quantidade de visões e pontos de vista que existem.
Humano é o único animal que é definido segundo e somente os vários pontos de vista.
Embrião é uma organicidade.
Humanidade é uma tese em construção.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

Explicando Sua Vida Como Uma Casa

“... A capacidade de sabermos onde nós terminamos e a outra pessoa começa, ter clareza sobre o que é nosso emocionalmente e o que não é e de ver as pessoas de nossa vida posicionadas nos lugares em que desejamos que elas estejam – tudo isso é benéfico para o ato de parar (...). Para compreender melhor isso, pense em si mesmo como uma casa. (...) No caso das pessoas (continuando a usar a casa como metáfora), pode haver algumas delas que você queira fora do seu portão, outras que você queira na sala, umas poucas que você queira na cozinha e uma que você queira no quarto, e assim por diante. Ter limites saudáveis é receber todas essas pessoas onde você as deseja, e não necessariamente onde elas querem estar. (...) Parar é como dizer: “Tá legal, sai todo mundo um instante que eu vou dizer para vocês quando e se podem voltar e onde eu vou querer que cada um esteja!” Talvez você descubra que não há absolutamente ninguém na sua casa e que você gostaria de ter algumas pessoas ali. (...) A sua dor, e a sua alegria não são minhas, assim como as minhas não são suas. Podemos nos preocupar com os outros, ser solidários e ter compaixão sem perder os nossos limites. Quando estamos juntos dessa maneira, temos mais chances de construir uma relação harmoniosa e feliz...”
(David Kundtz - "A Essencial Arte de Parar")

O Olho Torto de Alexandre

Graciliano Ramos
Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na. esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

"(...) Naquele dia, quando o pessoal lá de casa cobrou a fala, depois do susto que a onça tinha causado à gente, meu pai reparou em mim e botou as mãos na cabeça: - "Valha-me, Nossa Senhora. Que foi que lhe aconteceu, Xandu?" Fiquei meio besta, sem entender o que ele queria dizer, mas logo percebi que todos se espantavam. Devia ser por causa da minha roupa, que estava uma lástima, completamente esmolambada. Imaginem. Voar pela capoeira no escuro, trepado naquele demônio. Mas a admiração de meu pai não era por causa da roupa, não. - "Que é que você tem na cara, Xandu?" perguntou ele agoniado. Meu irmão tenente (que naquele tempo ainda não era tenente) me trouxe um espelho. Uma desgraça, meus amigos, nem queiram saber. Antes de me espiar no vidro, tive uma surpresa: notei que só distinguia metade das pessoas e das coisas. Era extraordinário. Minha mãe estava diante de mim, e, por mais que me esforçasse, eu não conseguia ver todo o corpo dela. Meu irmão me aparecia com um braço e uma perna, e o espelho que me entregou estava partido pelo meio, era um pedaço de espelho. "Que trapalhada será esta?" disse comigo. E nada de atinar com a explicação. Quando me vi no caco de vidro é que percebi o negócio. Estava com o focinho em miséria: arranhado, lanhado, cortado, e o pior é que o olho esquerdo tinha levado sumiço. A princípio não abarquei o tamanho do desastre, porque só avistava uma banda do rosto. Mas virando o espelho, via o outro lado, enquanto o primeiro se sumia. Tinha perdido o olho esquerdo, e era por isso que enxergava as coisas incompletas. Baixei a cabeça, triste, assuntando na infelicidade e procurando um jeito de me curar. Não havia curandeiro nem rezador que me endireitasse, pois mezinha e reza servem pouco a uma criatura sem olho, não é verdade, seu Gaudêncio? Minha família começou a fazer perguntas, mas eu estava zonzo, sem vontade de conversar, e saí dali, fui-me encostar num canto da cerca do curral.

