Há
um conceito de cultura que nos remete de imediato ao humanismo do Renascimento
e provavelmente ao progresso da Ilustração, essa ideia que provavelmente tenha
raízes um tanto mais remotas (mas nem tanto) e a qual entende a cultura como o
conhecimento que cultiva e engrandece, que nos dá mais recursos para entender
nosso mundo mas também nos torna ipso facto mais compassivos, mais humanos.
Por
desgraça, sabemos bem que o mundo está mais ou menos povoado de pessoas que
fundamentam certa ilusória superioridade na cultura que possuem. São sabichões
cujo comportamento, segundo a ocasião e o meio, toma a forma da arrogância, do
desdém e em geral do desprezo por todos aqueles que não se encontram
simultaneamente no círculo de leituras realizadas, filmes vistos, músicas
escutadas, países visitados e um amplo ainda que paradoxalmente limitado
etcétera.
Que
significa ser culto? Talvez, em última instância, nada disso, ao menos não se
nos inclinarmos por essa tradição do pensamento que não teme combinar
conhecimento e moral para que ambos formem melhores pessoas. Em algum ponto de
nossa cartografia pessoal, ler um ou dez livros está (ou ao menos deveria
estar) ligado com nossa capacidade para prestar algum tipo de ajuda a um
desconhecido na rua.
Podemos
escutar uma peça de Bach, ficar maravilhados por sua beleza, sentir que graças
a Bach a vida vale a pena ser vivida e, ainda assim, não agir em conseqüência
e, digamos, ser capazes de cuidar de uma planta e regá-la todas as manhãs? Até
certo ponto, o sibarita estéril que diz amar a beleza e no entanto não faz nada
para assegurar sua presença e persistência neste mundo, tem algo de condenável
e hipócrita.
-
"Beleza mais piedade: isso é o mais perto que podemos chegar a uma
definição de arte. Onde há beleza há piedade, pela simples razão de que a
beleza deve morrer", disse alguma vez Vladimir Nabokov.
A
lista que apresentamos a seguir enumera as 8 qualidades que, segundo o grande e
genial escritor russo Anton Tchekhov, distinguem uma pessoa verdadeira,
autenticamente culta, alguém que de algum modo compreendeu que a sapiência é
tal quando enaltece, mas não ensoberbece, quando nos distingue dos demais, mas não
nos põe, de modo algum, acima de ninguém.
Os
pontos provem de uma carta que um jovem Anton de 26 anos escreveu a seu irmão
Nikolai quando este tinha 28 e começava a ganhar fama como pintor na capital
russa. Datada em Moscou de 1886, a missiva pretendia ser uma série de conselhos
para um artista incipiente que, segundo o modelo romântico, se queixava de que
ninguém o entendia.
-
"As pessoas te entendem perfeitamente bem. Se você não entende a si mesmo,
não é culpa deles", escreveu então Tchekhov, em um tom recriminatório, mas
também totalmente lúcido e, o mais importante, coerente.
Trata-se,
em suma, de um documento que vale a pena conhecer e refletir, confrontar com
nossas próprias atitudes e nos perguntar em que medida convertemos o que
sabemos em ações que fazem bem a nosso mundo... nosso pequeno, íntimo mundo.
- Respeitam a personalidade humana e, pelo mesmo motivo, são sempre amáveis, gentis, educados e dispostos a ceder ante os outros. Não fazem fila por um martelo ou uma peça perdida de borracha indiana. Se vivem com alguém a quem não consideram favorável e o deixam, não dizem "ninguém poderia viver contigo". Perdoam o barulho e a carne seca e fria e as ocorrências e a presença de estranhos em seus lares.
- Têm simpatia não só pelos mendigos e os gatos. Ficam também com o coração doído por aquilo que seus olhos não vêem. Levantam-se na noite para ajudar [...], para pagar a universidade dos irmãos e comprar roupa para sua mãe.
- Respeitam a propriedade de outros e, em conseqüência, honram todas as suas dívidas.
- São sinceros e temem à mentira como o fogo. Não mentem inclusive em pequenas coisas. Uma mentira é o mesmo que insultar quem está escutando e colocar em uma perspectiva mais baixa quem está falando. Não aparentam: comportam-se na rua como em sua casa e não presumem ante seus conhecidos mais humildes. Não são proclives a balbuciar nem obrigam a confidência impertinente dos outros. Por respeito aos ouvidos de outros, calam mais frequentemente do que falam.
