Por Monja Isshin
Encontrei
uma expressão Chan (Zen chinês) que diz:
“Grande dúvida, grande iluminação.
Pequena dúvida, pequena iluminação.
Nenhuma dúvida, nenhuma iluminação.”
A
tradição nos ensina que existem três pré-requisitos para a prática verdadeira:
Grande Dúvida, Grande Fé e Grande Determinação.
1. Grande Dúvida
A
maioria das pessoas chegam à prática espiritual motivada por um sofrimento que
deu origem a um questionamento. Quase sempre, a pessoa está fazendo uma
pergunta do tipo “Por que está acontecendo ‘x’?” ou “Por que eu?”
Muitas
destas pessoas nem dão continuidade num centro de prática séria, e vão embora
depois de uma, duas – algumas – visitas. Outras pessoas, depois de algumas
sessões de meditação, sentindo algum alívio do problema imediato que as trouxeram
até o zazen, já relaxam os seus questionamentos. Talvez até se tornem
associadas, até venham a se considerar “praticantes”. Mas a verdade é: não
chegaram a fazer a pergunta essencial, não se abriram para a “Grande Dúvida” e,
assim, ainda não entraram realmente no caminho espiritual.
Algumas
poucas pessoas, ao passar por uma situação de dificuldade, acabam aprofundando
as perguntas iniciais (“Por que eu?”, “Por que está acontecendo ‘x’?”) para
começar a questionar: “Quem sou eu?”, “Qual é o significado da minha vida?”,
“Qual o sentido da vida e da morte?”.
Estas
são perguntas da “Grande Dúvida” – o início da caminhada espiritual. A tradição
Rinzai Zen usa os ‘koans’ para provocar a Grande Dúvida. Quanto mais
intensamente se vivencie a “Grande Dúvida”, tanto maior será a “iluminação”
obtida. Acredito que, na nossa realidade de seres humanos, as nossas
“iluminações” são, na verdade, “pequenas iluminações”, pois a diferença entre
“ter uma ou algumas experiências de iluminação” e “se tornar uma pessoa iluminada”,
ou “se tornar uma pessoa que manifeste plenamente a sua iluminação”, é igual a
diferença entre água e vinho.
Os
mestres também nos ensinam que aquela pessoa que se acha “iluminada”, não é.
Ainda nos ensinam que a prática deve ser constante e pelo resto da vida – e
próximas vidas, também.
Portanto,
sempre que acreditamos que encontramos uma resposta à “Grande Dúvida”, é
importante que recoloquemos a pergunta e sigamos além, além da resposta atual,
além da nossa compreensão deste momento, sempre além, sempre nos aprofundando
mais e mais.
O
grande perigo aqui está em achar que encontramos “A Resposta” e que a “Grande
Dúvida” já acabou. Vamos cair numa complacência, arrogância – talvez até nos
posicionando como prontos para liderar outras pessoas, mas, na realidade,
estamos nos iludindo e iludindo os outros. De certa forma, a nossa caminhada
espiritual foi abandonada. O nosso Zazen se tornou um ‘zazen de conforto’, um
‘zazen de consumo’. Sempre podemos encontrar mais um pedaço da resposta à
“Grande Dúvida”.
Mas,
vamos dizer que você está com o seu questionamento “à flor da pele”. Entrou no
caminho espiritual e iniciou uma prática. Aí surge a questão da fé.
2. Grande Fé
O
segundo elemento essencial a uma boa prática é uma “Grande Fé”. Fé na prática,
fé nos ensinamentos, fé no professor – um ser humano, com falhas humanas, que
tem mais experiência no Caminho e algum tanto de “iluminação” manifestada. E,
mais ainda, fé na sua possibilidade de poder manifestar a sua própria
“iluminação”, de encontrar a “resposta” de sua Grande Dúvida.
Inicialmente,
pode ser que parte desta fé você encontre depositando fé nos outros. Você
gostou e confia no seu Professor de Darma. Ou admira um praticante budista e
confia nele. Mas os seres humanos são literalmente isto – seres humanos,
sujeitos a falhas. Podem nos desiludir. Mais ainda, uma das funções dos
Professores de Darma é de “puxar o tapete” debaixo de nossos pés. Podem até nos
provocar, fazendo com que manifestemos a nossa “sombra”, na esperança de que
possamos “iluminar” este aspecto nosso que foi trazido à luz. Nestas horas,
podemos até nos sentir “traídos” pelo Professor, enquanto não estamos
compreendendo o que ele está tentando nos ensinar. Portanto, temos que ir além
desta fé inicial, depositada em seres humanos externos à nos mesmos. De um
lado, temos que amadurecer e aprofundar a nossa fé no Professor e outros seres
humanos, temperando-a com fé nos ensinamentos e no próprio Darma –
passo-por-passo.