"Com a ligeireza da carreira, nem tinha sentido as esfoladuras e o golpe medonho. Como é que eu podia saber o lugar da desgraça? Calculei que devia ser o espinheiro e logo me veio a idéia de examinar a coisa de perto. Saltei no lombo de um cavalo e larguei-me para o bebedouro, daí ganheir o mato, acompanhando o rasto da onça. Caminhei, caminhei, e enquanto caminhava ia-me chegando uma esperança. Era possível que não estivesse tudo perdido. Se encontrasse o meu olho, talvez ele pegasse de novo e tapasse aquele buraco vermelho que eu tinha no rosto. A vista não ia voltar, certamente, mas pelo menos eu arrumaria boa figura. À tardinha cheguei ao espinheiro, que logo reconheci, porque, como os senhores já sabem, a onça tinha caído dentro dele e havia ali um estrago feio: galhos rebentados, o chão coberto de folhas, cabelos e sangue nas cascas do pau. Enfim um sarapatel brabo. Apeei-me e andei uma hora caçando o diacho do olho. Trabalho perdido. E já estava desanimado, quando o infeliz me bateu na cara de supetão, murcho, seco, espetado na ponta de um garrancho todo coberto de moscas. Peguei nele com muito cuidado, limpei-o na manga da camisa para tirar a poeira, depois encaixei-o no buraco vazio e ensanguentado. E foi um espanto, meus amigos, ainda hoje me arrepio. Querem saber o que aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos muito brancos as figuras de pessoas em que eu pensava naquele momento. Sim senhores, vi meu pai, minha mãe, meu irmão tenente, os negros, tudo miudinho, do tamanho de caroços de milho. É verdade. Baixando a vista, percebi o coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais. Assombrei-me. Estaria malucando? Enquanto enxergava o interior do corpo, via também o que estava fora, as catingueiras, os mandacarus, o céu e a moita de espinhos, mas tudo isso aparecia cortado, como já expliquei (...). Refletindo, consegui adivinhar a razão daquele milagre: o olho tinha sido colocado pelo avesso. Compreendem? Colocado pelo avesso. Por isso apanhava os pensamentos, o bofe e o resto. (...)

Meti o dedo no buraco do rosto, virei o olho e tudo se tornou direito, sim senhores. Aqueles troços do interior se sumiram, mas o mundo verdadeiro ficou mais perfeito que antigamente. Quando me vi no espelho, depois, é que notei que o olho estava torto. Valia a pena consertá-lo? Não valia, foi o que eu disse comigo. Para que bulir no que está quieto? E acreditem vocemecês que este olho atravessado é melhor que o outro. (...)"

Texto extraído do livro “Alexandre e outros heróis”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1981.


O Que Não Procurar no Budismo

Por Reverenda Yvonette Silva Gonçalves
 Se você quer milagres, não procure o budismo.
O supremo milagre para o budismo é você lavar seu prato depois de comer.

Se você quer curar seu corpo físico, não procure o budismo.
O budismo só cura os males de sua mente: ignorância, cólera e desejos desenfreados.

Se você quiser arranjar emprego ou melhorar sua situação financeira, não procure o budismo.
Você se decepcionará, pois ele vai lhe falar sobre desapego em relação aos bens materiais. Não confunda, porém, desapego com renúncia.

Se você quer poderes sobrenaturais, não procure o budismo.
Para o budismo, o maior poder sobrenatural é o triunfo sobre o egoísmo.

Se você quer triunfar sobre seus inimigos, não procure o budismo.
Para o budismo, o único triunfo que conta é o do homem sobre si mesmo.

Se você quer a vida eterna em um paraíso de delícias, não procure o budismo, pois ele matará seu ego aqui e agora.

Se você quer massagear seu ego com poder, fama, elogios e outras vantagens, não procure o budismo.
A casa de Buda não é a casa da inflação dos egos.

Se você quer a proteção divina, não procure o budismo.
Ele lhe ensinará que você só pode contar consigo mesmo.

Se você quer um caminho para Deus, não procure o budismo.
Ele o lançará no vazio.

Se você quer alguém que perdoe suas falhas, deixando-o livre para errar de novo, não procure o budismo, pois ele lhe ensinará a implacável Lei de Causa e Efeito e a necessidade de uma autocrítica consciente e profunda.

Se você quer respostas cômodas e fáceis para suas indagações existenciais, não procure o budismo. Ele aumentará suas dúvidas.

Se você quer uma crença cega, não procure o budismo.
Ele o ensinará a pensar com sua própria cabeça.

Se você é dos que acham que a verdade está nas escrituras, não procure o budismo.
Ele lhe dirá que o papel é muito útil para limpar o lixo acumulado no intelecto.

Se você quer saber a verdade sobre os discos voadores ou sobre a civilização de Atlântida, não procure o budismo.
Ele só revelará a verdade sobre você mesmo.

Se você quer se comunicar com espíritos, não procure o budismo.
Ele só pode ensinar você a se comunicar com seu verdadeiro eu.

Se você quer conhecer suas encarnações passadas, não procure o budismo.
Ele só pode lhe mostrar sua miséria presente.

Se você quer conhecer o futuro, não procure o budismo.
Ele só vai lhe mandar prestar atenção a seus pés, enquanto você anda.