- Não sentem menosprezados por despertar compaixão. Não esticam as cordas dos corações dos demais para que os outros gemam e façam algo (ou muito) por eles. Não dizem "Sou um incompreendido" ou "Me tornei sua segunda escolha" porque todo isso é perseguir um efeito barato, é vulgar, velhaco, falso...
- Não tem vaidade supérflua. Não se preocupam por esses falsos diamantes conhecidos como celebridades, apertando a mão de um ébrio, por escutar os arroubos de um espectador extraviado em um espetáculo de imagens, ou ser reconhecido nas tabernas. Se ganham alguns centavos, não se pavoneiam como se estes valessem centenas de reais, e não alardeiam que podem entrar onde outros não são admitidos. [...] Os verdadeiramente talentosos sempre se mantêm nas sombras entre a multidão, tão longe quanto seja possível do reconhecimento. Inclusive Krylov disse que o barril vazio tem um eco mais sonoro que o cheio.
- Se têm um talento, respeitam-no. Sacrificam o descanso, as mulheres, o vinho, a vaidade. Sentem-se orgulhosos de seu talento. Ademais, são exigentes.
- Desenvolvem para si a intuição estética. Não podem ir dormir com a roupa do corpo, vêem rachaduras das paredes cheias de insetos, respiram um ar ruim, caminham no piso recém cuspido, cozinham suas refeições ao longo de um fogão a óleo. Pretendem tanto quanto seja possível conter e enobrecer o instinto sexual. O que querem em uma mulher não é apenas uma colega de cama. Não pedem inteligência que se manifesta na mentira constante. Querem, especialmente se forem artistas, frescor, elegância, humanidade, capacidade da maternidade. Não tomam vodca a qualquer hora do dia e noite, não cheiram os armários porque não são porcos e sabem que não o são. Bebem apenas quando estão livres, de vez em quando. Porque eles querem mens sana in corpore sano.
E
assim por diante. Assim é como são as pessoas cultas. Para ser culto e não
ficar abaixo do nível de seu entorno, não é suficiente ler "The Pickwick
Papers" ou ter memorizado o monólogo de Fausto.
O
que precisa é trabalhar constantemente, dia e noite, a leitura constante, estudo,
vontade. Cada hora é preciosa. Venha conosco, quebre a garrafa de vodca, deite
e leia, talvez Turgenev, se você gosta, a quem ademais ainda não leu.
Deve
desfazer de sua vaidade, já não és mais um garoto, logo terá trinta.
É
tempo!
Interessante a iniciativa de enumerar as qualidades das pessoas cultas, apesar da ligeira decepção ao longo da leitura. Penso que eu esperava algo diferente quando comecei a ler, algo mais bem-humorado ou mesmo irônico. Well...
ResponderExcluirHonestamente, acho que você é capaz de escrever a respeito da cultura 'autêntica' e sobre as pessoas que a possuem sendo um pouco mais mordaz e consequente.
Este texto cheira a mofo e, na minha opinião, é tão pretensioso quanto aqueles a quem supostamente denuncia.
Nada pessoal, tá? Um abraço!
Bom... O texto não é meu. Eu sempre posto aquilo que escrevo nesse espaço em letras itálicas. Retirei esse texto de um site que eu frequento cuja fonte está linkada no final do mesmo. E o texto é mesmo antigo. Anton Tchekhov morreu em 1904. Mas acho que trás uma discussão interessante sobre Moral, Sabedoria e Responsabilidade Pessoal, algo esquecido não só pelas pessoas em geral no mundo de hoje, como também ausente dos debates filosóficos. Não o acho pretensioso e acho-o bastante mordaz quando propõem que as pessoas sejam menos do que elas acham que são. Ter uma real dimensão de si mesmo e de seu papel no esquema das coisas resolve muitos conflitos internos e externos.
ResponderExcluirConcordo com você no que diz respeito à ausência de determinados assuntos (moral, responsabilidade, etc.) nas discussões filosóficas atuais. E a humildade é realmente fundamental ao bom viver.
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