E
os ensinamentos, que foram transmitidos já durante 2.600 anos – podemos
depositar fé neles? Podemos, mas isto também tem suas limitações, pois a
transmissão dos ensinamentos depende da comunicação e das palavras, sempre
sujeitas às mais variadas interpretações. Transcrições de diálogos entre
grandes mestres e os seus alunos não nos transmitem o contexto, o cenário,
todos os detalhes que fizeram com que aquelas palavras fossem as mais
apropriadas para aquele aluno naquele momento.
No
Zen, encontramos inúmeros exemplos de professores que, num momento dizem uma
coisa e, em outro momento, dizem exatamente o contrário. Será que estão
mentindo? Será que são loucos? Ou será que estão simplesmente falando
exatamente aquilo que é mais apropriado para aquele momento, aquele contexto,
aquele aluno – para convidá-lo a tomar o próximo passo de aprendizagem? Como
alunos do Zen, existem momentos que podemos nos desesperar com um professor que
parece estar se contradizendo. Como é forte, nestes momentos, o sentimento de
“mas você não falou ‘x’ antes? Por que está falando ‘y’ agora? Qual é a
verdade, ‘x’ ou ‘y’?”
Conheço
uma mestra moderna que faz isto o tempo todo. Será que ela é louca? Não acho,
não. Acho que ela está simplesmente me desafiando a mergulhar para dentro e
encontrar a MINHA verdade – e desafiando outras pessoas com quem ela faz a
mesma coisa a fazer o mesmo mergulho para dentro. Não é um processo fácil. Mas
certamente me oferece a oportunidade de me aprofundar na fé verdadeira que preciso
cultivar – a Grande Fé. Fé na minha própria Natureza Buda, fé no Universo, fé
no Darma, fé na minha prática, fé em mim mesma. Fé para atravesar a noite
escura da alma – ou as noites escuras da alma. É aí que entra o terceiro
pre-requisito da prática.
3. Grande
Determinação.
Sem
a Grande Determinação, não vamos conseguir atravessar a noite escura. Se falhar
a nossa determinação, vamos acabar “voltando para trás” em lugar de completar
esta etapa da jornada. Não vamos chegar até o raiar do novo dia, aquele pedaço
de Iluminação que seria resultado de nosso questionamento, fé e determinação.
Se
a nossa determinação for fraca, vamos falhar. Se a nossa determinação depende
de outras pessoas para nos apoiar, vamos falhar. Pois a noite escura da alma é
exatamente isto. É um momento em que nos sentimos totalmente sós – a nossa
dúvida nos consumindo, a auto-confiança cambaleada, a nossa fé no limite – só
vemos escuridão e é somente a nossa determinação que nos segura no caminho.
Afinal, o momento mais escuro da noite é o momento logo antes do nascer do sol.
E é a mesma coisa na jornada espiritual.
Se
iniciamos a jornada com uma pequena dúvida, a noite escura vai ser “pequena” e
o raiar do sol também. Mas se o nosso primeiro passo foi baseado numa GRANDE
Dúvida, a noite escura vai ser igualmente GRANDE. A crise – mistura de perigo
com oportunidade – vai ser GRANDE. Para atravessar esta noite escura, vamos ter
que descobrir, dentro de nós, fé da mesma grandeza e, por fim, GRANDE
Determinação – talvez aquela determinação que diz: “mesmo que perca tudo, não
arredo o pé daqui”, “mesmo que eu tenha que morrer tentando, não desisto”,
“mesmo que estejam todos me chamando de louco, não saio deste caminho”, “mesmo
que todos os meus amigos me abandonem, não abro mão”. Talvez a vida vá nos
exigir uma entrega total, a “morte simbólica”, morte do ego, morte para tudo
que pensávamos que importava. Mas na realidade, a vida está nos convidando a
passar pela morte dos condicionamentos – nos convidando à Libertação.
No
meio da noite escura da alma, passamos por uma fase de ficar só enxergando as
perdas, as “mortes”. Talvez percamos contato com a nossa fé. Talvez nos
entreguemos ao medo. Talvez não resistamos às pressões e voltemos correndo,
tentando voltar à nossa ‘zona de conforto’ anterior, voltar à ‘harmonia
conhecida’, voltar às amizades e relacionamentos antigos que não queremos
arriscar perder, buscando apoio externo na falta de nosso próprio apoio
interno. Quantas e quantas pessoas fraquejam neste ponto, justo quando estão
quase lá, quase vencendo esta fase da jornada. Que tristeza! É como se
vendessem a alma, caissem em “tentação”.
É
por isto que todas as tradições espirituais falam da dificuldade da jornada.
Todas as tradições espirituais têm a sua forma de descrever o processo de
passar pela “noite escura da alma”. Algumas tradições xamânicas ou indígenas
usam “jornadas interiores” indo ao encontro da morte e renascimento simbólicos,
desmembramento e “re-membramento” simbólicos, para facilitar esta passagem. A
tradição budista nos fala da determinação de Buda quando ele sentou em baixo da
figueira, decidido a não se levantar dali até que encontrasse a resposta, a
Iluminação. Fala, em linguagem simbólica, dos ninhos que pássaros construiram
em seu cabelo, das teias que as aranhas teceram, das plantinhas que cresceram
entre os dedos dos seus pé – tudo para nos ajudar a imaginar uma determinação
tão firme, inquebrantável que permitisse que ficasse lá – sentado em meditação
– o tempo suficiente e com a “imobilidade” – firmeza de propósito – suficiente
para atingir a Iluminação.
Lembro-me
de momentos de dúvida (dúvidas que pareciam bastante grandes para mim, na
época), onde toda a minha fé foi posta à prova e onde parecia que a minha
determinação não ia agüentar – e lembro-me dos raiares do sol que vieram no
final daquelas noites escuras da alma. Não posso dizer que eu tenha atingindo
qualquer GRANDE Iluminação, mas com certeza, sinto que posso dizer que cheguei
em algumas pequenas iluminações, de acordo com a minha capacidade de ter uma
dúvida, de cultivar a fé e de achar dentro de mim mesma a determinação de
prosseguir até a hora do sol nascer.
Como
será que isto vai acontecer? Como será o momento da virada, de uma pequena
iluminação? Vai ser o seu momento, único, totalmente diferente dos meus
momentos – e nem para mim um momento será igual ao outro. Só posso compartilhar
que, para mim, a virada vinha muitas vezes quando eu finalmente parava de lutar
contra os acontecimentos e me entregava totalmente. Sabia que a gente tem todo
o direito de espernear e reclamar tudo que quiser neste universo? Só que o
Darma simplesmente vai continuar procurando nos ensinar. Então não precisa se
sentir culpado por passar por uma fase de “briga com o universo” antes de
chegar numa entrega! Outras vezes, a virada veio quando finalmente percebi a
“comédia dos absurdos” numa situação e caí nas gargalhadas, de corpo e alma. De
qualquer forma, a virada vinha quando algo dentro de mim mudou. A mudança nunca
vinha de fora, só de dentro. Este que é o detalhe importante: a mudança tem que
vir de dentro.
A
noite passa. O novo dia nasce. A Luz retorna. Portanto, se você estiver
atravessando uma noite escura da alma, não abra mão de sua fé, não vacile na
sua determinação. Não tente voltar ao “conforto” ou “harmonia” ou “segurança”
anterior. Se, no seu coração você sabe que está ouvindo a voz de sua Natureza
Buda, prossiga firme. Mergulhe, deixe que a Grande Dúvida lhe “consuma” até os
ossos, até a medula, até restar somente o grande Vazio. Estique a sua fé,
mantenha a sua determinação – e atinja mais um pedaço da Iluminação. O
importante é de sempre manter-se firme na busca de Sabedoria e Compaixão.
Se
você está com mais Sabedoria e Compaixão, mais Paz e Tranqüilidade no “dia
seguinte”, saberá que atravessou a noite. Mas, se está com alguma raiva, algum
mal-estar, alguma inquietação, saberá que ainda não terminou a travessia ou,
pior, saberá que desistiu no meio do caminho e voltou para trás. Mesmo assim,
não perca esperanças, não se critique, não se julgue. Você fez o seu melhor.
Aprenda com o processo. Veja onde “falhou”, onde “errou” e comece de novo. A
vida sempre nos oferece novas oportunidades. Temos todo o tempo do universo
para nos iluminar – kalpas e kalpas estão à nossa disposição!
Então,
não tenha medo. A noite passa.
Que
os méritos de nossa prática se estendam a todos os seres e que possamos todos
nos tornar o Caminho Iluminado.
Gassho.
Publicado
em Compaixão Zen Budista, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista,
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